Lives: de novena pra santo a transas ao vivo, só sei de uma coisa, estou cada vez mais baratinado

Quando comecei a entrar nas lives e a sair sem me desconectar para não parecer deselegante, vi que estava na hora de parar

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Foto: Reprodução/Instagram.

Passei um tempo desaparecido. Fruto de uma forte perturbação interior, optei pelo recolhimento e o anonimato diante de um mundo cada vez mais rotineiro. Para completar, a usurpação do poder por uma gente desalmada e cafona que agora habita o Planalto Central do Brasil foi a gota d’água para eu sair de cena. Embora milite contra essa gente torpe na surdina, um sentimento meio Greta Garbo “I want to be alone” passou a ser meu mantra. Todavia, com o surgimento da covid-19, um fato novo provocou em mim uma reviravolta: a opção de uma vida de eremita que era uma escolha pessoal, de uma hora para outra foi imposta a pelo menos metade da humanidade e eu senti que não podia ficar indiferente a isto. 

Preciso dizer, no entanto, que o eremitério pessoal não significou que eu estivesse totalmente afastado do mundo. Graças às redes sociais e a todo esse arsenal de fontes de informação disponíveis nessa Torre de Babel da pós-modernidade, continuei de olho no que o povo andava fazendo por aí. Foi então que ao anunciarem o tal do isolamento social, vi surgir da noite para o dia, como num passe de mágica, esse novo fenômeno comunicacional que brotou das telas dos computadores e smartphones: a live. 

Confesso que fiquei surpreso por descobrir de uma hora para outra, que quase todo mundo tinha virado Silvio Santos, Marília Gabriela, Jô Soares, Oprah Winfrey, Fausto Silva, Fátima Bernardes. Não menos estupefato fiquei quando vi que qualquer sapo de rabo passou a botar a cara nas telinhas do Instagram, do Facebook, do YouTube, do Twitter para cantar, recitar poesia, passar mensagens edificantes e confortadoras, pedir dinheiro, anunciar uma nova era, falar mal do Bozo (e com razão), ensinar a fazer bolo e queijo vegetariano, anunciar o Apocalipse, rezar terço para São Roque – santo protetor contra doenças e pestes contagiosas – , dizer “olha como eu sou lindo” ou “vejam como eu sou uma pessoa simples e bondosa”, ensinar a fazer boquete (tem sim, é só procurar que acha), etc. etc.. Enfim, tudo que o caríssimo leitor possa imaginar apareceu no cardápio. Vocês sabem disso.

O que no início eram apenas lives nas salas de artistas com pisca pisca chinês pendurado no abajur, logo se transformou em grandes produções, com sets decorados na beira da piscina ou na sala de estar de artistas milionários.

Maiorias e minorias invadiram o ciberespaço numa sofreguidão avassaladora. De Ivete Sangalo a Potyguara Bardo (descubram, ela é ótima), todos entraram na onda. Teve festival de pagode, de artistas transgêneros, de cantor sertanejo enchendo a cara, filósofos, sociólogas, monjas, dançarino de passinho e logo um filão comercial foi descoberto pelos fabricantes de bebidas. E aquilo que, no início, era apenas lives pobrezinhas nas salas de artistas desconhecidos querendo dizer ‘eu existo’, com pisca pisca chinês pendurado no abajur, umas almofadas de gosto duvidoso em cima de sofás desgastados pelo uso, logo se transformou em grandes produções, com sets decorados na beira da piscina ou na sala de estar de artistas milionários. As imagens pixeladas ou congeladas e o áudio repleto de interferências estranhas perderam espaço para imagens e conexões impecáveis e áudios com muito mais qualidade. O ápice dessa explosão de lives foi a apresentação de um DJ famoso que, do alto de sua “torre de marfim” (não fui eu quem disse isso, copiei não lembro de quem), lançou raios luminosos para o céu e fez tanta zoada que, enquanto em suas casas pessoas confinadas se requebravam, os vizinhos queriam matar o rapaz pelo desassossego por ele provocado. 

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Live de terço. (Foto: Reprodução).

E como a coisa não parou, por mais que eu tenha tentado ficar imune a esse fluxo frenético de “lives”, confesso que não consegui. Sucumbi a esta pandemia secundária que pelo menos tem uma vantagem: ela deixa a gente meio baratinado, mas não mata. Comecei então a bisbilhotar a casa dos outros. Algo, ao meu ver, bem mais divertido do que o BBB. Fui em casa de gente culta falando difícil, em apartamento de bichas engraçadas, estive na sala da Pablo Vittar, de Rita Lee, de Marcia Tiburi, de Cleyton Cabral, de Marina Lima, no bar da Musa, fiquei ouvindo gente que nunca tinha visto na minha vida, gente puxando trezena para santo, e por aí vai.  Em casa de cantor gospel e de bolsominion não fui para não ter engulhos.  

A minha caça às lives sempre foi meio aleatória e de tudo vi um pouco. Vi lives muito educativas e interessantes, mas com três gatos pingados acompanhando; vi lives de gente falando um monte de baboseiras acompanhadas por milhares de internautas; ouvi gente dizendo que a live estava sendo um sucesso mesmo com 15 seguidores; live de gente apaixonada cantando um para o outro as canções preferidas de sua história de amor, etc. etc.. 

Ah! E nunca deixei de acompanhar os comentários. Nunca vi tantas postagens repletas de emojis de coração, de frases reconfortantes “você é lindo” pra lá, “você é linda” pra cá, e não posso negar que muitas vezes mandei também minhas carinhas com dois corações nos olhos, fiz perguntas e também me aborreci quando os comentários ficaram tentando chamar mais atenção dos seguidores do que os protagonistas da live, esse povo egoísta que acha que o mundo gira em torno do umbigo delas.

Todavia, com o passar do tempo comecei a tomar abuso de tanta live. Minha vida estava virando um inferno. Eita! Tem a live de fulano daqui a pouco, às quatro da tarde! Ai meu Deus! Tem a live de sicrano também, como vou fazer? E quando comecei a entrar nas lives e a sair sem me desconectar para não parecer deselegante, vi que estava na hora de parar. Decidi então: chega de lives. Durante quase uma semana ignorei todas as anunciadas. Mas eis que alguém me envia uma mensagem anunciando a Live Os Cafuçus com “sexo ao vivo e muita putaria”. Aí foi foda, não deu outra, fui ver o que poderia ser isso. E confesso que me deparei com uma das coisas que mais me fizeram rir nos últimos tempos.

Eles cumpriram o que prometeram. A live aconteceu no Twitter, uma das plataformas que não censuram postagens de sexo. Como acontece com um monte de coisa da internet, sobretudo nesse tipo de temática, não dá para saber direito quem é que estava no comando, mas os nicknames e o perfil de alguns dos participantes deram as pistas: Divopytter$, Tricolordotadao, PRAZERTOTAL6, Rey_zinho0, NPikudo… Cariocas, os boys passaram dias anunciando o evento como “a maior live do Twitter com sexo ao vivo e participações especiais de cafuçus safados”.

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A live com sexo real foi denunciada e bloqueada pelo Instagram. (Reprodução)

Às 22 h da noite do último sábado, hora anunciada para o início do “sexo gostoso” muita gente já estava perguntando a Divopytter pela live. Com atraso de meia hora os boys – com pinta de garotos de programa – entraram em cena. Dava para ver que as cenas aconteceriam na sala e no quarto de uma casa suburbana (desconfio que em Rio das Ostras). Com música ao fundo e uma luz azul e vermelha girando sobre eles, os rapazes passaram a ação. O trivial: boquete, beijo grego e penetrações. Alguns simulavam gestos lascivos meio forçados, contorções pretensamente sensuais e gemidos. 

Quase 800 pessoas acompanhavam a “putaria”. E se o “sexo gostoso” deixava muito a desejar, os comentários dos internautas eram o melhor do espetáculo.  A principal queixa dos seguidores era a semi-flacidez dos pênis dos boys. Reclamaram do lambe lambe demorado, perguntaram qual o motivo dos boys estarem de óculos escuros, acharam broxantes as unhas grandes de um deles. Mas teve quem gostou e não se furtou a parabenizá-los, chamar eles de gatinhos lindos e dizer palavras (aqui impublicáveis) de incentivo. Teve gente marcando encontro pelos comentários, gente sugerindo enquadramentos mais ousados, gente batendo boca com quem estava reclamando, uma animação danada. Mas, quando a sessão estava esquentando, o Twitter bloqueou a conta de Divopytter por conta de uma denúncia. 

Razões para denúncias não faltaram. Sem usar máscaras (o que na verdade não faria muita diferença, já que eles estavam se tocando) em plena pandemia da covid 19 e fazendo sexo grupal sem preservativos não é algo que se deva aprovar. Mas os moços não se intimidaram. Depois de acusarem o possível denunciante de bicha invejosa, mal-amada, que não curte sexo como forma de prazer, eles passaram a live para o perfil de outro moço do grupo e a “putaria” prosseguiu, para deleite dos que estavam esperando o desfecho do quiproquó. Ao término, os cinco rapazes agradeceram “a audiência, os elogios, as críticas – porque querem fazer cada vez melhor – ” e agradeceram ao “bom Deus por estarem ali”. Depois, ainda nus e alegres, dançaram, cantaram e prometeram outra live para breve. 

Depois dessa Live Os Cafuçus eu admito que fiquei mais baratinado ainda na tentativa que venho fazendo para procurar entender a complexidade e a irracionalidade desse momento que estamos vivendo. Transar sem camisinha e não ter cuidados com a transmissão do coronavírus não são bons exemplos. Mas a imagem deles felizes, nus e dançando não deixa de ser perturbadora. Ingenuidade, irresponsabilidade, alienação, busca de sucesso e visibilidade ou o simples desejo de brincar? Será que os quase 800 seguidores do evento, a maioria provavelmente homens gays, não se sentiram menos ansiosos e mais alegres? Afinal, graças à maluquice de cinco boys, eles sublimaram desejos impossíveis de serem satisfeitos neste momento e amenizaram a angústia provocada pelo isolamento e solidão em que vivem. Tempos difíceis. 

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