“Já começamos abusadas pelo nome.” É assim que as Irmãs de Pau, dupla composta pelas multiartistas Isma Almeida e Vita Pereira, demarcam hoje seu lugar na música. Sem ceder às pressões e expectativas externas, elas se posicionam enquanto travestis que amam seus corpos e encontraram no funk a potência e a autenticidade necessárias para fazer ecoar suas vivências através da música. Pela primeira vez em Recife, a batida pesada delas vai desembarcar no próximo dia 21 na edição de 20 anos do No Ar Coquetel Molotov, realizada no Campus da UFPE.
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Amigas desde o tempo de colégio, as duas construíram uma relação de amizade e irmandade fortalecida por um contexto de lutas e de tomada de consciência política. Primeiro, para enfrentar a homofobia e a transfobia dentro do próprio ambiente escolar. Depois, durante as ocupações secundaristas, em 2015, quando os estudantes da rede pública protestaram contra a reorganização escolar proposta pelo governo Alckmin, em São Paulo.
“Eu via a Isma com uma energia muito igual a minha. A gente era muito porra-louca, muito emocionada, muito bicha jovenzinha, tacando o foda-se para tudo. Então, eu acho que a nossa forma de viver o nosso gênero, a nossa sexualidade e a nossa raça foi um ponto de encontro muito importante, por mais que a gente seja totalmente diferente e tenha vindo de lugares, famílias e costumes totalmente diferentes”, é o que conta Vita para a Revista O Grito!.
Contudo, foi apenas em 2020, em meio à pandemia, que ambas vislumbraram a chance de se unir para fazer música juntas. “Fomos amigas primeiro para depois sermos irmãs”, resume Vita. Para Isma, a relação tornou o processo mais humano e menos profissional. “Agimos realmente como duas irmãs e às vezes fica até difícil ser profissional em meio a isso, damos muita intimidade uma à outra e isso exige de nós muita responsabilidade pra lidar com isso dentro da empresa que é Irmãs de Pau”, avalia.
A estreia veio em 2021 com o disco Dotadas, trabalho que reúne as participações de peso de Alice Guél, A Travestis e da “madrinha”, como elas mesmas definem, Jup do Bairro. A partir das vertentes vogue e mandelão do funk, as artistas cantam sobre suas vivências enquanto travestis pretas que vieram da quebrada e, de uma forma muito honesta e bem-humorada, denunciam os afetos (e também desafetos) que historicamente receberam. “Me ligou de madrugada querendo me encontrar / Me chamou para dar uma volta / Mas não queria beijar / Maricona desgraçada, arrombada do caralho”, expõe a letra da faixa “Travequeiro”.
Para Vita, as composições representam também a oportunidade de sair da perspectiva de objeto em que são colocadas nas canções produzidas por homens cisgêneros para enfim se tornar sujeito da própria música. “Os homens, que sempre dominaram várias questões, eles sempre colocavam a mulher numa certa posição de chacota, de hiper-sexualização, de objetificação, de poder. Então, eu acho que as nossas letras trazem também uma crítica a tudo isso que consumimos historicamente.”
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“Por mais que adorássemos os funks, às vezes não refletíamos sobre muitas questões, mas hoje em dia refletindo fazemos essa questão complexa de colocar a nossa narrativa, a nossa trajetória, a nossa composição como uma forma de embate também nisso”, reflete. “O homem na nossa composição, em sua maioria, está numa posição passiva. Jogamos isso porque a passiva também tem uma atividade na questão sexual. Não é só aquela que recebe. Mas colocamos o ‘homem cis macho’ nessa forma passiva de somente receber.”
“Elas têm pau e a Pabllo também tem pau”
Desde o lançamento de Dotadas, as funkeiras vêm desfrutando de um sucesso crescente e conquistando cada vez mais espaço na cena musical nacional, o que foi potencializado com o hit “Shambaralai”, lançado no ano passado. O single, que ganhou até videoclipe, hoje acumulando mais de 800 mil visualizações no YouTube, representou para elas a guinada para uma nova fase da carreira, coroada este ano com o convite para participar de AFTER, álbum de remixes da Pabllo Vittar.
“‘Shambaralai’ foi o primeiro momento de tipo assim ‘porra, nos levem a sério, olha o que a gente está fazendo’. E aí, com a Pabllo, foi tipo assim ‘acabou sabe, acabou para vocês, amor. Elas são as maiores do Brasil’”, celebra Vita. No disco, elas dão uma nova roupagem para a faixa “Derretida”, que conquistou o público com os versos “Irmãs de Pau, chegou Irmãs de Pau / Elas têm pau e a Pabllo também tem pau”.
Embora bem-sucedida, a trajetória das duas não passou incólume a barreiras e preconceitos, atrelados, sobretudo, à forma como elas fazem questão de demarcar sua identidade, o que já começa pelo nome escolhido: Irmãs de Pau. “Usam o argumento de ‘falocentrismo’ como se fôssemos homens, e ‘muito vulgar, exagerado’ porque somos figuras femininas e parece que esse não deveria ser o nosso lugar já que queremos ser validadas! Mas enfim, nós já aceitamos que não devemos buscar entendimento e aceitação de todos, isso só iria adoecer nossos corpos. Estamos sendo reais com a nossa trajetória”, desabafa Isma.
Elas lamentam o fato desse tipo de acusação ter partido até mesmo dentro da própria comunidade LGBTQIA+, mas rebatem: “Estamos falando sobre nosso corpo, estamos falando sobre nossos sonhos, nossas confabulações, nossas críticas. Se outras pessoas se identificam é massa, porque em algum momento estamos compartilhando alguma história, mas essa encruzilhada do gênero, da sexualidade, de várias outras camadas, tem muitos desencontros. Não estamos dispostas a falar sobre a toda a experiência travestigênere do Brasil, até porque não damos conta. Olha o tamanho do nosso país.”
“Sinto uma urgência em vermos corpos trans terem orgulho de suas genitálias biológicas, precisamos quebrar essa ideia de que nascemos no corpo errado! E não é que não podemos fazer cirurgias (até porque os cis estão fazendo a rodo e ninguém tá falando que eles nasceram no corpo errado)”, reafirma Isma. “Quando a gente fala sobre o nosso pau é falar que, tipo assim, não tem problema nenhum se amar tendo o corpo e tendo a genitália que você tem. Então, a gente está nesse lugar de demarcar o nosso nome. Quando a gente chega, as pessoas já sabem que são duas travestis. E são duas travestis que amam seus corpos”, completa Vita.
Um novo capítulo
Hoje, Vita e Isma estão prestes a inaugurar um novo momento da carreira. A preparação para essa nova fase vem acontecendo com a Silicone Tour, a atual turnê que antecede o segundo álbum e que agora aportará na capital pernambucana, ocupando o palco KMKAZE do No Ar Coquetel Molotov. “É momento de falar da conquista do peito. É um novo show. Um show que está uma delícia e a gente não vê a hora”, explicam.
Segundo elas, a conquista do silicone e outras realizações darão o tom do novo trabalho, antecipado com o último single, “Cussy”, uma parceria com a conterrânea Mc Luanna. “É o momento de falarmos sobre a colheita. É o momento de falarmos sobre essas coisas tão gostosas que estamos vivendo“, adianta Vita.
“Isso é uma coisa tão foda para nós. Poder escolher o que comer, onde morar, o que comprar, o que não comprar. Então, queremos muito falar desse lugar. Não somos ricas, mas é um lugar de prosperidade. Mas é também pontuar que é um lugar de prosperidade, entendendo que ainda continuamos sendo travestis pretas e continuamos sofrendo diversos outros tipos de transfobia, diversos outros tipos de perrengue nos lugares de poder que vamos acessando.”
Além disso, a dupla pretende acenar para outros públicos e linguagens artísticas. “Neste segundo trabalho, não queremos ficar presas só num nicho. Sentimos vontade de gritar. Gritar de diversas outras formas e em outras linguagens também. Não só na música”, revela Vita. Ela admite estar ansiosa para a estreia em Recife, berço do brega funk, e também adianta que recentemente gravaram uma faixa dedicada ao ritmo. O lançamento deve vir em breve.
Na programação do festival pernambucano, o duo de funkeiras apresenta como convidado o DJ e produtor musical maranhense Brunoso. Ele é o responsável por assinar o remix de “Derretida” e produzir os últimos singles da dupla. Segundo elas, o show do No Ar Coquetel Molotov é um dos mais aguardados e comentados de toda a turnê.
“Podem esperar pouca roupa, muito tesão e muita putaria. Espero que a gente incendeie esse lugar e que a gente se torne e fique muito derretido juntos”, celebra Vita. “E aí, um recado para Recife: a gente vai pintar muito, não só no palco, mas por trás do palco e no público, porque a gente vai descer, meu amor. A gente vai curtir esse festival com vocês.”
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