Material Poético
Alves
Brasa Editora, 194 páginas, R$ 109,90
A poesia é carregada de uma potência criativa que até hoje segue sendo um mistério até mesmo para os poetas. É difícil conter sua essência em uma definição, mas uma proposta, ao menos, é facilmente perceptível: a capacidade de olhar o mundo para além do que se vê, ir além do que é definido, como disse Manuel Bandeira. Ou seja, um mergulho de redescoberta do mundo. Essa é a chave para apreciarmos Material Poético, novo livro de Evandro Alves, que saiu no fim de 2023 pela Brasa.
Alves faz poesia em quadrinhos, o que é ainda mais desafiador nessa proposta de ir além do definido. Suas imagens fazem uso da narrativa em quadrinhos para promover uma redescoberta do cerrado a partir de um olhar do cotidiano que encontra ecos em trabalhos como o de Manoel de Barros, outro poeta a enxergar lirismo nas pequenas coisas. Mas Alves tem como diferencial a criação de uma segunda camada de leitura, que são as imagens, os desenhos que registram com sensibilidade cenários e situações do cerrado brasileiro.
Esses dois acessos simultâneos criam uma leitura complexa e prazerosa dessa poesia em quadrinhos, gênero raro e ainda pouco explorado. Alves usa o seu conhecimento do local para capturar sua essência, destacando cenários e situações sempre com muita simplicidade. Em outro nível, mais textual, ele emprega um olhar lírico para essas imagens, criando um encontro bem interessante de duas linguagens distintas (poesia e quadrinho) que trazem um impacto visual ao leitor, que é praticamente instantâneo.
Não por acaso, o quadrinho usa o esquema 2×2, quatro requadros em cada página, o suficiente para captar a atenção do leitor para aquele microcosmo. Alves demonstra sensibilidade para redescobrir imagens a partir de textos que dão conta da riqueza de imagens do cerrado. “Teimosia da lua em dia claro”, “caminhão levando a vida de alguém”, “todas as cores que cabem no fim de tarde”, “a beleza triste dos matos na seca alta” são alguns dos exemplos de textos que fogem do óbvio e que se conectam com os sentimentos por trás dessas imagens.
Em outros momentos, o quadrinho é mais direto na descrição da imagem, como se revelasse a beleza daquela situação e que sempre esteve escondida. Como se Alves chamasse nossa atenção e nos inspirasse a olhar esse cenário (ou qualquer outro) com novos olhares. É o caso de “Qualquer boteco perdido na roça”, “o maracujá doce que dá no fundo das grotas”, “a sombra de uma mangueira”, “mosca esfregando as mãozinhas” e vários outros que aparecem no livro.
O trabalho poético de Alves se debruça sobre o cotidiano, tentando dar conta de seu deslumbramento. Como Liniers, outro quadrinista que se apoia na poeticidade, as suas tiras também nascem do espanto. E tudo isso ganha vida em um traço solto, de linhas molengas, com uma simplicidade que busca retratar o mínimo possível, o suficiente para nossa imersão naquela cena.
Alves tem um trabalho consistente em trazer observações do bioma do cerrado na forma de quadrinhos. Suas histórias desse ambiente chamam atenção para questões ambientais sem, necessariamente, se colocarem como um trabalho de conscientização. Cerrado em Quadrinhos (2015) e Lobo-Guará e Lobeira (2020), com propostas artísticas bem diferentes desse Material Poético valem a leitura.
A edição da Brasa para o material está muito bem cuidada, com detalhes da produção gráfica que ajudam a destacar a proposta do livro. Tem ainda um prefácio do escritor Aílton Krenak (que até faz uma ponta em um dos quadrinhos) e posfácio do crítico e doutor em quadrinhos Ciro Marcondes.
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