Fotos por Ivson Gambarra/Especial para O Grito!
Ilustração de David Shamá
Entre as influências de Vitória do Pife, 23 anos, convivem em perfeita harmonia bandas simbólicas da tradição do pife e artistas do universo pop global típicos de qualquer jovem adulta da Geração Z. “Eu escuto muita coisa, mas de influência tem a Banda de Pífanos de Caruaru, tem os mestres daqui de Caruaru mesmo, seu João e seu Marcos do Pífano me influenciam muito”, enumerou. “Eu também gosto muito de Gilberto Gil, Jorge Ben Jor, Os Tribalistas, Maria Bethânia, tem outras bandas de pífano de cunho mais alternativo como Flautins de Matuá, Barbatuques também”, continuou a caruaruense.
“Mas o meu gosto vai longe, por exemplo, eu gosto pra caramba de Justin Bieber, gosto de brega funk, escuto sempre Shevchenko e Elloco. Eu acredito que o brasileiro é diverso, e é interessante ter essa habilidade de conseguir se adaptar”, refletiu. Vitória do Pife é uma das grandes representantes da novíssima geração do pífano que vem surgindo em Pernambuco nos últimos anos. Ela ganhou ressonância a partir de sua habilidade no instrumento e por trazer elementos próprios à tradição que é símbolo da região e parte integrante da identidade cultural caruaruense.
Vitória começou no pífano meio que por acaso, quando ela tinha 16 anos conheceu uns amigos que tocavam e isso a fez pedir ao seu pai um violão. “Aí meu pai falou que no momento não tinha condições de me dar um violão, mas ele trabalhava na rua onde mora João do Pife e conhecia ele”, disse. “Aí ele falou ‘O que eu posso fazer já que você quer aprender um instrumento é comprar um pife na oficina de seu João que é baratinho e aí você aprende a tocar”.
Foi a partir disso que Vitória foi na oficina de João do Pife e começou a ser sua aluna. “Até então, eu só tinha ouvido falar em seu João em trabalho de escola, mas nunca tinha visto ele e não sabia nem como ele era. De cara já me encantei com aquele senhorzinho supersimpático me acolhendo na casa dele”, contou. Nesse dia mesmo, João do Pife escolheu um pífano para ela e assim começou uma relação duradoura e frutífera.
“Levei o pife pra casa, já fui na internet e pesquisei um monte de coisa. Vi que tinham algumas vídeoaulas, fui tentando aprender ali a assoprar. Como eu moro muito perto da oficina de seu João, tipo coisa de cinco minutos, sempre fiquei indo lá pra aprender”, relembrou. A jovem aproveitou e levou os amigos para a oficina e começaram a montar uma banda de pífanos, que não vingou na época, mas hoje estão juntos na banda Caruaru Camaleão.
Inteligente e inquieta, Vitória do Pife consegue unir o lado dinâmico e com sede de conhecimento da Geração Z com um profundo respeito e admiração pelos mais velhos, a que demonstra uma calma para ouvir tudo o que dizem. Segundo Vitória, foi a partir do encontro com João do Pife que ela começou a conhecer o universo das bandas de pífano e tudo o que perpassa para além do pífano e que envolve a tradição do instrumento.
Marcos do Pífano, 61 anos, é outro pifeiro que teve sua vida transformada a partir da relação de amizade que manteve e mantém com João do Pife. Porém, mesmo antes de conhecer o mestre de Caruaru, toda a sua família já estava envolvida com o instrumento. “Eu vim de uma família que é de banda de pífanos, que existe há mais de 130 anos, é o Terno de Zambuba da Barra de Caropotós. Então iniciei minha trajetória com 9 anos acompanhando meu pai em novenas”, relembra.
Carapotós é um distrito da zona rural de Caruaru, com uma área quilombola não reconhecida, que foi onde Marcos nasceu e se criou. Era ali também que o mestre trabalhava com seu pai fazendo carvão, o pife era apenas um passatempo nas horas livres. “Quando aparecia alguém chamando eu tocava, teve um dia que Seu João do Pife mandou um emissário me chamar que tava precisando de mim pra tirar uma tocada dele lá no Rio de Janeiro”, contou. Marcos lembra que teve que ensaiar com João do Pife para aprender a tocar as músicas do show, já que estava mais acostumado em tocar nas novenas, e que de início não conseguiu acompanhar a banda.
“Mas você vai pra viagem com a gente vai tocar prato e meu cunhado assume o pife. E chegando lá, o menino adoeceu e eu acabei tocando pífano mesmo”, contou aos risos. Acolhedor e atencioso, seu Marcos atualmente dá aulas de música em centros sociais de Caruaru e na sua amada Carapatós. Transmitir os saberes do pife para as novas gerações é sua missão de vida, e é algo que ele sempre se preocupou em fazer. “Chegou um momento, dentro desses 40 anos que eu tenho no pife, que eu pensei que fosse acabar a tradição”, conta.
“Na época, os garotos que nós ensinávamos, não tinham muito interesse em levar adiante. No meu território, os mais antigos estavam morrendo e não tinham substituição. Hoje em dia, eu sou muito feliz em ver esses jovens tocando e seguindo com o pife”. Para Marcos, além de manter a tradição do pife viva, aprendendo a cultura, as novas gerações cultivam essas raízes porque para ele o pife é uma ferramenta de resgate de vida, é uma profissão que eles tão aprendendo a mais. Do pífano eles podem tirar o sustento deles.
De acordo com o mestre, quando ele ensina alguém a tocar pífano ele tenta passar também para o aluno o respeito que o instrumento carrega. “Isso aqui é respeitado em qualquer canto. Pode ser no meio de doutores, presidentes, intelectuais, o pife é apreciado no mundo todo”.
Por trás do homem alto e forte, seu Marcos do Pífano é uma pessoa doce, gentil e atenciosa. Um típico mestre, que se preocupa com o bem estar de todos a sua volta. Sempre tem um cafezinho para oferecer e uma história para contar. O mestre é casado há trinta e três anos, tem quatro filhos: duas garotas e dois garotos e atualmente trabalha como professor de música no Centro de Educação Popular Irmã Werburga e dá aulas particulares de pífano em sua casa.
Origens do Pífano
Na tradição da cultura popular do nordeste brasileiro, o pífano, ou apenas pife, é um tipo de flauta transversal, em formato de cilindro. Suas origens remontam a tradições indígenas e da Europa medieval. Os grupos têm suas origens remotas nos grupos musicais que aportaram na América Portuguesa e Espanhola durante os diferentes ciclos de povoamento a partir do século 16.
Em Pernambuco há uma forte tradição de bandas de pífanos, especialmente no Sertão e Agreste do Estado. As bandas pernambucanas recriam os conjuntos de flautas e bombos que acompanhavam festas, procissões, celebrações litúrgicas ou profanas e, também, grupamentos militares. O pife é encontrado em diversos materiais como bambu, taboca, taquara, ferro, alumínio, e até mesmo em tubo PVC.
“Se formos ver com os mestres e pífanos do estado, é unanimidade a referência a uma história indígena do instrumento. Todos eles dizem que é som de índio, que vem dos índios. E, de fato, essa iniciativa de fazer o instrumento a partir dessas plantas, do bambu, remonta muito a uma tradição indígena e hoje temos também alguns povos indígenas de Pernambuco que tem o pífano como um instrumento muito importante dentro dos seus costumes tradicionais”, explicou Lucas Furtunato, historiador, pifeiro e pesquisador do instrumento.
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Lucas fala da relação do instrumento com as novenas da religião católica, que é muito forte em praticamente todos os povos indígenas do Estado e também dos rituais tradicionais dos povos originários, como a Toré, ou o ritual sagrado xukuru da busca da lenha em junho, o ritual dos Pankararu com o menino do rancho que tem pife e muitos outros.
“Claro que tem também essa contribuição europeia para essa tradição, que vem de uma origem militar porque é um instrumento de banda marcial. E que, tem mais ou menos a mesma estrutura do pífano que a gente conhece aqui”, afirma o historiador. Ele explica que o pífaro europeu, variando a matéria prima, obedece a mesma manufatura do primo nordestino. Sete orifícios: o da embocadura e os outros seis digitadores como o nosso pife.
Então, pode-se dizer também que é um instrumento que carrega em sua origem as reminiscências do período de formação brasileira, momento marcado por conflitos. “É uma representação da experiência colonial, essas culturas dialogam, se chocam, tensionam e se refazem, né? E isso o que nós conhecemos como banda de pífanos hoje em dia é uma formação certamente muito antiga, que também se transformou”, explicou Lucas.
O historiador ainda fez questão de esclarecer que a banda de pífanos não é formada só por pifes, e existem mestres de bandas de pífanos que não são, necessariamente, pifeiros. São zabumbeiros, caixeiros, que dominam a artesania da construção dos instrumentos e a performance musical.
“Por exemplo, eu já vi banda em que os pifeiros mais antigos faleceram ou deixaram de tocar por alguma ocasião e quem conseguiu sustentar, até mesmo o repertório de pífano são os percussionistas. Eles não tocam pife, mas tem memória das músicas, dos toques e passam para os novos pifeiros”, afirmou.
Como em todas as manifestações da cultura popular, as atividades em uma banda de pífanos seguem uma lógica desse universo particular. O próprio instrumento não é afinado na mesma escala ocidental, que a gente conhece, ele é afinado a partir de uma outra lógica do processo rudimentar de fabricação. “Seu João do Pife mesmo fabrica o pífano a partir da medida das palmas de sua mão, dois dedos de um furo pro outro e é assim”, fala Lucas.
Até por essas características rústicas, o instrumento não costuma ser a primeira opção dos mais jovens para aprender. “Quando eu comecei a tocar, seu João do Pife falava pra mim que não tinham muitos jovens querendo aprender a tocar pífano e eu acho que até por isso ele me incentivou tanto”, disse Vitória do Pife.
“Eu acho que de sete anos pra cá, uma nova geração de jovens vem se interessando pelo pífano e o instrumento vem ganhando uma grande proporção, tanto aqui pela região Nordeste – não tanto quanto o merecido – quanto fora. Tem blocos de pífano em São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Curitiba”, relatou a pifeira. Aqui, a jovem para, reflete e demonstra uma rara sensibilidade para o trabalho dos mestres e reconhece que esse sim ainda está longe de ser valorizado. “Não se pode dizer a mesma coisa dos mestres, porque o pessoal acha bonito o pife e não enaltece o trabalho deles, mas se não fossem eles, nós não teríamos acesso à cultura”, refletiu com maturidade.
O mestre Marcos do Pífano demonstra esse incômodo com a desvalorização do instrumento, tanto pelos moradores da cidade, quanto pelas autoridades públicas. “Ainda tem um déficit de atenção muito grande com o pife aqui, até dos alunos mesmo. Faltam mais daqueles que escutam, têm paciência, e entendem o valor disso aqui”, desabafou.
Renovação
Como está acontecendo com várias das expressões da cultura popular de Pernambuco, o pífano passa continuamente por um processo de renovação, e o importante é que os representantes da velha e da nova geração dialoguem e se ajudem. Pelo menos é assim que pensa Vitória do Pife. “Ninguém vai viver para sempre, então é importante que o conhecimento seja passado e o aprendiz tem que procurar conhecer. O ponto é saber unir bem, é fazer um laço, nem amarrar mais de um lado, nem amarrar mais do outro”, opinou. “Um laço com uma linha tradicional e uma linha contemporânea, juntar para transmitir os dois sem tirar a essência do que foi aprendido”.
De acordo com a pifeira, alguns pontos dentro da tradição são fundamentos que não se podem mexer. Ela cita como exemplos a forma de tocar o pífano, o respeito pelos mestres que ensinam a cultura, o jeito de fazer o instrumento, o que se toca no pife, tudo isso influencia na manutenção da tradição, mesmo com novos elementos. É preciso olhar para o futuro, respeitando a essência que veio do passado. Apesar disso, ela deixa claro que é favorável à inovação dentro dessas realidades. “Eu também acho a inovação necessária para que aquilo ali não fique engessado, né? É igual ao barro. Nós podemos fazer de várias formas e ele não deixa de ser barro”, refletiu.
De família de músicos e batizado em homenagem ao célebre compositor austríaco do período clássico, o maestro Mozart Vieira, 61 anos, começou a sua relação com o pífano desde muito novo por influência direta de seus pais. “Minha mãe vem de uma família de músicos e meu pai é ligado à cultura popular, então eu nasci nesse caldeirão. Cresci ouvindo o som de zabumba, triângulo, sanfona e o pífano, que é a expressão mais forte de música instrumental aqui na região”, disse.
Para o maestro, o caminho para se tornar músico foi natural, a flauta transversal foi o instrumento que escolheu para estudar de maneira formal. “A semelhança da flauta com o pífano me aproximou porque desde que eu me entendo por gente eu toco o pífano, é uma grande paixão da minha vida”, contou. Apesar de toda essa linhagem familiar, Mozart foi mais um dos que tiveram a vida transformada a partir do mestre João do Pife. “Eu já conhecia João do Pife desde criança de ver tocar, fui crescendo e admirando ele. Quando foi no ano de 1979 eu o conheci e fiz amizade com ele e fiquei mais apaixonado pelo pife em função de seu João que se tornou um mestre pra mim, um guru mesmo, eu acho ele uma entidade do pífano”, declarou.
Foi a partir da amizade e da parceria com João do Pife, que ambos fundaram a Orquestra de Pífanos de Caruaru. Projeto que reúne grandes mestres do pife, de diferentes gerações num supergrupo. Este ano, na primeira noite de programação do maior palco do São João de Caruaru, no Agreste, o maestro Mozart Vieira reuniu 150 músicos, com representantes de várias gerações, para uma apresentação da Orquestra.
“A orquestra completou 15 anos agora na abertura deste último São João e agora temos certeza de que o pífano vai ter uma longevidade porque a juventude o abraçou mesmo nos últimos tempos”, revelou o maestro. Mozart conta que em algum momento, particularmente na década de 1980, sentiu medo de que o instrumento fosse esquecido já que passou algum tempo colocado de lado e sem uma renovação.
É até por isso que ele faz questão de destacar a importância da nova geração de pifeiros e pifeiras para a cultura. “Hoje em dia com essa nova geração, quem está se interessando pelo instrumento são as crianças e isso é muito lindo porque já garante o futuro do instrumento”, explicou. Segundo Mozart, esse novo olhar para o pife surgiu nos últimos anos a partir do aparecimento de jovens pifeiros, inclusive atraindo grandes instrumentistas brasileiros para a cultura, como Carlos Malta que tem um projeto chamado pífano moderno. “Dentro desse contexto foi importante também o resgate e a preservação do repertório da Banda de Pífanos de Caruaru”.
A luta feminina do pife
Muito já se avançou e se modernizou ao longo dos anos no pífano, mas se tem algo que ainda permanece estagnado é a baixa presença feminina tocando o instrumento. Quer dizer, como em toda a cultura popular, as mulheres sempre estiveram presentes, mas seu protagonismo era diminuído ou invisibilizado pelo machismo da época. Isso melhorou, embora a estrada em busca por igualdade ainda seja longa.
“Hoje em dia, as mulheres vêm percebendo que podem ser quebrados esses padrões que antigamente eram muito estruturais, como esse pensamento de que a mulher não podia ocupar papéis de liderança. Hoje ainda temos resquícios disso, mas com bem mais acesso a conhecimento e preparo, além de um rede de apoio entre mulheres”, relata Vitória do Pife.
De acordo com a pifeira, em sua experiência dentro dessa cultura ela nunca percebeu nada que a desmotivasse por ser uma mulher. “Pelo contrário, todos os mestres de Caruaru, seu João, seu Marcos, seu Vavá, todos eles sempre me incentivaram muito e gostam muito de mim. Mas eu sei que nem sempre é assim”. Vitória conta que além do apoio dos mestres, sua presença como mestra, naturalmente, incentiva outras mulheres a tocarem o instrumento.
“Eu vejo que muitas mulheres e meninas também se sentem contempladas de ver que eu tô ali representando esse papel, sabe? Porque aqui em Caruaru só tem homens mestres pifeiros e pelo sertão afora também é só homem”, conta a jovem. “Hoje em dia, eu recebo muitos relatos de mulheres que querem ter aulas comigo pelo fato de eu ser mulher, por se sentirem mais confortáveis, e que é gratificante me ver no palco ocupando esse espaço”, completou Vitória, que foi a primeira mulher integrante da banda de pífano Zé do Estado, da cidade de Caruaru.
O historiador e pifeiro Lucas Furtunato relaciona essa realidade feminina no pife a questões da nossa formação enquanto sociedade. “Isso aí é uma marca do patriarcado, que permanece em vários campos da sociedade e dentro da cultura popular. Até se a gente vê algumas pesquisas que foram feitas mais recentemente de inventário, levantamento de bandas de pífano, são pouquíssimas as mulheres que ocupam esse lugar de tocadoras”, disse.
“Embora, a gente não possa jamais esquecer que as mulheres, de maneira muito contundente, sempre participaram das bandas de pífanos. Elas podem não participar enquanto as tocadoras que estão de frente as bandas, mas elas sempre estiveram dentro das demais atividades que as bandas fazem, seja da confecção de figurino, cuidar da logística”, explicou. “Essas mulheres foram invisibilizadas mesmo, mas não se engane que também são profundas conhecedoras da tradição. Dos toques, da música, do jeito de fazer, do que tá certo, tá errado. E é um cenário que vem mudando, finalmente”, completou.
Antes de Vitória, uma das pifeiras mais reconhecidas foi Isabel Marques da Silva, que era mais conhecida como Zabé da Loca. Seu apelido vem do fato de ter vivido por mais de 25 anos em uma loca, espécie de rocha, fechada por duas paredes de taipa em um sítio nas proximidades de Monteiro, na Paraíba.
Luthier
Como uma boa mestra, Vitória fez questão de aprender o processo de fabricação do pife e hoje já é uma reconhecida luthier na região. “O que me motivou foi a curiosidade, as primeiras vezes que eu vi como era fazer o pífano foi na internet também e eu comecei a fazer em casa o pife de PVC com uma tesoura e uma vela quente. Fazia os buracos no pife e enfeitava, cobria eles de durepox e depois pintava”, explicou.
“Depois, eu fui mostrando a João do Pife que tava fazendo isso em casa e ele viu que eu tava interessada e cada vez mais me incentivou. Aí, ele começou a me ensinar a fazer pífano na oficina dele, feitos de bambu mesmo no fogo quente do carvão”, disse. Vitória lembra que João do Pife ensinou como tirar a taboca do pé de bambuzal e fez um forno para ela fazer os pifes em casa. “A partir disso, eu fui criando uma independência financeira porque eu tocava pífano no semáforo e nas praças e aí foi uma grana extra fazer e vender o pífano”.
Até hoje, Vitória do Pife vive apenas da sua arte. Dá aulas de pífano no quintal da sua casa para as crianças que moram na rua da casa dela, no bairro do Salgado em Caruaru. Está focada na carreira musical, com aulas semanais de canto e preparação vocal.
Vitória do Pife, representa toda uma juventude que vem se empenhando em trazer novos ares para a música popular pernambucana. A artista faz uma apresentação destinada a estabelecer conexões entre as mais diversas riquezas culturais do estado e do país. Seu pífano passou pelo coco, pelo frevo, conversando com bastante harmonia com violões, guitarras, berimbaus e batidas eletrônicas. Ao final de seus shows, ela costuma aparecer de La Ursa numa fantasia colorida, que ela mesmo confeccionou e cuja ideia era representar o mistério do pife.
Bandas de pífano como Patrimônio Nacional
Foi a partir de um álbum que produziu com João do Pife que Amaro Filho, produtor cultural e documentarista, se interessou pela cultura do pífano. “A partir desse disco, a gente continuou a trabalhar com seu João, a fazer produção dele e caímos na realidade do que é esse universo de bandas de pífano”, falou.
De acordo com Amaro, nesse processo de produção de João do Pife e com as viagens em turnê, ele começou a observar que era algo muito maior do que se pensava. “Circulamos com João pelo estado, depois pelo país e até internacionalmente em um encontro que existe no sul da França”, relembrou. Foi a partir disso que ele e seus sócios da produtora Página 21 começaram a realizar encontros chamados Tocando em Pífanos.
Esses encontros foram a escuta para salvaguarda do instrumento. “Participam mestres, tem o momento da fala deles, tem o show à noite, tem oficinas e a participação vai desde as bandas de raiz até acadêmicos, estudiosos e público geral”, explicou. Do terceiro encontro Tocando em Pífanos surgiu a indicação para o pedido de reconhecimento ao Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) das bandas de pífano como patrimônio nacional, na época do então Ministro da Cultura Gilberto Gil.
“Gil gosta muito de pife, ele diz que o movimento tropicalista nasceu a partir de quando ele ouviu a banda de pífanos de Caruaru, então ele tem uma relação profunda com as bandas de pífano. Então, aproveitamos e fizemos o pedido”, relatou Amaro. A primeira coisa foi a realização de uma capacitação na formatação de pesquisa que o IPHAN tem.
“Nós fizemos essa capacitação e depois fizemos um projeto de pesquisa e mapeamento, começando pelo Agreste. Essa etapa resultou em um livro. Depois fizemos o Sertão do Pajeú, Moxotó e Central que também resultou em um livro. Tudo isso através de editais”, explicou o produtor. A última fase da pesquisa foi em Itaparica, São Francisco e Araripe. “Fechamos o Estado mapeando mais de 80 bandas do Agreste ao Sertão”.
Essa pesquisa fundamentou o pedido para as bandas de pífano se tornarem Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira e depois de cinco anos o IPHAN emitiu uma nota técnica falando da pertinência do pedido, mas indicando que ainda faltavam alguns estados para a pesquisa: Ceará, Bahia, Paraíba e Minas Gerais.
“Então, ficamos nessa espera. Veio o Governo Federal passado que era um bando de incultos e fez com que nada avançasse na cultura como todos sabem e o IPHAN foi completamente desmantelado. Então, as coisas não caminharam. Agora com a volta do IPHAN, tem um edital de chamamento público para organizações da sociedade civil finalizarem essa pesquisa para o processo de reconhecimento do patrimônio nacional seguir”, detalhou um dos sócios da produtora cultural Página 21.
O próprio IPHAN cita a Página 21, e aqui não falamos só de Amaro Filho, mas também de Cláudia Lisboa, Eduardo Monteiro e Rafael Coelho no processo de chamamento para a patrimonialização. O IPHAN baseou-se nas pesquisas da produtora e esse ano o Estado de Pernambuco também entrou com um pedido fundamentado na pesquisa da Página 21 e em agosto deste ano as bandas de pífano de Pernambuco foram reconhecidas como patrimônio imaterial da cultura pernambucana.
“O que é interessante dizer é que isso não é uma coisa só da Página 21, tudo isso nasceu do encontro coletivo com abaixo assinado, com participação de pessoas diversas, de bandas de pífano, de mestres, de estudiosos. É uma iniciativa coletiva com etnomusicólogos, antropólogos, historiadores”, fez questão de destacar Amaro. A pesquisa da produtora mapeou mais de 80 bandas de pífano em todo o Estado de Pernambuco.
A pesquisa e mapeamento das bandas de pífano em Pernambuco começou em meados de 2010, atendendo o Agreste Central e os Sertões do Moxotó, Pajeú e Central. Foram catalogadas bandas extintas e ativas, bem como os pormenores socioculturais que circundam essa forma de expressão – os novenários, a questão do meio ambiente atrelada à existência da matéria prima necessária para o fabrico dos instrumentos, a evolução musical das bandas e as nuances que se evidenciam a cada região visitada.
“A necessidade da salvaguarda é urgente porque senão os mestres vão embora e o repasse para essa nova geração ficaria ainda mais difícil”, refletiu. Ainda nesse sentido, Amaro enxerga a nova tradição com entusiasmo e esperança. “É muito saudável, temos muitos jovens pifeiros com o pé na tradição. E é assim que deve ser. Vitória do Pife, por exemplo, ensina o pife. Alexandre Rodrigues é outro que é professor”, afirmou. “Eu vejo com bons olhos, desde que haja a relação, o respeito e o reconhecimento com as bandas de pífano, que é de onde vem tudo”.
Uma tarde na oficina com João do Pife
Era intenção desta reportagem ter uma conversa com o onipresente João do Pife, entidade do instrumento e mestre dos mestres em Caruaru. E até chegamos a ir em sua oficina, eu e a minha sócia nesse projeto a jornalista, documentarista e gentil companheira de viagens Gabriela Passos numa tarde de setembro. Fomos muito bem recebidos com muita alegria e entusiasmo, que parecem ser característicos de seu João, e ele nos contou diversas histórias e causos da sua trajetória artística.
Do alto dos seus 80 anos, o mestre demonstra uma vivacidade e inquietação impressionantes. Durante nossa tarde na oficina, que mais parece um santuário sagrado do instrumento, seu João não ficou parado um minuto sequer. Fez café pra gente, fabricou alguns pifes, falou sobre algumas de suas turnês internacionais, conversou sobre sua relação com Marcos do Pífano e com Vitória do Pife e contou como foi o início da sua trajetória na música.
Deu para entender bem a força e o brilho que seu João tem e empresta a todos que passam pela sua vida. O Patrimônio Vivo de Caruaru é uma pessoa atenciosa, bem-humorada, sábia e simples que trata todo o mundo que chega no seu espaço de trabalho como se fosse um amigo de longa data ou até mesmo um parente. Um senhor apaixonante que parece não se importar com o tamanho de sua envergadura para a cultura popular. Por uma série de questões, não conseguimos autorização para uma entrevista formal no dia, mas ficamos de voltar lá e negociar. Dois dias depois, no domingo (10/09) seu João perdeu sua companheira de 50 anos, Luiza Regina dos Santos.
Resolvemos respeitar a dor e o luto do mestre e não insistir em uma entrevista, ficamos com a lembrança mágica de uma tarde fascinante ouvindo por algumas horas histórias de um dos maiores mestres da cultura popular de Pernambuco.
Esta reportagem foi produzida com apoio do edital Acelerando Negócios Digitais, do ICFJ em parceria com a Meta.
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Esta reportagem foi produzida com apoio do edital Acelerando Negócios Digitais, do ICFJ em parceria com a Meta.
Créditos:
Reportagem: Yuri Euzébio e Gabriela Passos
Fotos: Hugo Muniz, Ivson Gambarra e Gabriela Passos
Edição: Paulo Floro
Revisão: Alexandre Figueirôa
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