IT’S ONLY ROCK N’ ROLL, BUT I LIKE IT
Incríveis HQs que têm a música como mote principal
Por Dandara Palankof
Colunista da Revista O Grito!
Estive, nos últimos dias, na expectativa de mais uma edição do festival No Ar Coquetel Molotov – meu preferido, provavelmente. Música (pop, principalmente) e histórias em quadrinhos são, definitivamente, as coisas que mais me tocam nesse mundo e assistir a shows é o ápice da apreciação do primeiro. Tão bom quanto ler um gibi arrebatador.
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Aproveitando o ensejo de mais uma edição fantástica do festival, então, achei que talvez fosse bem apropriado falar da ligação entre essas duas expressões artísticas, que é mais estreita do que se possa pensar em um primeiro momento. E não apenas com a influência da música sobre as histórias em quadrinhos, verticalização primeira que vem à mente. Mas também no contrário – músicas com influências quadrinísticas, tema que tive o prazer de debater com os músicos Germano Rabello e Matheus Mota, a convite do pessoal do blog Outros Críticos.
Mas como o papo aqui são mesmo as histórias em quadrinhos, vamos começar pelo óbvio: quadrinhos com influência musical. Na maioria dessas histórias, a música é um moto para seus personagens – as meninas de Lôcas, gibi que comentei na coluna anterior, por exemplo, vivem o movimento punk, sendo Hopey baixista de uma banda; mesmo instrumento de nosso último grande herói nerd, Scott Pilgrim, o garoto que praticamente só veste camisetas dos Smashing Pumpkins. Há os melancólicos desencontros musicais dos ensaios d’A Pior Banda do Mundo (série de álbuns do quadrinista português José Carlos Fernandes; se não conhece, corra MUITO atrás).
Há vários outros pra citar, mas nesse primeiro momento – provavelmente vou ter que voltar ao assunto no futuro –, gostaria de destacar duas séries que acho bastante inusitadas no tratamento dado ao rock n’ roll e à música pop; ambas perpassam sua história de forma a desenvolver sua trama; mas a música é não apenas o pano de fundo, mas sua força motriz.
A primeira é Red Rocket 7, de Mike Allred. Você talvez o conheça por sua icônica série Madman ou por sua fase desenhando a equipe mutante X-Factor, futura X-Statics, ao lado do roteirista Peter Milligan (uma das melhores séries que a Marvel teve peito de publicar nos últimos anos, sem dúvida). Humor nonsense e as descaradas referências da pop-art são, provavelmente, as principais características deste quadrinista norte-americano. Em RR7, o humor é colocado um pouco de lado para que Allred possa reverenciar outras grande paixão de sua vida: o rock n’ roll.
O gibi, uma minissérie em (obviamente) sete edições, foi publicado na gringa pela Dark Horse em 1997; mas só chegou às terras tupiniquins dez anos depois, publicada em volume único pela Devir Editora. A trama começa no momento em que Red, um novo astro do rock em ascensão, revela sua história a uma jornalista: ele seria, na verdade, o sétimo (duh) clone de um ser humanóide conhecido como apenas como “O Original”, vindo do planeta Celeston; perseguidos por uma raça conhecida como os Enfinitos, os celestonianos se dividiram pelo universo, contando com uma futura reunião na Terra, prevista em suas escrituras.
A partir daí, vamos descobrindo mais detalhes através das narrações de 5, o “arquivista” dos clones e de cartas escritas por 7 à Crazy Dog, índio que, por acidente, recebeu os visitantes extraterrestres; cada clone herdou uma aptidão d’O Original de forma amplificada, cabendo à 7 os dons musicais. É assim que, no início dos anos 1950, quando ele resolve conhecer o mundo, acaba se envolvendo de forma íntima com a história do rock n’ roll, ritmo “econômico na forma e complexo em emoção”.
Sempre nos bastidores – pois a fama poderia atrair os Enfinitos, ainda em sua busca incessante –, 7 aprendeu a tocar piano com Little Richard, ensinou passos de dança a Elvis, virou um dos melhores amigos de John Lennon e foi a principal influência sobre David Bowie, tanto sonora quanto visualmente. E isso só para começo de conversa. Se não participou, direta ou indiretamente, 7 presenciou vários outros momentos que viriam a se tornar marcos da história desse gênero musical, enquanto crescia sua paixão pela música a constante sensação de um acorde que ouvia em sua cabeça, mas não conseguia externalizar.
O gibi é divertidíssimo, não apenas pelas inúmeras referências entremeadas à trama de ficção científica à la Flash Gordon (e jogadas na página, descarada ou discretamente), mas também pelo ritmo da história, recheada de ação com um pequeno tempero de ultra-violência e que consegue manter o leitor sempre na expectativa por respostas às tantas questões que são levantadas. Também acredito que uma das principais angústias de 7 seja facilmente reconhecível para muitos leitores – sentir-se tão tocado pela energia e pela emoção do rock n’ roll ao ponto de querer ser parte dele.
Mas admito que me incomoda um pouco a descarada influência da mitologia cristã na história – o que pode ser pura implicância de minha parte; não chega a atrapalhar, mas não consigo deixar o estranhamento de lado ao ver essas características em uma história que deveria, em princípio, brincar com os conceitos sobre o universo e tudo o mais, como um bom sci-fi. Mas essa sou só eu.
De resto, temos a arte limpa e estilizada de Allred, sem grandes experimentações – o que, é claro, não constitui demérito; estão mais do que atestadas as qualidades de Mike como artista. E para dar a ela sua usual e característica paleta de cores quentes, dessa vez ele é acompanhado por sua esposa, Laura Allred. Destaque para a bela edição da Devir, recheada de extras bacanas, como esboços e um pequeno glossário do rock.
Já a outra história nunca saiu no Brasil – algo que, até hoje, não consigo entender. Trata-se de Phonogram, escrito por Kieron Gillen e desenhado por Jamie McKelvie. Atualmente, o título conta com duas minisséries, todas publicadas pela Image Comics (que se reinventou após a década de 1990 e merece os parabéns de qualquer apreciador de HQs) – mas ainda não tive o prazer de botar meus olhos na segunda; a primeira saiu em 2006, chama-se “Rule Britannia” e é sensacional pelo seguinte:
Muitas culturas consideram a música como um dispositivo para acionar outros estados de consciência, contatar outras entidades e tocar outras realidades, certo? Isso é, basicamente, mágica. Pois bem: Phonogram trata disso – magia através da música pop. E no caso de seu personagem principal, do britpop. COMO não achar incrível?
Pois então: o chamado phonomancer David Kohl precisa salvar um dos aspectos de uma deusa; a razão para alguém tão misógino e canalha quanto David ser escolhido é o fato de ter cometido um erro que a desagradou bastante; e também o fato de que Britannia, o aspecto que está sofrendo interferências em sua encarnação (por assim dizer) é uma espécie de representante do britpop – e criadora de Kohl. Com ajuda de Emily, uma phonomancer mais experiente, e Kid-With-a-Knife, seu amigo “normal”, Kohl vai em busca atrás de respostas – assim como nós; afinal, porque ele ainda é tão ligado à Britannia, quando sua identidade já poderia ter sido restaurada após seu batismo mágico?
Totalmente em preto e branco, a arte de McKelvie é relativamente econômica com relação a caracterização dos personagens, mas brinca com mais texturas; primeiro, na tentativa de captar a pesada atmosfera inglesa e de seus clubes friorentos, opressivos e fedorentos onde, segundo o personagem principal, nasceu verdadeiramente o britpop; segundo, para dar uma expressão visual consistente e diferenciada a tudo que envolve o universo mágico da história: passado, mundos memoriais, o etéreo… e se sai muito bem. Há uma sequência na terceira edição que culmina em uma página simplesmente deslumbrante, na qual Kohl se desloca magicamente ao som de “Common People” (do Pulp) em seu walkman (é, isso aí: UM WALKMAN, meus caros).
E aproveitando o ensejo, a história de Gillen é simplesmente sensacional. Seu primeiro objetivo é afirmar categoricamente o que comentamos um pouco anteriormente – e ele o faz com todas as letras no posfácio da primeira edição: música é magia. A partir disso, o roteirista constrói sua história – e um princípio de mitologia – que tem como objetivo dar a sua versão do que foi realmente o britpop; o que significou para aquela geração de britânicos e vários outros aspectos que escapam aos ouvintes que não viveram realmente a cena, o contexto.
E não se trata de um discurso simplesmente saudosista; sobram críticas para todos os lados. Talvez por isso a opção pelos anti-heróis como protagonistas, que podem colocar o tempo todo o dedo na ferida dessa geração desorientada, num país que encarava uma realidade sombria e desesperançosa (e os quadrinhos da época também refletiam esse estado de espírito): como se o britpop fosse a declaração musical de toda aquela juventude conspurcada. É uma declaração de amor suja.
Lógico, as referências são muitas – nesse primeiro volume, pode-se dizer que a principal são os Manic Street Preachers. Mas elas são quase que incontáveis e, pra não deixar o leitor boiando no que poderia virar uma grande piada interna pra inglês ver, os autores também prepararam um glossário ao final de cada edição. Uma verdadeira aula pra quem se interessa pelo gênero. Tudo isso faz de Phonogram uma pequena obra-prima desprezada – um erro que poderia ser corrigido.
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* Dandara Palankof é a identidade secreta da Garota Sequencial. Diz que sua relação com quadrinhos é destino, já que aprendeu a ler com um gibi do Cebolinha. Nerd orgulhosa, marvete e editora do gibi Estranhos no Paraíso, publicado no Brasil pela HQM Editora.”