Bell Puã já estendeu sua arte em diversos formatos. Da poesia do Slam das Minas – do qual já foi finalista em 2017, com versos críticos e afiados na denúncia do racismo. Essa mesma veia artística também chegou na literatura e rendeu três livros com a autoria de Bell, sendo um deles- Lutar é crime – finalista do Prêmio Jabuti em 2020.
Depois de colaborações com cantores pernambucanos, Bell Puã entra também na música, e dessa voz solo. Jogo de Cintura é o trabalho de estreia da poeta, que coloca seus versos para falar de outros assuntos, fora do que a indústria musical espera e fora da imagem que ela formou dentro do Slam.
A música aparece como mais um espaço de reinvenção da arte de Bell Puã, que tem muito a dizer. Com influências da música popular nordestina e de gêneros globais próximos do hip hop, Jogo de Cintura fala sobre as expectativas que cercam qualquer ser humano que viva nesse momento de produtividade e comparação.
Em conversa com a Revista O Grito!, Bell fala das influências e intenções artísticas do EP, reflete sobre a indústria musical e fala sobre expectativas para o trabalho. Confira a entrevista na íntegra.
Você tem uma carreira reconhecidamente profícua na literatura, com três livros publicados, indicada na premiação literária mais importante do país. Agora você muda de campo para se expressar através da música. Qual a relação da música com a literatura na tua vida? alguma delas chegou primeiro e impulsionou a outra?
A música para mim é uma coisa mais antiga que a literatura. Eu estudava violão na igreja Batista Emanuel quando eu era criança e fui estudando até adolescente, porque o meu pai, apesar de ser contador e professor, ele estudou música, estudou violão, até o último período. E aí sempre foi uma coisa muito influente para mim, até que a literatura foi tomando outros espaços, eu acho que pela praticidade, também, que ela foi tomando de [poder] sentar e escrever em qualquer lugar, usar o instrumento da minha voz em qualquer lugar. Eu acho que a literatura foi tomando esse espaço de expressão para mim porque eu estudava história, estava estudando para ser professora, e fui ocupando esse espaço de hobby com a música, mas sempre amei e pratiquei essas duas expressões.
Quando foi em 2019, eu participei do álbum de China, que é o Manual de Sobrevivência para Dias Mortos, eu canto uma faixa com ele. E em 2020, eu participei do álbum Do Meu Coração Nu, que é de Zé Manoel, que é uma faixa que eu recito uma poesia – esse álbum, inclusive, foi indicado ao Grammy Latino.
Depois disso, eu decidi iniciar minha carreira solo com as minhas referências do hip-hop. O Slam Das Minas, apesar de ser um movimento de batalha de poesia falada, a gente levava pandeiro, fazia um som, tinha o 808 Crew, que era o grupo de meninas do rap daqui, que chegavam junto, a FemiGang, a Bione começou a cantar também, a Margot. Nessas referências eu fui me sentindo influenciada a estar no mundo do hip hop. Em 2021 eu lancei meu primeiro single, que foi “Dale”, depois “Bloco de Notas”, aí depois a gente ficou trabalhando pra captar recursos, pra conseguir fazer um trabalho mais sólido, no caso esse EP, que a gente conseguiu captar pelo Funcultura, e aí esse ano eu voltei a lançar, esse ano eu lancei o single passeio, e agora veio o EP.
Racionais, Biel Xcamoso e Tyler The Creator são artistas que são citados por você no material sobre o EP, imagino que sejam influências artísticas. Quais são suas referências nesse trabalho?
Então, o R&B ele tem uma influência bem forte do Drill, então pra mim é uma grande figura que faz trio aqui no rap feminino que eu conheço ainda do corte, mas sobretudo o Cristal, minha referência feminina maior assim no rap, ela é do Rio Grande do Sul e além dela, a própria Bione, eu tive assim, pra música essas referências, além de Tyler The Creator, tem também uma figura chamada Little Simzy que é muito referência pra mim também, além da própria Cardi B que eu gosto muito. Tive essas referências do Hip Hop na música, mas na parte da identidade visual a gente caminhou por outras referências do pop também.
Entre os gêneros que aparecem no teu EP estão o brega-funk, love song, drill e repente. De onde vieram essas influências e como você pensou em juntar isso tudo em um produto só?
É um desafio muito grande, por isso se chama Jogo de Cintura, mas a ideia foi que a gente deixasse a coerência em torno, sobretudo, do Drill, que é aquela base com sintetizadores. E aí a primeira música “Cigana Drill” ali é um Drill mais “classicão”, a segunda que é “Estado das Maravilhas” é a mais destoa, é o feat com o Jéssica Caitano e tem a embolada dela, né, o repente, mas a gente chama de Nordeste Drill, porque a base sonora ainda é o Drill, apesar da característica do pandeiro, que tem essa música, a sanfona, os sintetizadores e essa pegada do Drill ainda pela estética sonora.
Você fala sobre colocar o brega funk no lugar da “reverência e da intelectualidade”, uma frase que faz muito sentido hoje por conta da trajetória do Movimento do Brega rumo à institucionalização. Como você vê a maneira de colocar o Brega nesse lugar?
Eu digo reverência porque tudo que é cultura popular a gente reverencia, o que vem espontaneamente, organicamente, das nossas pessoas, gente como a gente. Mas quando eu digo intelectualidade eu digo, sobretudo, inteligência emocional, que eu acho que o brega funk, assim como outras manifestações de cultura popular, é uma demonstração muito forte de inteligência emocional para viver, para lidar com as questões da vida, porque é muita alegria no corpo, o movimento.
A gente vive em um país de terceiro mundo, Nordeste; segundo o Celso Furtado, é a periferia da periferia, e a gente sabe dos nossos problemas e questões diárias. A gente vê lugares que não tem saneamento básico, mas tem passinho, tem a alegria do passinho, porque é uma forma muito inteligente de suportar os dias.
eu acho muito cansativo esse lugar de que as mulheres precisam estar sempre falando de amor: amor sofrendo, ou com muito tesão, ou gostando.
As faixas do EP abordam temas como as pressões da sociedade da hiperprodutividade e a busca por leveza diante das lutas diárias. Como você lida com essas questões para conseguir colocar elas nas suas músicas?
Eu quero dizer que a gente é muito estimulado o tempo todo, acho que a nossa vida está parada, pouco produtiva, porque afinal, a gente vive no capitalismo, a gente vive no mundo que precisa que a gente esteja produzindo o tempo todo e se sentindo comparado as outras pessoas. E nesse sentido de comparação, de tentar ser as outras pessoas, mais do que a gente mesmo. Eu acho que a gente é muito estimulada a isso, em diversos padrões, seja um padrão de estética, de ter que estar indo sempre pra academia, porque você abre seu story e está todo mundo indo para a academia.
Ou o padrão da própria indústria musical. Uma coisa que eu converso muito com os produtores de musicais e com a minha equipe é que eu acho muito cansativo esse lugar de que as mulheres precisam estar sempre falando de amor: amor sofrendo, ou com muito tesão, ou gostando [de alguém], mas musica é sempre direcionada para os homens, quando na verdade os homens falam do que eles querem, temas diversos: falam sobre droga, falam sobre a vida. A música mais famosa de Oruam é uma música dele falando que nada é impossível.
Enfim, eu fico me lembrando de Nina Simone, ela tem aquela música, “Feeling Good”, e quando ela fala dessa música e de outras coisas da carreira ela diz “A minha inspiração como compositora, e com outras amigas, era que falássemos de um assunto de mulher grande e não era de homem toda hora, de paquera, mas revolução, da fome, das questões sociais”, então na música saia também outras coisas, não saia só música de amor mas parece que…”parece” não, a indústria puxa muito para esse lugar, que é importante, é bom, é legal, mas ele não precisa ser só isso, né? tem tantas coisas para falar.
Você vem do Slam das Minas com uma poesia política e crítica. Como esse talento da poesia e os temas tiveram espaço na composição das letras do EP?
Eu acho que eu carrego o Slam mais no sentido das minhas referências físicas, assim, Cris Andrade e Amanda Timóteo, que criaram o Slam, que botam pra frente e fazem acontecer na rua. Elas participam comigo dos clipes de “Passa Nada” e “Naqueles Pique”, e é muito especial pra mim tê-las junto. Mas o Slam em si, eu acho que foi algo que eu quis fazer diferente na música, eu quis que a música fosse mais desapegada desse lugar e – vou fazer agora uma comparação – do mesmo jeito que a indústria musical quer que eu faça todas as minhas músicas falando que eu gosto de sentar em fulano, ou então que eu vou morrer de amor por fulano, a mesma indústria, no caso da poesia falada, quer que eu só fale de guerra, de morte, genocídio, povo preto. Então, eu não queria que nada me estereotipasse muito.
Você fala sobre a importância de fazer as coisas do seu jeito, como mulher negra carregando sua ancestralidade. Como essa perspectiva se manifesta no EP?
Eu acho que nesse sentido é fazer reverberar a minha autenticidade mesmo a partir das minhas referências ancestrais negras que estão sempre comigo. A capa tem esse vermelho e preto que faz uma referência às cores de Exú, e eu penso em caminhos abertos e minhas ancestrais, por exemplo, minha tia-avó que é Mãe de Santo. Então, apesar de não ter religião, carrego muito forte essa recordação dela.
Eu penso que é uma ancestralidade moderna, digamos assim. Porque ao mesmo tempo que a ancestralidade está lá no meu cabelo, eu acho que é importante lembrar também a primeira música, que é a “Cigana Drill”, é uma música que dá muito a cara do EP. Eu tô com meu cabelo natural, meu cabelo cacheado, eu acho que sou importante também. Acho que foi uma luta muito grande pra eu aceitar meu cabelo. Hoje em dia tem um mercado muito voltado pra estética de [peruca] lace, e eu acho bonito, mas é muito caro, eu não acho tão acessível assim. E é bom lembrar do meu cabelo crespo, que carregue minha ancestralidade aí também.
Mas, no geral, eu acho que eu tô tentando… não estereotipar nada, sabe? Inclusive esse lugar e essa ancestralidade. Porque eu acho que, às vezes, se você fala “ancestralidade”, já se imagina uma estética que tem uma Espada-de-são-jorge e um povo saindo das águas. Não sei, eu acho que as vezes tem uns estereótipos, sabe? Ancestralidade às vezes pode ser uma roupa da moda.
O brega funk, assim como outras manifestações de cultura popular, é uma demonstração muito forte de inteligência emocional para viver, para lidar com as questões da vida.
Nas duas últimas respostas você fala dessa quebra de estereótipos e como não devemos montar essas imagens calcificadas das coisas. De onde vem essa vontade de quebrar estereótipos, mostrar que nem tudo é como imaginamos?
Eu acho que vai da honestidade mesmo de como eu sou. Eu realmente ocupo minha mente muito além do romantismo, por exemplo, para ficar fazendo todas as minhas músicas românticas. Eu realmente leio sobre isso, escrevo sobre isso, e acredito que a ancestralidade vai muito além da repercussão em roupas parecidas com as do candomblé ou em certas plantas características, né?
Tem muita ancestralidade na pitangueira aqui de casa, que é uma planta que meu pai cultivava muito quando ele era mais novo. Meu pai é indígena, e ele é um grande cultivador de plantas, é aquela pessoa que pega uma mudinha bem pequena e faz virar uma árvore e ele faz isso com várias plantas, então todo tipo de planta nativa tem ancestralidade também. Não sei, eu fico só tentando ver as coisas além do que a gente é estimulado e adaptado a achar, porque eu acho que a gente pode sempre entender tudo como uma grande pesquisa. Eu acho que ser pesquisadora e historiadora me ajudou muito nisso: ver as coisas sempre como uma grande pesquisa, as coisas nunca estão prontas.
Quais as expectativas para o EP? O que você espera que o público sinta ao ouvir?
Poxa, eu espero, como tudo que eu faço, nesse meio artístico que eu comecei a fazer, e até como historiadora também, que seja uma contribuição muito grande, uma contribuição de sonora, uma contribuição imagética, uma contribuição de mensagem para a vida. Eu acho que se tem alguma expectativa, seria essa, de poder estar contribuindo para a nossa cultura, para o dia a dia das pessoas.
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