Ensaio: Planetary

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ARQUEOLOGIA POP
HQ se tornou um clássico por escavar a história secreta do século 20

Por Rodrigo Emanoel Fernandes
Especial para a Revista O Grito!

Planetary é uma história em quadrinhos criada e escrita pelo britânico Warren Ellis, desenhada e colorida, respectivamente, pelos americanos John Cassaday e Laura DePuy Martin, composta por 27 edições de 22 páginas (mais um preview de 8 e três crossovers de 48) publicadas pela editora WildStorm e impressas e distribuídas pela editora DC Comics, ambas americanas. A primeira edição chegou ao mercado em abril de 1999, divulgada como uma série mensal, entretanto atrasos no processo de criação logo tornaram o título bimestral e, posteriormente, sem periodicidade definida, com uma edição nova saindo apenas quando seus autores conseguiam concluí-la, em intervalos que variavam de três meses até dois anos (o epílogo, na edição 27, só foi publicado em Outubro de 2009).

A trama é centrada nas atividades da Fundação Planetary, uma organização arqueológica transnacional com filiais em todas as grandes cidades do mundo, dedicada à tarefa de escavar, salvar, registrar e mapear a “História Secreta do Século 20”. Os episódios acompanham as missões da equipe de campo do Planetary, formada pelos (super) arqueólogos Elijah Snow, Jakita Wagner e o Baterista, sob ordens de um personagem misteriorso conhecido apenas como o Quarto Homem. O lema da fundação, repetido em inúmeras variações durante toda a série, é o ambíguo: “É um mundo estranho… vamos mantê-lo assim”.

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A HQ pertence, em princípio, ao gênero super-heróis, e como tal, além de contar com personagens dotados de poderes especiais, é publicada de acordo com a singular estrutura narrativa adotada pelas editoras americanas que se dedicam ao gênero, na qual todos os títulos individuais fazem parte de um mesmo “universo ficcional”, um continuum espaço/temporal compartilhado por todos os personagens (protagonistas e coadjuvantes) cujos direitos pertencem a uma mesma editora. Para aqueles que não têm intimidade com o gênero, basta dizer, por hora, que existem dois grandes “universos”, cada um pertencente à uma das duas maiores editoras americanas, Marvel Comics e DC Comics, e diversos “universos menores” pertencentes a selos, subdivisões editoriais (como o Universo Ultimate da Marvel ou a Vertigo da DC) e editoras menores como a Image Comics, conglomerado no qual cada estúdio constitui um universo ficcional independente.

A WildStorm Productions era originalmente um estúdio da Image, até ser adquirida pela DC em 1999. Sendo uma editora jovem, seu universo ficcional abarcava poucos títulos e nem de longe possuía o mesmo tipo de complexidade que a Marvel e a DC acumularam durante décadas de publicação ininterrupta, com contribuições de centenas de artistas e criadores. A proposta de Warren Ellis com Planetary seria de aproveitar a insipiência desse universo para explorar de forma mais direta essa estrutura editorial/ficcional exclusiva do gênero super-heróis, explorando possibilidades que extrapolam o gênero em si.

– Por que você me inventou?
– Muito bem. Não é uma pergunta fácil. Existe cinema no lugar de onde você veio? Fotos em movimento? Nós temos uma relação estranha com a nossa ficção, entende? Às vezes tememos que ela esteja nos dominando. Outras vezes imploramos para que ela nos domine… Algumas vezes queremos ver o que há dentro dela. Esse era o perfil inicial do projeto: criar um mundo fictício e depois pousar nele. Uma missão para recolher amostras. Trazer alguém de uma realidade fictícia.
Warren Ellis
Planetary #09

Ao fazer de seus “super-heróis” arqueólogos explorando a “história secreta do século XX”, Ellis não estava interessado exatamente no “nosso” século XX ou mesmo no século XX fictício do Universo WildStorm. A temática metalinguistica da série é a exploração da história imaginária do século XX. Ou seja, partindo do princípio de que a arqueologia (segundo o Wikipedia) é a disciplina científica que estuda as culturas e os modos de vida do passado pela análise dos vestígios materiais, uma equipe de arqueólogos que exista dentro de uma história em quadrinhos teria que, necessariamente, encontrar vestígios materiais pertencentes ao passado histórico dos próprios quadrinhos e, no limite, da cultura pop da qual fazem parte.

Warren Ellis e John Cassaday fabricaram um engenhoso mecanismo com a ajuda do qual podem explorar as possibilidades de nossa situação contemporânea (…). Os heróis do conto deles não são combatentes do crime, nem guardiões globais, mas (…) arqueólogos. Pessoas escavando sob a superfície do mundo para descobrir seu passado, seus segredos e suas maravilhas. Nesse caso, entretanto, o mundo que está sob a escavação não é a nossa esfera imediata, embora seja tão familiar quanto. Ao invés disso, abrimos passagem para um planeta que não é nada mais do que a paisagem acumulada de quase uma centena de anos de fantasia e histórias em quadrinhos. (Alan Moore: Introdução à Planetary – Mundo Estranho (Devir))

Em suas missões, a equipe de campo do Planetary depara-se, entre outros exemplos, com restos fossilizados de monstros gigantes numa ilha desabitada no extremo norte do Japão (muito semelhantes ao Godzilla e demais monstros populares no cinema japonês dos anos 50 e 60); investigam as ruínas de uma instalação secreta do governo americano onde presos políticos, condenados como simpatizantes do comunismo, se tornaram cobaias de experimentos com radioatividade, gerando mutações, formigas gigantes, homens-inseto e todo tipo de aberrações (evocando os velhos filmes de ficção científica dos anos 50); entrevistam um velho general da reserva que lhes revela a existência de um físico brilhante na década de 60, que se transformou numa criatura monstruosa ao ser vítima de um acidente com uma bomba criada para “reescrever” a realidade (claramente, uma versão alternativa do Hulk, cuja estréia nos quadrinhos foi de fato em 1964).

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Na “realidade” de Planetary espiões indestrutíveis como James Bond realmente lutaram nas sombras da Guerra Fria. Aventureiros das pulp fictions do início do século XX, como Doc Savage, o Sombra e Dr. Fu Manchu, formavam uma associação secreta que interferiu até mesmo no desenrolar das Grandes Guerras. O próprio Elijah Snow visitou as ruínas do laboratório do Dr. Victor Frankenstein, aprendeu técnicas de investigação com um idoso Sherlock Holmes, conheceu um lorde criado por animais na África em tudo semelhante a Tarzan, e seus maiores inimigos são uma equipe de cientistas conhecida simplesmente como Os Quatro, dotados de poderes similares ao Quarteto Fantástico, série considerada como o marco fundamental da Marvel Comics, a partir dos anos 60.

Assim, o “universo ficcional” de Planetary, diferente dos universos aos quais os leitores de super-heróis estão habituados, extrapola a WildStorm em si e abarca todo o histórico da ficção fantástica do século XX. A série, assim, apresenta múltiplas possibilidades de leitura, dependendo do nível cultural do leitor e sua capacidade (e intenção) de reconhecer as referências que vão surgindo em cada episódio, sempre apresentadas na forma de re-criações reconhecíveis, tanto para proteger os autores de possíveis questões legais de direitos autorais, quanto por uma intencional postura crítica e necessidade de re-invenção de todo esse background ficcional (um exemplo: apresentar Os Quatro como vilões desumanos poderia ser interpretado como um comentário ácido a respeito das mudanças que o gênero super-heróis sofreu a partir do apogeu da Marvel Comics na década de 60).

A própria estética da série acompanha a metalinguagem que seus autores desejam trabalhar. Estilos de desenho, diagramação e cores apropriam-se das características estéticas dos temas “escavados” em cada edição, embora sem abrir mão de uma identidade que se sobrepõe aos diferentes estilos. A edição 3, que remete ao cinema de ação de Hong Kong, incorpora um lay-out que emula as telas widescreen e o ritmo de ação frenético dessas películas. A edição 11, que apresenta o personagem John Stone, um misto de James Bond e Nick Fury, reproduz um estilo gráfico muito semelhante ao trabalho do artista Jim Steranko, que assinava a HQ Nick Fury, Agente of Shield, da Marvel, nos anos 70.

As capas apresentam design diferente a cada edição, de acordo com o conteúdo abordado. A capa da edição 7 reproduz o estilo das capas do artista plástico Dave Mckean, que se tornaram símbolo do selo DC/Vertigo nos anos 80. A capa da edição 17 emula os temas típicos dos livros clássicos de aventuras na selva, em especial os de Edgar Rice Burrougs, autor de Tarzan. No número 8 a capa é quase um cartaz genérico para filmes B de ficção científica dos anos 50. A edição 22 chega a emular a textura desgastada de um velho gibi de faroeste dos anos 40.

Certas teorias especulativas da física moderna (que, de um modo ou de outro, sempre teve um lugar garantido nos universos da ficção científica/fantástica) também foram apropriadas e retrabalhadas pelos autores para construir “conceitos” que servem de base para a estrutura histórico/narrativa que forma a amálgama ficcional de Planetary: a realidade teria a forma de um floco de neve teórico existindo em 196.833 dimensões, sendo cada faceta desse floco de neve um universo. A base da realidade é informação. Cada universo é um plano de informação bidimensional, percebido como tridimensional pelos seus habitantes. Almas humanas são campos eletromagnéticos que continuam habitando o corpo após a morte, dissipando-se com a decomposição e reintegrando-se aos componentes fundamentais da realidade em nível subatômico. No universo da série, conceitos como real ou ficcional são irrelevantes, uma vez que a base de tudo é informação, que compõe a própria escrita do multiverso.

Há uma teoria de que a base do universo é a informação, não matéria e energia. Matéria e energia se movem em volume, mas foi descoberto que a capacidade de informação do universo depende só da área de superfície. Isso significa que o universo é bidimensional. Matéria, energia, tempo, você, eu e o piso somos hologramas. Tudo em volume é a expressão de um plano de informação bidimensional. (…) O computador que encontramos nas rochosas gerou um modelo do multiverso, certo? Um floco de neve em 196.833 dimensões. E se aquele floco de neve existisse em um espaço tridimensional real? Não o 3D que percebemos, porque ele é um efeito do plano 2D onde vivemos, certo? Espaço 3D real. E cada faceta do floco de neve, todas as 196.833 lâminas, é um plano 2D. O multiverso é composto por planos achatados de informação. Como uma pilha de discos rígidos. (Warren Ellis: Planetary 19/Pixel Magazine 07)

Independente da sua suposta aplicabilidade à “nossa” realidade, é interessante perceber que essas (re)construções da física teórica parecem adequadas para descrever quaisquer realidades ficcionais geradas pela imaginação humana. Afinal, a idéia de que cada universo seja um plano bidimensional de informação remete ao fato de que a existência “física” e “concreta”, por assim dizer, de cada universo ficcional existente se dá, justamente, em superfícies planas: páginas de HQs e livros, telas de cinema e TV, DVDs e BlueRays, HDs de computador, planos bidimensionais com seus próprios sistemas de signos, códigos, dados, escrita; numa palavra: informação. Que esses universos façam parte de uma mesma “estrutura”, o citado floco de neve teórico de 196.833 dimensões, evoca a interdependência e intercomunicabilidade de cada obra de ficção, todas parte de uma mesma origem: a imaginação humana, a cultura. A própria idéia de que almas são, na verdade, “super-objetos de informação” é uma forma interessante de descrever a “existência” (vida?) de um personagem ficcional.

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Escavando as ruínas da cultura
As histórias não terminam – não à maneira de um filme ou de um livro. A ameaça atual pode ser evitada e vencida, mas, tão certo quanto dois e dois são quatro, haverá novas dores de cabeça em trinta dias. O personagem vai prosseguir indefinidamente até que as vendas precárias ou algum outro fator determine o cancelamento do gibi. Mesmo assim o protagonista destituído terá provavelmente espaço como convidado em outras revistas, safando-se do limbo absoluto. É comum também a trama não ter começo, infortúnio esse que só pode ser evitado se você tiver a sorte de topar com uma série em seu primeiro número ou for rico o bastante para comprar edições antigas. Qualquer pessoa lendo um gibi pela primeira vez quase certamente há de se encontrar no meio de um continuum iniciado antes mesmo de seu nascimento e que, não raro, prosseguirá depois de sua morte. (Alan Moore – Introdução a Monstro do Pântano – Vol.1/Pixel Media)

O mais antigo universo ficcional dos quadrinhos de super heróis é o da DC Comics, cujas origens confundem-se com seu principal personagem, Superman, considerado o primeiro super herói. Entretanto, o nível de interligação entre os títulos só atingiu o patamar conhecido hoje durante os anos 60, quando a DC assumiu uma concorrência direta com a recém-estruturada Marvel Comics. Um dos principais diferenciais da Marvel era justamente a coesão de seu universo ficcional desde os seus primeiros anos. Seus personagens hoje icônicos, Quarteto Fantástico, Homem Aranha, Hulk, Homem de Ferro, X-Men, entre outros, criados em rápida sucessão pelo escritor e, posteriormente, editor, Stan Lee, já nasceram compartilhando um mesmo continuum. O número 1 da primeira revista mensal do Homem Aranha já trazia uma história em que o herói invadia o Edifício Baxter, sede do Quarteto Fantástico, na intenção de pedir emprego para a equipe.

Essa política editorial origina-se, claro, de uma estratégia de vendas, afinal “há vantagens econômicas em se alavancar uma revista que vai mal das pernas com a aparição de um astro convidado consagrado pelo sucesso”, como disse Alan Moore em Introdução a Monstro do Pântano – Vol.1, da Pixel Media ou mesmo multiplicar a lucratibilidade de dois ou mais personagens com altas vendas colocando-os para contracenar por algumas edições. Esse é o princípio básico do crossover, que não é, de modo algum, algo exclusivo dos quadrinhos. Entretanto, o que ocorre no gênero super heróis vai muito além do crossover convencional.

Por princípio, o crossover é um evento ocasional, singular, dificultado por questões contratuais e artísticas, que dificilmente traz conseqüências duradouras nas franquias envolvidas. No caso dos super heróis, entretanto, a “franquia” não é o título ou mesmo o personagem, mas sim a editora ou selo como um todo. Cada contribuição de um determinado autor torna-se um novo elemento integrado ao universo ficcional, podendo ser (re)utilizado por outros autores indefinidamente. Desse modo, pode-se dizer que os universos ficcionais das HQs de super-heróis são uma “criação coletiva” de centenas de escritores, ilustradores e editores.

Mesmo histórias e personagens produzidas em períodos anteriores são assimiladas, conforme as necessidades narrativas dos autores e/ou da editora, bem como os universos de editoras menores conforme vão sendo adquiridas pela empresa dominante. Essa enorme capacidade de assimilação é uma das características marcantes do gênero. Se o conceito de extracampo do cinema for aplicado aos super heróis veremos que os limites aos quais as demais formas narrativas estão submetidas são muito mais vagos nesses quadrinhos. Se um personagem com características urbanas e histórias mais voltadas para o gênero detetivesco, como o Demolidor, da Marvel, por exemplo, for repentinamente surpreendido por uma nave espacial pousando nas ruas de Nova York isso não será incoerente ou motivo de estranhamento, uma vez que impérios intergalácticos fazem parte do universo Marvel desde que histórias de heróis cósmicos como o Surfista Prateado os introduziram na continuidade.

Tudo, em princípio, é passível de assimilação nesses universos ficcionais, desde os gêneros narrativos tradicionais, como aventura, suspense, romance, ficção científica, horror, etc., até elementos mitológicos (Thor, Hércules e todo o panteão de deuses nórdicos e gregos convivem com os demais super heróis da Marvel desde os anos 60), religiosos (anjos e demônios são parte do universo ficcional da DC) e mesmo do “mundo real” (o presidente Barack Obama tornou-se personagem recorrente das revistas Marvel recentes).

Imagine, por um momento, um universo adornado de jóias preciosas tais como raças alienígenas que variam do transcendentemente divino ao monstruosamente lovecraftiano. Imagine um cosmo onde ainda existem deuses antigos e dimensões inteiras povoadas por animaizinhos antropomórficos; onde Céu e Inferno são demonstravelmente reais e até mesmo acessíveis. E onde anjos e demônios caminham pela Terra impunemente. Imagine um planeta em que a exposição à radioatividade confere o dom da supervelocidade e não câncer ósseo; onde os céus, por esse motivo, são repletos de mulheres e homens voadores que, de tão numerosos, encobrem o próprio Sol. Imagine um lugar onde as pessoas fossem inteiramente boas ou terrivelmente más com pouco espaço para a mediocridade entre tais pólos. Não, com certeza não seria nada parecido com o mundo em que vivemos, mas isso não o tornaria menos glorioso, tocante, triste ou assustador. (Alan Moore – Introdução a Monstro do Pântano – Vol.1/Pixel Media)

Tudo isso é muito familiar aos leitores habituais de quadrinhos que, freqüentemente, convivem com esses universos ficcionais desde a infância e as primeiras leituras, naturalizando essa estrutura ficcional tão estranha às demais mídias. Para outros públicos, que se aproximam dos super heróis através do cinema e da TV, tomar contato com essa estrutura é muitas vezes uma experiência confusa e desestimulante, uma vez que a leitura de um único título pode, por vezes, exigir um conhecimento de décadas de cronologia (um paradoxo atualmente muito discutido na indústria: um conceito desenvolvido para ser um estímulo às vendas, hoje acaba dificultando a formação de novo público, direcionando as editoras cada vez mais para o leitor fanboy, não raro atento a cada pequena contradição ou discrepância na lógica interna do universo ficcional).

Entre esses dois pólos (o leitor veterano, tão familiarizado à estrutura a ponto de não mais perceber sua singularidade, e o leitor leigo, que enfrenta dificuldades até mesmo para descobrir uma forma de “entrar” nesses universos) várias possibilidades de leitura se apresentam, evidenciando as inúmeras correspondências e reflexos entre os universos ficcionais e a cultura que os alimenta. A construção coletiva desses “espaços imaginários” se dá por sobreposição de elementos das mais inúmeras fontes, justamente como ocorre na construção e apropriação do espaço geográfico do “mundo real”.

Entretanto, poucas dessas possibilidades foram devidamente estudadas, a não ser por alguns dos próprios quadrinistas que, trabalhando de dentro da indústria, optaram por voltar um olhar mais reflexivo, crítico e engajado para essa estrutura que lhes serve de base ficcional. Planetary é um dos exemplos mais recentes e ambiciosos, precedido pelo trabalho de autores como o escritor inglês Grant Morrison, que, nos anos 80, fez o protagonista da série Animal Man, da DC Comics, “dar-se conta” de ser um personagem ficcional durante uma viagem de alucinógenos, na qual enxergou a “realidade como ela é” (no caso a realidade de um, até então, medíocre personagem de uma HQ de super heróis). No decorrer das primeiras 26 edições do título, o Homem Animal se conscientizou das contradições típicas da existência de um super herói de uma grande editora, viajou por “lugares” como o “limbo dos personagens esquecidos”, encontrou versões diferentes de si mesmo enquanto personagem e, num encontro com o próprio Morrison, descobriu que o sentido de sua existência é oferecer entretenimento para seres que, do seu ponto de vista, seriam “Deus”.

Mais recentemente, o escritor inglês Alan Moore voltou-se diretamente para a exploração do que considera ser a essência e às origens dos super heróis enquanto gênero. Depois de, nos anos 80, “desconstruir” seus mecanismos básicos na clássica série Watchmen, Moore utilizou seu próprio selo no interior da editora Wildstorm, o America’s Best Comics, para “(re)construir” um universo ficcional de super heróis a partir de um estudo de seus pressupostos básicos. Assim a série Tom Strong, por exemplo, seria um retorno ao período pré-super-heróis das aventuras típicas dos aventureiros das publicações pulp fiction do início do século 20, que posteriormente alimentaram o imaginário das primeiras HQs em escala industrial.

Em Liga dos Cavalheiros Extraordinários, Moore aplicou a estrutura editorial de “universo integrado” dos super heróis à ficção fantástica inglesa do século 19, unificando obras clássicas como Vinte Mil Léguas Submarinas, As Minas do Rei Salomão, Drácula, A Guerra dos Mundos, O Médico e o Monstro e outras, num único universo ficcional. Mais do que apenas tecer novas histórias com personagens pré-existentes, Moore deixa claro em inúmeras entrevistas sua intenção de explorar os aspectos icônicos e arquetípicos de personagens e histórias que extrapolaram os limites dos romances originais, se tornando parte do imaginário coletivo.

Nos primeiros dois volumes trabalhávamos principalmente com personagens da literatura, porque personagens de literatura era tudo o que tínhamos até mais ou menos o final do século 19. Neste volume (que é triplo), a primeira parte fica em 1910, estamos usando personagens do teatro, assim como da literatura. Estamos usando todo o enredo da Threepenny Opera. No segundo, que se passa em 1969, temos acesso a todo cinema e televisão daquela época. Na terceira parte, situada no presente 2008, 2009, temos todos os personagens das novas mídias que tem evoluído ao longo dos últimos 30 anos. É interessante, é um elenco de personagens em expansão, e eu presumo que estamos tentando propor uma espécie de teoria de unificação da cultura que atualmente conecta todas essas varias mídias, mesmo que sejam da cultura erudita, da cultura popular ou nenhuma cultura. (Alan Moore – Entrevista para a Revista Wired)

Moore desenvolveu um “conceito” pessoal para o seu trabalho artístico, segundo o qual a consciência poderia ser pensada em termos espaciais. Tudo o que não tem existência material, porém indiscutivelmente existe, pelo simples fato de ter sido concebido, imaginado e, portanto, gerar formas de movimento e potencialidade, habitaria o que Moore denominou ideaspace, um “espaço de idéias”, uma contraposição/complementação do espaço geográfico material. O “território da mente”, onde todos os deuses, atlântidas, fantasmas, realidades, mundos e personagens ficcionais seriam, acima de qualquer dúvida, reais. Idéias em permanente fluxo e recombinação, gerando espontaneamente novas idéias, assim como os elementos que compõem o espaço geográfico constantemente se realimentam, num fluxo constante de (re)produção do espaço e da cultura. A Liga dos Cavalheiros Extraordinários seria, assim, uma tentativa de materializar, no suporte de papel e tinta, uma versão da realidade que de fato existe no interior da nossa cultura ocidental, herdeira da cultura européia que gerou a ficção fantástica dos séculos 19 e 20.

Além de ser a base do trabalho atual de Moore, o conceito tem sido adotado como pressuposto teórico por outros quadrinistas, no desenvolvimento de trabalhos mais ou menos voltados para as “estruturas da própria ficção”, especialmente autores inseridos na produção dos universos editoriais/ficcionais das grandes editoras. O já citado Grant Morrison assumiu a função de coordenador dos rumos editoriais da DC Comics nos últimos anos, seguindo rumos criativos que podem ser lidos como uma interpretação própria das idéias de Moore. E, finalmente, o “floco de neve teórico de 196.833 dimensões”, em Planetary, propicia uma imagem que, de certo modo, permite “visualizar” o ideaspace.

O pressuposto de um “espaço de idéias”, um espaço (do) imaginário que complementa, justifica e dá sentido ao espaço físico é, em si mesmo, uma idéia que convida à reflexão e propõe formas de leitura tanto para obras de ficção quanto para o que definiríamos como nossa “realidade”. No limite, se aceitarmos as elucubrações de Moore, é uma idéia com a qual não poderíamos deixar de lidar, pois, uma vez tendo sido formulada, existe, portanto, para todos os efeitos, é real: está no mundo.

Ao lado da história do século 20 que estamos habituados a lidar, formada por fatos, datas, concretude, caminha uma história imaginária formada por personagens, histórias, literatura, cinema, televisão, quadrinhos, teatro, um imaginário que a espelha e é, ao mesmo tempo, sua conseqüência e causa. Planetary, como obra de ficção, se propõe a refletir sobre esse imaginário, que está em nós, independente de nossa vontade ou consciência, fazendo parte do que somos e da cultura na qual estamos inseridos, busca desenterrar suas raízes, refletir e recriar essa amálgama de décadas de ficção fantástica. Uma arqueologia do espaço das idéias, talvez, ou uma ficção sobre ficções.

“Reciclagem cultural” tem sido uma das características mais significativas da indústria do entretenimento desse início de século. Nos seus piores aspectos, não seria exagero afirmar que boa parte da produção cinematográfica mainstrean atual é formada por remakes, prequels, seqüências e franquias reciclando antigos (e não tão antigos) filmes, quadrinhos, livros, jogos, num processo que o próprio Alan Moore chamou, certa vez, de canibalismo cultural. Por outro lado, formas similares de “reciclagem” ou “canibalismo” também são os princípios que movem o cinema de autores como David Lynch, que prossegue em seu projeto estético de (re)pensar os clichês da gramática visual do século 20.

(…) em A Estrada Perdida, todos os personagens parecem falsos ou caricatos. Cada um nos dá a impressão de ter saído de um filme que já vimos: o “homem misterioso” usa pancake, maquiagem de olhos e roupa preta como qualquer vampiro barato de filme de baixo orçamento, os policiais são estúpidos como todos os policiais, o amante/cafetão de Renée, Andy, tem pele bronzeada e bigode fino como todo amante latino, isto ao menos segundo as leis de Hollywood. Os personagens são carregados demais e às vezes parecem apenas repetir falas e desempenhar papéis que todos sabem gastos. Tudo parece ter sido reaproveitado, como em uma liquidação de antigos clichês da história do cinema que já não funcionam direito. Dessa forma, Lynch filma com ruínas da gramática do imaginário cinematográfico. (Vladimir Safatle – David Lynch ou a arte de construir estradas com ruínas)

A intencionalidade dos autores de Planetary em, como Lynch, realizar uma efetiva “escavação arqueológica” nas ruínas da cultura é o que acaba por diferenciar a série de obras, em qualquer mídia, que meramente reciclam idéias e formatos do passado. Além disso, é válido afirmar que, por sua própria natureza, os quadrinhos propiciam condições favoráveis para o surgimento de obras artistica e conceitualmente mais ambiciosas graças aos custos de produção e distribuição extremamente baixos em relação às mídias áudio-visuais. Liberdades criativas são muito mais permissíveis quando os riscos financeiros são melhor controláveis, especialmente no território mainstream das grandes editoras de super heróis. Autores como Ellis, Moore, Morrison, que gozam de renome entre leitores, editores e críticos, tem condições de ir mais longe nos quadrinhos do que Lynch poderia no cinema. Por outro lado, isso favorece uma certa invisibilidade dos quadrinhos em relação a atenção que as mídias audio-visuais recebem rotineiramente no que se refere a estudos críticos e acadêmicos.

Planetary e outras HQs voltadas para a exploração de suas próprias raízes no imaginário coletivo (como Promethea, Os Invisíveis, Lost Girls, Sandman e muitas outras) convidam um olhar mais aprofundado, especialmente por parte de leitores que não estejam tão familiarizados com os quadrinhos a ponto de não mais perceber suas singularidades (ou pluralidades), podendo assim trazer leituras e reflexões estéticas e artísticas diferentes e quiça inesperadas. Multiplicidade de leitores, bagagens e influências, de modo a dar conta da multiplicidade que tais obras tentam abarcar. Os quadrinhos ainda são uma mídia demasiado restrita, não exatamente a guetos, mas a hábitos pré-estabelecidas de leitura. Autores como Warren Ellis talvez só serão explorados em todo o seu potencial quando finalmente atingirem públicos tão plurais quanto as estruturas narrativas desses vastos universos imaginários.

Reflexões sobre espaços imaginários, cultura pop e histórias em quadrinhos, geradas no contexto da disciplina de pós-graduação: Ficções do Real: Geografia das Imagens, ministrada pelo Prof. Dr. Wenceslao Machado de Oliveira Jr. Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação/Unicamp