Corpolítica.
Foto: Blinia Messias/Divulgação.

Documentário Corpolítica valoriza o engajamento dos corpos dissidentes na luta política

Em seu longa-metragem de estreia, o cineasta Pedro Henrique França acompanha de perto a campanha de quatro candidates LGBTQIA+

Se as pessoas LGBTQIA+ votassem majoritariamente em candidates que assumem abertamente suas designações de gênero, a representatividade deste grupo nas casas legislativas – das câmaras municipais ao Senado Federal – seria muito maior e consequentemente as pautas de interesse da comunidade teriam maior possibilidade de serem atendidas. Essa é a principal mensagem do documentário Corpolítica, dirigido por Pedro Henrique França, com produção do ator Marco Pigossi, atualmente em cartaz nos cinemas.

É bom ressaltar, porém, que não é votando em qualquer candidate só pelo fato dele ser LGBTQIA+ que se vai conseguir atingir essa meta. Nesse seu primeiro longa-metragem, realizado em 2020, Pedro Henrique deixa isso bem claro ao escolher como motivo central para Corpolítica o período pré-eleitoral daquele ano, acompanhando de perto a campanha de quatro candidates de esquerda a vereança: duas mulheres lésbicas cis do Rio de Janeiro – Andréa Bak, do PT, e Mônica Benício, do PSOL –, um homem gay cis – William de Lucca, do PT – e uma mulher trans – Erika Hilton, do PSOL – ambos de São Paulo.

Para costurar a narrativa, Pedro Henrique usou entrevistas com o ex-deputado federal Jean Williams, que cumpriu dois mandatos como deputado federal e se exilou antes do terceiro, em 2019, por conta de ameaças de morte, e Erika Malunguinho, primeira deputada trans eleita no Brasil, em 2018, personalidades LGBTQIA+ atuantes e conhecedoras dos meandros da política machista brasileira. A partir daí, o cineasta construiu um retrato relevante de como corpos não heteronormativos enfrentam o desafio de se imporem como alternativas concretas e combativas na construção de uma cidadania cujos direitos sejam assegurados a todes sem distinção de raça ou gênero.

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Erika Hilton, hoje deputada federal de São Paulo pelo PSOL, é uma das vozes ouvidas no documentário Corpolítica. (Foto: Divulgação).

O filme também ouve os vereadores Fernando Hollyday, do Novo, e Thammy Miranda, do PL, mostrando, todavia, que o protagonismo político dos dois, por suas ligações com partidos de direita e posições que não demonstram um engajamento nas principais causas de luta da comunidade LGBTQIA+ não contribuem em quase nada para uma mudança efetiva do cenário atual e só reforça a sub-representatividade dela.

O fato de Corpolítica ter sido realizado num dos períodos mais sombrios da história brasileira, com o país sendo conduzido por um governo de extrema-direita com provas claras de uma conduta neonazista, racista e lgbtqfóbica, é um aspecto a ser destacado, pois, apesar do ataque constante dessas forças conservadoras promovendo o ódio e a violência, as eleições municipais de 2020 no Brasil bateram o recorde de candidaturas LGBTQIA+, com cerca de 400 postulantes a cargo legislativo e prefeituras dos quais 48 foram eleites, entre elas, Monica Benicio e Erika Hilton que foi a vereadora mais votada em todo o país naquele ano e em 2022 conquistou uma vaga de deputada federal.

O filme, dessa forma, é um testemunho pungente da não submissão e a reação corajosa de boa parte dos candidates a uma política baseada na disseminação de preconceitos e mentiras, como as estúpidas campanhas sobre um suposto kit-gay e a mamadeira de piroca orquestradas pela extrema-direita. Durante todo o documentário, diversos desses episódios nefastos são relembrados e trazidos a discussão com os ótimos depoimentos da atriz Renata Carvalho, da multiartista Mel e a intervenção do Slam das Minas, estabelecendo um contraponto a estultice de figuras nefastas como o pastor Marco Feliciano e o ex-presidente Jair Bolsonaro.  

E mais: Pedro Henrique, além de explorar os aspectos da construção de uma consciência política das suas personagens, aproximou-se do lado mais humano de suas vivências. Ele ouviu suas histórias de vida e deu destaque ao papel das mães de Andrea, Erika, William e Monica, afinal, é no seio da família onde ocorre a primeira confrontação de ruptura com os padrões heteronormativos. Esse olhar interior é fundamental para estabelecer uma outra reflexão que o documentário provoca, ou seja, quando os conflitos familiares são resolvidos de forma aberta e positiva, esse aprendizado fortalece a disposição para a luta em busca da igualdade de direitos. Os depoimentos de Erika Hilton e Monica Benicio, viúva da vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada em 2018, são emocionantes e corroboram esse viés apresentado pelo filme.

Outro lado bonito de Corpolítica é a maneira delicada como a câmera segue as personagens, há um espaço para ouvi-las, captar as reações, discutir os enfrentamentos por quais elas passam e, sobretudo, por deixar emergir de forma natural o engajamento que elas abraçam, marcado pela força sincera de ocupar um lugar de reivindicação não apenas para si, mas para quem sempre é colocado à margem das decisões políticas do país. As imagens e situações meticulosamente alinhadas conjugadas com os depoimentos vão evidenciando como existe um abismo e uma má vontade dos detentores do poder em dar voz aos corpos dissidentes.

A habilidade de Pedro Henrique de articular o tema em toda sua complexidade de forma segura é sem dúvida um de seus principais trunfos.  E nos instiga a pensar como está sendo a participação política de outras candidates LGBTQIA+ eleites em estados e cidades fora do eixo Rio-São Paulo. Nestas capitais, de certa forma, a militância e o engajamento contra o preconceito e a invisibilidade é mais potente e o contingente de eleitores esclarecidos é bem maior. Assim, por mais que as lutas sejam idênticas, as múltiplas realidades e diferentes contextos existentes no país forjam certamente outros embates. Conhecê-los seria uma forma de fortalecer essa necessidade urgente de termos bancadas parlamentares capazes de barrar as pautas antiprogressistas e conservadoras dos fascistas e religiosos fundamentalistas.