Com a indicação de Democracia em Vertigem (2019) na categoria de Melhor Documentário do Oscar, Petra Costa pode se tornar a primeira cineasta latino-americana a conquistar a cobiçada estatueta.
Ao longo do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, que encerrou-se no dia 31 de agosto de 2016, vários cineastas brasileiros gravaram imagens da movimentação nas ruas e do processo político que mudou a imagem do país. Dentre esses trabalhos ganhou destaque o documentário de Petra Costa, Democracia em Vertigem não somente pelas críticas elogiosas, que garantiram a indicação, mas pela polêmica que sua abordagem despertou logo ao ser lançado.
Coproduzido pela Netflix, o filme de Petra Costa estreou direto na plataforma de streaming, e teve algumas exibições em salas comerciais, a exemplo das mais recentes produções da plataforma. Em entrevistas, a diretora afirmou que preferiu buscar apoio financeiro no exterior para garantir liberdade de expressão e pontos de vista, em um momento delicado da sobrevivência do cinema brasileiro, que se vê ameaçado pela censura econômica imposta pelo atual governo.
Um dos pontos mais polemizados do documentário diz respeito ao seu lugar de fala. Em Democracia em Vertigem, a protagonista é sua narradora, a própria diretora Petra Costa. Ela divide esse protagonismo com sua mãe, que aparece em cenas longas, algumas ao lado de Dilma Rousseff. Desta forma, podemos afirmar que a diretora escolhe claramente um lado ao optar por uma narrativa em caráter memorialista, subjetiva, colocando-se no lugar de fala de uma mulher, jovem, da mesma “idade da democracia” no País. Costa nasceu em 1983, e embora a primeira eleição direta para presidente só tenha ocorrido em 1989, foi a partir de 1984 que o regime militar começou a apresentar sintomas de esgotamento.
Costa é descendente direta da família que possui a Construtora Andrade Gutierrez, empresa que também foi alvo das investigações da Lava Jato, com 75 anos de existência consolidada na vida politica e econômica de um país que se notabiliza por ser, nas palavras da própria diretora, uma “república de famílias”. Por esse motivo, a diretora teve acesso a pessoas como Aécio Neves, que, no entanto preferiu não dar entrevista.
Costa nos faz acompanhar as movimentações politicas de rua, quando o País se dividiu entre o lado “vermelho” e o lado “verde-amarelo”, numa polarização que se estabeleceu nas eleições presidenciais entre o candidato da esquerda, Fernando Haddad, do PT, e o candidato da direita, Jair Messias Bolsonaro, então PSL. Em sua articulação de planos, entretanto, ela nunca se distancia do seu papel de direção e da sua posição de classe. Sua família, à exceção de seus pais, militantes de esquerda, votou em Bolsonaro, como ela admite. Seu nome é uma homenagem à Pedro Pomar, dirigente do PC do B.
O documentário contou com cenas inéditas, como aquelas que mostram o Palácio da Alvorada por ocasião da saída de Rousseff, mas também com cenas registradas por Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial da presidência nos anos de governo Lula e que o acompanhou até sua prisão em Curitiba, com imagens belíssimas de Lula antes de deixar o Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo para entregar-se à Polícia Federal.
A figura de Dilma, descontraída, em seu apartamento em Porto Alegre, após deixar a presidência, conversando sobre seus sentimentos com relação ao processo de impeachment, com naturalidade, se sobrepõem a declarações de Lula e textos poéticos. Lula está sempre como personalidade pública, mesmo quando surge em cena com Marisa Letícia, sua esposa. Em Dilma, ao contrário, Costa deposita uma identificação, primeiro com a mãe, também militante de esquerda, e em seguida, com a mulher. Dilma ressalta a sensação de liberdade que sentia no anonimato da clandestinidade, e comenta sobre seus sentimentos em relação à tortura.
Rousseff foi presa, ainda jovem, e torturada, mantida como prisioneira entre 1970 a 1972, inicialmente pelos militares da Operação Bandeirantes (OBAN), e depois pelo temido Departamento de Ordem Politica e Social (DOPS). Sua chegada ao mais alto posto politico de uma nação representa algo inédito na vida politica do pais que só conheceu primeiras-damas: uma mulher com formação intelectual de estadista, economista, separada e ex-membro de organizações de esquerda que pregavam a luta armada como forma de tomada do poder após o golpe militar de 1964.
O conceito de cinema-verdade aplicado ao documentário brasileiro é largamente influenciado pelo cinema antropológico de Jean Rouch, grande influência dos documentaristas brasileiros. No entanto, diferentemente de Rouch, que entregava sua câmera para os seus personagens, quase sempre excluídos sociais, Petra assume ela mesma essa condição, de protagonista, o que lhe rendeu o desagrado de muitos. O cinema-verdade difundido por Rouch, materializado em Eduardo Coutinho, está presente no longa Democracia em Vertigem, pois a interferência no processo de produção das imagens é assumida, e o diretor se torna um dos protagonistas da ação, que passa a ter a conotação de experiência vivida. O que temos, então, é a visibilidade da relação do individuo com a realidade, a partir do olhar de quem produziu essas imagens, e que se coloca em primeiro plano.
Outra cena polêmica foi a da foto que foi alterada digitalmente por Petra Costa sobre a morte de dois dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PC do B), Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar, e Ângelo Arroyo, em 1976. A diretora defendeu essa alteração alegando que em investigações posteriores à execução, descobriu-se que as armas da foto original foram plantadas por agentes do regime para justificar um suposto confronto armado.
Desde o histórico documentário Aruanda (1960), o gênero documentário no Brasil foi largamente influenciado pelo cinema-verdade, e fartamente ilustrado por imagens de personagens das camadas populares, excluídas das imagens oficiais sobre o país por conta de estratégias comerciais e políticas de concessão comprometidas com governos autoritários desde o Estado Novo (1930-1945). Dezenas de mulheres estrearam na direção de filmes entre os anos 1960 e 1970 no Brasil, em que a produção continua a ser produzida majoritariamente por homens. A produção de muitas dessas cineastas tratava de temáticas diretamente ligadas ao interesse das mulheres, como trabalho, filhos, aborto, construção de papeis sociais. Democracia em Vertigem narra o país.
O documentário de Petra Costa é bastante coerente com sua trajetória, estabelecida pelos documentários Elena (2012) e O Olmo e a Gaivota (2015), identificada com uma narrativa em que o pessoal dialoga com as situações e personagens retratados. Seu trabalho representa conceitos da vertente relacionada ao documentário biográfico, voltadas para o processo de subjetividades dentro de um contexto social e politico, narrando a história oficial a partir de uma história pessoal e familiar. Sua carreira estruturou-se a partir de produções desenvolvidas fora do Brasil.
Nenhuma das mulheres em Democracia e Vertigem está em cena para compor a representação feminina que Mulvey chamou em seu ensaio referencial de modo de satisfação visual (1983) voltado para uma plateia masculina. O enquadramento da mulher em todas essas imagens é antes uma estratégia para expor a intimidade do poder.