Damasco
Alexandre S. Lourenço e Lielson Zeni
Brasa, 208 páginas, R$ 109,90, 2023
Quantas vezes já não acordamos com a sensação de que a vida entrou no automático? Não só a rotina nos sufoca com sua previsibilidade e obrigações, mas a própria existência fica saturada com repetições de fatos, sensações, paisagens, objetos, pessoas, cheiros, telas, sentimentos. Esse sentimento de asfixia, que apequena o indivíduo, é o ponto de partida para a inquietação que vai mudar a vida do protagonista de Damasco, nova HQ de Alexandre S. Lourenço e Lielson Zeni, que é um dos destaques do quadrinho brasileiro este ano.
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Na HQ, que saiu pela Brasa, acompanhamos Saulo, um trabalhador de uma grande empresa que vive uma rotina comum em sua baia realizando tarefas que nunca sabemos direito o que é. Tarefas repetitivas em uma dinâmica pensada para não dar margem a imprevistos: tudo é ordenado, idêntico, assustadoramente burocrático. Mas, inspirado por uma história real de um homem que decidiu desaparecer sem deixar rastros, ele começa a vislumbrar a possibilidade de sumir. E é nas ranhuras desse sistema pensado para driblar a individualidade que Saulo irá encontrar as saídas para o seu plano.
Saulo até empreende pequenas sabotagens dentro desse sistema, como quando decide mudar de posição dentro da empresa sem que ninguém perceba. Mas a pequena vingança individual, para a gigantesca máquina burocrática, tem valor quase nulo. No capitalismo contemporâneo, a própria criatividade que dá sentido ao humano é esmagada em prol da eficiência, do lucro. Nesse sentido, a luta aqui é bem mais do que apenas demarcar a própria individualidade, mas assegurar o sentido do ser (humano).
Na decisão de sumir, o protagonista abandona tudo de maneira radical. Raquel, sua namorada, acabará sendo testemunha solitária de sua existência anterior. Eles compartilharam juntos uma bonita história de amor e sonhos que ficaram pra trás. Saulo a conheceu durante o show de sua banda e se apaixonaram. Mudar de vida, largar o emprego, tentar viver de música parecem mudanças de rota menos radicais e um tanto óbvias, mas à medida em que avançamos na leitura fica claro que essa retomada em algum momento se reintegraria ao sistema que o aprisionava.
É por conta dessa subtrama do casal – e do seu fim – que Damasco assume um tom melancólico e dilacerante, sobretudo pelo fato de que Zeni e Lourenço oscilam entre esses dois pontos de vista, colocando Raquel quase como uma protagonista da história.
A HQ carrega um argumento anticapitalista, mas traz uma jornada pessoal tão difícil e tão bem contada que nos conecta de uma maneira impressionante. O trabalho de Alexandre S. Lourenço continua explorando as diferentes possibilidades da narrativa do quadrinho, como já fez em trabalhos como Robô Esmaga e o ótimo Você é Um Babaca, Bernardo. Páginas com quadros pequenos e simétricos convivem com várias passagens sem requadros, várias páginas com muito espaço em branco, páginas com uma única palavra ou um desenho solitário, o uso do preto e amarelo como contraste e muitas repetições para dar conta da burocracia sufocante.
É bem interessante como o quadrinho esquadrinha o ambiente para reduzir os objetos ao seu significado primordial. É como se Saulo, na sua fuga, tentasse retirar dos objetos o seu significado mais subjetivo e pessoal. Utensílios de cozinha, um controle-remoto, jogo de tabuleiro. Crachá. Coisas. Ao final, até os livros se vão. Em uma linda passagem da HQ, parte da história é lida através das lombadas das obras empilhadas que, aos poucos, vão sumindo.
O quadrinho também convida a uma leitura mais complexa, pois traz chaves que acessam a história bíblica de Saulo – que se tornaria são Paulo, nome importante do Cristianismo – em sua jornada de conversão até a cidade síria de Damasco (daí o nome da obra). A HQ faz pontes com a Damasco de hoje, arruinada e envolta em guerras.
Damasco é uma HQ sobre essa fuga, mas o modo como a trama é construída traz reflexões que deixa o leitor cada vez mais intrincado e imerso nessa crítica ao sistema, de modo que acabamos divagando sobre o nosso próprio sumiço. E se largássemos tudo? Parece uma impossibilidade tão grande, tudo está tão entrelaçado, previsto, envolve tantas pessoas, locais, soa impossível. Mas, será…?
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