Barrela
João Pinheiro
Brasa Editora, 128 páginas, 2022, R$ 69,90
Uma das peças mais conhecidas do dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999) é Barrela, seu primeiro texto teatral. A encenação causou um pequeno impacto quando estreou no dia 1º de novembro de 1959, na cidade de Santos, em São Paulo. Foi uma única apresentação, possível graças a intervenção do organizador do Festival Nacional de Teatro de Estudante Pascoal Carlos Magno junto ao governo de Juscelino Kubitschek. Depois disso, por conta do seu conteúdo e linguagem, ela ficou 21 anos interditada pela censura. Texto seminal da carreira de Plínio, cuja obra posterior foi marcada pela presença de atores sociais marginalizados na sociedade brasileira como presos, prostitutas, travestis e mendigos, Barrela nos é apresentada, agora, em forma de romance gráfico numa adaptação de João Pinheiro, dentro do projeto Plinião em Quadrinhos, da Brasa Editora.
Plínio Marcos no final da década de 1950 era um artista de circo sem grandes conhecimentos de teatro, a não ser os poucos espetáculos que via no centro cultural onde trabalhava. Segundo ele mesmo narra no prefácio do livro com o texto da peça – lançado em 1976 e igualmente proibido até 1980, quando foi liberado com o fim censura imposta pela ditadura militar –, o impulso para escrever Barrela veio de um caso policial ocorrido em Santos que o chocou profundamente. Por causa de uma briga num botequim, um garoto foi preso e colocado numa cela com outros homens. O rapaz acabou sendo currado (violentado) e depois que foi solto matou os quatro estupradores.
Escrita em forma de espetáculo de teatro, Plínio não se preocupou com os erros de português, nem com as palavras. No mesmo prefácio ele conta que apenas imaginou o que se passara no xadrez antes, durante e depois de o garoto entrar, coisas que ele conhecia bem de tanto escutar histórias sobre a malandragem. “Dei o nome de Barrela, que é a borra que sobra do sabão de cinzas e que, na época, era a gíria que se usava para curra”, disse. Como em outras obras, os personagens de Barrela vivenciam um episódio de privação e violência em um cenário desolador e hostil. A história se passa durante uma noite dentro da prisão. Os personagens Portuga, Bereco, Bahia, Tirica, Louco e Fumaça entram em conflito e pouco a pouco uma hierarquia fundada no sexo, na força e no instinto de sobrevivência provoca uma tensão crescente, prenúncio de um desfecho trágico.
A adaptação do texto teatral para a linguagem dos quadrinhos é sempre um desafio, sobretudo se pensarmos que a ação de Barrela transcorre totalmente numa cela e que concentra sua força narrativa nos diálogos entre os protagonistas. Esse possível obstáculo, contudo, é transposto por João Pinheiro sem problemas. Coautor de Carolina (2016) e do álbum Burroughs (2015), ambos publicados também na França, Pinheiro levou para esse seu novo trabalho uma disposição visual que privilegia os planos médios e próximos para enfatizar a expressividade dos personagens. O desenho revela os sentimentos que eles carregam onde ódio, cinismo, sadismo e desesperança se misturam e coloca o leitor diante de um cenário de violência incontornável. Ele é, sem dúvida, duro e cruel, porém não trai um dos aspectos o qual o texto de Plínio Marcos evoca: a desumanização das relações entre as pessoas quando quem comete erros, sofre traumas ou é vítima de desajustes sociais é tratado apenas como dejeto – infelizmente o quadro que encontramos no sistema carcerário brasileiro – e não alguém com capacidade de se redimir de suas faltas.
O resultado do trabalho de João Pinheiro atendeu às expectativas de Kiko Barros, filho de Plínio Marcos e criador do projeto. Para Barros, representante legal da obra do pai, transpor as peças para os quadrinhos, é uma forma de expandir a contribuição de Plínio para a dramaturgia brasileira. E, não restam dúvidas, que a percepção pessoal de Pinheiro e a forma como conseguiu captar o que o texto sugere, traduzindo-o no ritmo e no clima assustador estabelecido pela narrativa, foram fundamentais para esse êxito.
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