Não se assuste, pessoa! — As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina traz as militâncias de duas das maiores cantoras do Brasil no período da ditadura militar. O livro, lançado pela editora Letra e Voz, é de autoria do jornalista e sociólogo recifense Renato Contente.
O recorte da obra é inusitado, mas Gal e Elis são ambas figuras femininas, cantoras e ícones de uma época marcada pela repressão e pela supressão de direitos. “Eu falo justamente em “personas políticas”, não em ‘personalidades’, para tentar discernir melhor as diferentes instâncias”, pontua o autor.
A primeira era símbolo da contracultura, visual hippie e voz gritada. Gal Costa se tornou a porta-voz dos anseios políticos e sociais da geração tropicalista. Erroneamente considerada voz simpática à ditadura, Elis revela o seu lado politizado com álbuns e shows como Falso brilhante (1975), Transversal do tempo (1977) e Saudade do Brasil (1980), todos analisados pelo autor do livro.
A obra é resultado de um trabalho de mestrado de Contente na Universidade Federal de Pernambuco, em disciplina que contextualizava a MPB no contexto da ditadura instaurada no Brasil. O projeto é resultado de mais de cinco anos de intensas pesquisas. Conversamos com o autor para saber mais detalhes sobre sua obra. Confira:
Ao longo do livro, você dimensiona corretamente as posições de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar. Em linhas gerais, como avalia a postura de cada uma nesse período da nossa história?
No livro, eu não trabalho com a ideia de “heroínas”, mas tento argumentar que diversas circunstâncias acabaram direcionando as trajetórias de Gal Costa e Elis Regina para momentos de engajamento político dentro de suas produções artísticas sob a ditadura civil-militar. Eu falo justamente em “personas políticas”, não em “personalidades”, para tentar discernir melhor as diferentes instâncias (pessoais, artísticas, profissionais, políticas, midiáticas etc.) que competem a essas cantoras e complexificar sua atuação no contexto histórico da ditadura. Embora divisões históricas sejam imprecisas, eu acho que podemos pensar em dois momentos significativos da música popular brasileira ao longo da ditadura militar, como propõe o historiador Marcos Napolitano: a “canção dos anos de chumbo”, entre 1969 e 1974, e a “canção da abertura”, entre 1975 e 1982. Na minha visão, Gal atuou como a ponta de lança da resistência cultural contra a ditadura nesse primeiro momento, nos anos que seguiram ao AI-5, instaurado em dezembro de 1968, e que acabou levando ao exílio de Caetano Veloso, Gilberto Gil e do empresário tropicalista Guilherme Araújo.
Nesse período, Gal atravessou uma fase roqueira, a contracultura e o Desbunde, até recolher as garras políticas e voltar a pensar em um projeto artístico em torno de sua “essência de cantora”, e não de discursos transgressores. Justamente nesse momento, no meio da década de 1970, Elis tomou o bastão do engajamento no campo musical brasileiro, com uma série de projetos ariscos à ditadura. Era também uma tentativa de reformular o imaginário público em torno dela, que vinha sendo severamente afetado por acusações de que ela seria conivente, e até mesmo entusiasta, em relação à ditadura. Elis acabou se engajando em uma série de ações que tinham como objetivo o reestabelecimento da democracia no país, e uma parte substancial de seu trabalho até a sua morte precoce, em 1982, dialoga profundamente com esses anseios civis.
Ao longo das suas carreiras, Elis Regina e Nara Leão, por exemplo, protagonizaram rixas. Como foi a relação entre Gal e Elis?
A relação pública de Gal e Elis sempre foi bastante respeitosa e amistosa. Havia uma admiração mútua entre as duas, embora não fossem íntimas. Elis muitas vezes é lembrada por sua postura bélica em relação a outras cantoras de sua geração, especialmente na segunda metade dos anos 1960. Gal, por sua vez, não tem um histórico de atritos públicos. Publicamente, Elis e Gal se elogiavam. Em 1980, Elis chegou a dizer que, no Brasil, apenas duas cantavam: ela e Gal. Em 1981, meses antes de morrer, Elis confessou em outra entrevista que tinha vontade de fazer um show com Gal.
O imaginário em torno de uma MPB engajada na ditadura é bastante atravessado pelos agentes masculinos (…). Mas artistas mulheres atuaram de maneiras bastante significativas e enfáticas contra o regime militar.
Em sua fase mais roqueira, no início dos anos 1970, Gal foi refratária ao estilo de Elis, mas reconhecia a sua competência artística e dizia que não havia páreo para ela no quesito técnico. Quando fez o especial de televisão Grandes Nomes, em 1981, Gal escolheu Elis como convidada especial. Cantaram três canções em dueto e Elis ganhou um número solo no programa. Pela primeira e única vez, elas exploraram a afinidade musical que tinham. Naquele momento, estavam em uma espécie de interseção artística – Gal no auge de sua fase festiva, e Elis abraçando uma musicalidade pop depois de uma série de projetos engajados.
Como surgiu a ideia do livro e o interesse em fazer esse recorte?
O livro surgiu a partir de uma disciplina que cursei no mestrado em Comunicação na UFPE, chamada Música Popular Brasileira e Ditadura, com o professor visitante Stephen Bocskay. Ele propunha que analisássemos a produção musical do país sob o viés da política, desde antes da formação do samba, passando pela Era Vargas até a ditadura civil-militar. Na época, eu já tinha interesse nas obras de Gal e Elis e suas interseções com a ditadura, então foi uma oportunidade de investigar melhor as atuações delas nesse contexto. Como vemos em grande parte da produção historiográfica do período, o imaginário em torno de uma MPB engajada na ditadura é bastante atravessado pelos agentes masculinos da história, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Geraldo Vandré. Mas artistas mulheres, como Nara Leão e as próprias Gal e Elis, atuaram de maneiras bastante significativas e enfáticas contra o regime militar, através de sua produção artística, e foram ofuscadas sob esse aspecto. Nesse sentido, o livro foi também uma tentativa de colaborar com uma maior complexificação desse imaginário, que ainda precisa ser bastante reelaborado.
Conte sobre o processo de pesquisa e quanto tempo levou para concluir seu livro.
Produzi um artigo para a disciplina da UFPE sobre o tema, mas precisei ampliar e detalhar a pesquisa para apresentá-la em formato de livro. O processo de pesquisa foi bastante difuso, e abrangeu uma leitura intensiva de livros e artigos acadêmicos, biografias, jornais e revistas, além de muitas horas de material sonoro e audiovisual em diversos formatos. Ao todo, foram cinco anos de pesquisa até a publicação do livro.
Você relata que um documento confidencial do Centro de Informações do Exército (CIE) comprova a vigilância dos militares em torno de Elis Regina. O relatório elencava diversos pontos considerados suspeitos. A exemplo de outros colegas seus, a cantora foi vigiada pelos órgãos oficiais do governo militar, assim como sofreu a “patrulha” da esquerda?
Elis foi ostensivamente vigiada pelo regime militar, inclusive depois de sua morte. O relatório do CIE, em 1971, foi uma das motivações para que ela participasse ativamente das festividades do Sesquicentenário de Independência, em 1972. Não foi o show que ela protagonizou na III Olimpíada do Exército, em Porto Alegre, que quase manchou a sua biografia (dezenas de artistas, inclusive “engajados”, fizeram o mesmo), mas o imenso destaque que foi atribuído a ela na efeméride. Ao lado de Roberto Carlos e Pelé, ela participava de uma empolgada chamada pública para engajar a população nas celebrações do 150º aniversário da Independência do Brasil, veiculada à exaustão em televisores e rádios de todo o país. Isso naturalmente revoltou muitas pessoas que se engajavam contra as truculências do regime militar, sobretudo porque Elis tinha um ethos de “esclarecida”, e a maior parte de seu círculo social era vinculada à esquerda. Por essa razão, ela também foi bastante afetada pelo chamado “patrulhamento ideológico” da esquerda, um tipo de postura sobre o qual ela foi bastante crítica.
Um episódio-chave remete ao semanário carioca O Pasquim, onde ela foi “enterrada” pelo cartunista Henfil, em 1972, após a veiculação das chamadas para os eventos do exército. Na seção de quadrinhos Cemitério do Caboclo Mamadô – o espaço de “cancelamento” de maior visibilidade à época –, ela foi comparada ao cantor francês Maurice Chevalier, que teria cantado para os nazistas durante a II Guerra Mundial. Elis passaria os anos seguintes tentando estancar essa sangria moral, e conseguiu reverter esse aspecto de sua biografia radicalmente, se tornando um nome fundamental nas movimentações para a redemocratização do país. Ela continuou a ser fichada pela ditadura ao longo dos anos 1970, e inclusive três dias depois de sua morte, em janeiro de 1982, por ter sido enterrada com a camisa censurada do show Saudade do Brasil: na bandeira do Brasil sobre um tecido preto, ao invés de Ordem e Progresso estava escrito Elis Regina.
Como Gal tornou-se a representante do Tropicalismo no Brasil quando Caetano e Gil foram exilados em Londres, após a promulgação do Ato Institucional nº 5, o AI-5, em 1968, que duraria 10 anos?
Quando Caetano, Gil e Guilherme Araújo foram exilados, Gal perdeu seu chão afetivo e profissional. Ela relatou que só não foi com eles porque não conseguiria arcar com a passagem para Londres e as despesas para permanecer no exterior. Então ela ficou no Brasil e precisou de novos aliados artísticos. Ela deixou São Paulo rumo ao Rio de Janeiro, onde encontrou colo na cena contracultural carioca. Seus maiores suportes à época foram o poeta Waly Salomão, o músico Jards Macalé e o produtor Paulo Lima, que assumiu o posto de empresário na ausência de Araújo. Seus trabalhos de então expressavam a desolação, a raiva, a dor e o tesão que acometiam toda uma geração de ovelhas negras que vivia sob um regime autoritário.
Os álbuns Legal e Fa-tal – Gal a todo vapor estão profundamente sintonizados nessa frequência. Ela deu voz a canções dos exilados, e também a canções assinadas por nomes então insurgentes associados à contracultura, como Luiz Melodia e os próprios Macalé (um pouco mais veterano) e Waly. A contracultura se tornou pop e popular na voz de Gal, e o seu grito de protesto foi ouvido por audiências abrangentes. Na ausência dos amigos, ela manteve acesas as últimas fagulhas subversivas do espírito tropicalista. Ela atuou como uma espécie de avatar dos exilados, como definiu Caetano posteriormente.
Acredita que Gal colaborou pra detonar uma mudança no comportamento, sobretudo na área sexual, no início dos anos 70 no país?
No contexto do Desbunde, Gal foi alçada à categoria de bússola da contracultura mainstream brasileira e ao papel de ícone sexual. No país, ela foi um importante vetor para mudanças comportamentais que vinham adquirindo cada vez mais envergadura desde a revolução sexual do fim dos anos 1960. A partir de Fa-tal, em 1971, suas performances passaram a adquirir um teor erótico mais latente, que talvez tenha tido seu ápice em 1973 no disco e show intitulados Índia. A própria capa destacava seu sexo em close e, na outra face, a exibia com os seios à mostra. A sensualidade continuou sendo um componente cênico importante para ela ao longo dos anos 1970 e 1980. Inclusive, um mês antes do fim oficial da ditadura, em março de 1985, ela estampou a capa de uma revista masculina com um ensaio nu. Não deixou de ser uma despedida simbólica de um período histórico que se esforçou para impor a toda uma nação costumes morais e comportamentais austeros.
Entre o final da década de 60 e início dos aos 70, Gal adquiriu gradual prestígio de instâncias estratégicas da opinião pública, como a imprensa e os estudantes universitários mais progressistas. Ao longo da sua carreira, como a artista adquiriu esse encantamento que é visto até hoje?
Historicamente, artistas que dialogam com as problemáticas de seu tempo e conseguem mobilizar sensibilidades de uma época adquirem uma importância simbólica muito potente. Grandes artistas, que já seriam enormes apenas com o seu talento musical, costumam ter esse traço acentuado em suas biografias. Billie Holiday, Nina Simone, Bob Dylan, Elis Regina, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa estão entre esses nomes. A crítica e a imprensa são elementos fundamentais nesse processo, como busco argumentar no livro, mas outros fatores também são mobilizados nesse jogo simbólico. No caso de Gal, a atuação no Tropicalismo foi fundamental para tornar a sua voz e o seu rosto familiares a uma parte significativa da população (enquanto o AI-5 era instaurado, Baby era a terceira música mais ouvida do país). Ela adquiriu uma importância simbólica ainda mais latente após o exílio de Caetano e Gil, entre 1969 e 1972, durante o Desbunde, quando se integrou à vanguarda contracultural e produziu trabalhos como Legal e Fa-tal – Gal a todo vapor.
O “encantamento” revigorado em torno de Gal se deu muito por conta de uma gestão de carreira competente, especialmente durante a gestão de Guilherme Araújo, que esteve ao seu lado de 1965 a 1985. Araújo intervinha energicamente desde o imagético ao repertório de seus contratados. Foi dele, por exemplo, a ideia de aposentar o nome de batismo Maria da Graça e adotar o nome artístico Gal Costa, “mais moderno, feminino e internacional”. Ele também propôs as curvas mais bem-sucedidas na carreira de Gal, e conseguiu aliar prestígio da crítica a sucesso massivo de público, na virada dos anos 1970 para os 1980 – como os projetos Gal Tropical (1979), Aquarela do Brasil (1980) e Fantasia (1980). Consolidada no imaginário dos brasileiros desde as movimentações tropicalistas, Gal nunca deixou de se fazer relevante, mesmo em seus momentos menos inspirados.
Em entrevista recente, Gal resolveu se posicionar politicamente e relembrou o sofrimento vivido no regime e detonou: “Fora Bolsonaro!”. Qual sua visão sobre a importância do posicionamento dos artistas em momentos como os anos de chumbo e os atuais, com a ascensão de pensamentos ultraconservadores?
Os artistas têm um papel central para qualquer nação. Eles representam uma partilha de sensibilidades e de identidades que nos ajuda a nos situar no mundo e a nos entender enquanto um coletivo. Eu compartilho de uma fala de Elis Regina em que ela argumenta que o artista tem o dever de ser repórter de seu tempo. Não se trata de ser deliberadamente “engajado”, mas de estar aberto às sensibilidades e subjetividades de seu tempo, às dores, angústias e alegrias que conectam as pessoas em um determinado contexto histórico, social e político, e refletir isso no seu trabalho artístico. Gal fez isso de uma maneira importante em alguns momentos de sua carreira, especialmente no Tropicalismo e no Desbunde, sob a ditadura militar.
Houve momentos simbólicos também no início dos anos 1980 – em sua fase festiva, arrematou multidões em eventos em prol da redemocratização – e no início dos anos 1990, em interlocução com a Era Collor, com os espetáculos Plural e O sorriso do gato de Alice. Desde Recanto (2011), projeto de nuances eletrônicas concebido para ela por Caetano Veloso, Gal vem sendo cada vez mais apreciada por plateias mais jovens. O posicionamento contra o governo genocida de Jair Bolsonaro vem nesse contexto. É simbólico e coerente com a trajetória dela que ela se posicione enquanto artista e cidadã nesse momento de caos civil e civilizatório.
Poderia destacar um trecho que você acha especial em seu livro?
Eu gosto bastante de um trecho em que Gal toma a voz para analisar algumas mudanças substanciais na própria trajetória. Trata-se de um excerto de um texto escrito por ela em 2005 chamado “Os doces monges” , em que ela narra o “desmame” artístico e emocional de Caetano Veloso. Desde o encontro dos dois, em 1963, ela havia sido uma espécie de protótipo de modernidade sobre o qual ele projetava suas inquietações artísticas. De certa maneira, ela também era um alter ego feminino do compositor, e isso se expressava de maneira contundente nas interseções artísticas entre os dois. O projeto Gal Tropical, de 1979, no entanto, marcou o rompimento desse cordão umbilical, e gerou transformações significativas nos rumos artísticos de Gal. Segue o trecho:
“Caetano estava de férias na Bahia e veio ao Rio especialmente assistir ao show. Chegou aos prantos ao camarim. Aos soluços. Não conseguia falar uma palavra. Tempos depois me telefona dizendo querer falar comigo. Em casa, os dois sentados na minha cama em posição de lótus, ele me dizia que não havia gostado do show. Que o show era careta, mas que não poderia comentar isso em publico, pois o Tropical era uma unanimidade nacional e não ficava bem para ele ir contra a corrente. Fiquei arrasada. Apesar de toda a crítica ter posto o show nas alturas, de todos os meus amigos, meus colegas, todos me cobrirem de elogios, Caetano ali na minha frente, justo ele que era a opinião mais importante para mim, dizia não ter gostado. Só agora, mais de vinte anos depois, entendo as lágrimas dele no camarim. Acho que naquela hora ele percebeu que nascia uma nova Gal, que ele perdia a sua criatura, que eu poderia partir para sempre sendo eu mesma. Como um pai que via a sua filha sair de casa. Livre e independente.”
E como quem ficou interessado deve proceder para adquirir o seu livro e saber um pouco mais sobre os papéis políticos de duas das maiores cantoras do Brasil em todos os tempos?
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