Parece sempre haver uma dose a mais de arrebatamento coletivo nas terças de Carnaval. Como se toda a euforia sentida ao longo dos 4 dias de festa se somasse à melancólica negação que este é o último momento e que será preciso, novamente, esperar mais um ano para brincar com toda intensidade. Por isso talvez a última noite do Rec-Beat tenha sido marcada de forma ainda mais intensa por um público completamente entregue a aproveitar cada instante, torcendo para que não seja preciso quase três anos de saudade novamente. O encerramento desta 27º edição do festival contou com a instigante Batalha da Escadaria, a poesia consciente de MC Marechal, o ritmo envolvente do congolês Kizaba, o experimentalismo dos britânicos O. e um show controverso do fenômeno carioca Bala Desejo.
Leia mais: Rec-Beat
A apoteose de Conde do Brega na abertura do Rec-Beat
Deize Tigrona e Getúlio Abelha em shows cheios de entrega
Com Mestre Ambrósio e Slipmami, penúltima noite do Rec-Beat foi de dança e euforia
Quem abriu a noite após o aquecimento da DJ Mx foi uma edição especial da Batalha da Escadaria, duelo de MCs que existe e resiste há 15 anos de forma mensal no Centro do Recife. Após rodadas fervorosas acompanhadas de perto pelo público fiel da cena do hip hop da cidade, os jovens MCs Jason e NeKeNiN se enfrentaram pelo título. Consciência racial e a política nacional protagonizaram os versos que, após uma contagem de votos apertadíssima tendo a própria plateia como jurada, declararam NeKeNiN campeão.
O rap continuou dando o tom do line-up com a apresentação seguinte, de MC Marechal. Pioneiro da cena carioca e fundador do grupo Quinto Andar, Marechal é um veterano que está na estrada há 25 anos com uma humildade louvável e um carinho imenso pelos seus fãs. E mesmo com essas mais de duas décadas de música, ele fez questão de ressaltar que está “só começando”.
Recém-operado e se recuperando de um tempo passado em cadeira de rodas, Marechal lamentou não poder descer para cantar com os fãs, mas entregou uma apresentação emocionante, dividida entre faixas de seu novo trabalho, Favela Vive 5 (2023), com clássicos como “Griot”, “Primeiro de abril” e “Viagem”. Conectado com a cultura pernambucana, ele também saudou o coletivo Pão e Tinta e o grupo Faces do Subúrbio.
A resistência e a ancestralidade presentes nas duas primeiras apresentações continuaram ecoando com o show do multi-instrumentista Kizaba. Originário do Congo mas hoje radicado em Montreal, ele já havia se apresentado no Rec-Beat em 2019, acompanhado de sua banda Afrotronix. Desta vez, trouxe em sua única passagem pelo Brasil nessa temporada o projeto que toca de forma solo, se alternando entre instrumentos de percussão, canto e comandando os samples, mesclando ritmos tradicionais congoleses com pop e eletrônico.
“Sempre gosto de começar com uma música em que converso com meus ancestrais, os curandeiros do meu país, faço apelo a eles”, contou após o show. Parecem ter sido justamente esses ancestrais, que também são os guias da cultura brasileira, que foram buscar de volta o público já um tanto disperso após o intervalo. A cada canção mais e mais pessoas chegavam no Cais da Alfândega e se entregavam ao som original e dançante de Kizaba. “O Brasil é um país de muitas raízes africanas, então temos essa conexão, essa história em comum.”
A conexão entre culturas e línguas distintas também se dá através do fazer musical em conjunto. Sem precisar de nada mais além do sentimento por essa universalidade, a banda britânica O., composta pela baterista Tash Keary e pelo saxofonista Joe Henwood, fez um show impecável dividido em dois tempos. Primeiramente se apresentaram sós, acrescentando dubs e batidas eletrônicas resultando num experimentalismo autêntico entre o jazz e o hip-hop.
Em seguida, receberam no palco músicos locais que participaram da residência que os londrinos fizeram no Recife sob a liderança de DJ Dolores. Lucas dos Prazeres (ogan e mestre), Deco do Trombone (trombone), Parrô (saxofone), Henrique Albino (saxofone) e Yuri Queiroga (guitarra/baixo) se uniram ao duo criando uma banda única de música instrumental, trazendo muita pernambucanidade para esse intercâmbio sonoro.
O show de O. encerrou com uma expectativa já pairando forte pela próxima e última atração do Rec-Beat. Quando o quarteto Bala Desejo entrou em cena, o público recente, mas muito fiel, não se conteve nas declarações de amor. Do início ao fim, todas as canções foram cantadas num coro uníssono de quem viveu o nascimento da banda durante a pandemia e a teve como companhia durante o lockdown. Chega a ser curioso observar essa devoção repentina, mas de certa forma justificada quando, entre uma música e outra, a vocalista Julia Mestre se dirige às fãs como “minhas passarinhas”, revelando uma intimidade e identificação já intensas.
Se o sucesso do grupo – tanto com o álbum Sim Sim Sim (2022), vencedor de um Grammy Latino, quanto com a formação de um grande público – é novo e muito jovem, não se pode dizer o mesmo de sua sonoridade. Poderia-se jurar que muitas das canções datam da Tropicália de tanto que a vibe setentista brasileira é presente, como é o caso das canções “Lua Comanche”, “Dourado Dourado” e “Muito Só”. Se as composições do Bala Desejo revelassem apenas uma inspiração, a fruição seria outra, mais centrada no presente e na reinvenção de uma brasilidade que entende e reverencia o vanguardismo de outrora.
Mas em muitos momentos as faixas soam como imitação de uma sonoridade que foi, sim, em sua época extremamente ousada e original. Assim também é a sensação da performance, mesmo intensa e coesa. A homenagem aos Doces Bárbaros e aos Novos Baianos, desde os gestos interpretativos à sensualidade encenada no palco, é tão clara e óbvia que faz o grupo carioca parecer quase um cover, e não uma banda autoral.
Talvez seja preciso que o quarteto percorra um caminho que traga mais maturidade para que possam encontrar uma personalidade própria que acompanhe o inegável talento musical e a energia contagiante de cada um dos integrantes. Um grupo afinado e com um extremo potencial de ser símbolo de uma nova geração da música brasileira.