LÍNGUAS QUE O DIABO RESPEITA
Budapeste, elogiado romance de Chico Buarque, emigra para a telona em adaptação de Walter Carvalho
Por Eduardo Carli de Moraes
Deveria ser proibido debochar de quem se aventura a amar em língua estrangeira. José Costa, protagonista de Budapeste, é um “escritor fantasma” que se lança a este desafio cheio de percalços. Mergulhando numa cultura estranha, como um alienígena que pousa no planeta incógnito de outro idioma, enfrenta as agruras de um mundo literário corrompido e as feridas e glórias de um vínculo amoroso difícil, em que o sentimento precisa dar um jeito de saltar pelo abismo de uma linguagem comum que falta, a princípio, mas que vai se inventando conforme se caminha.
Budapeste, livro bastante elogiado, é talvez um dos ápices do percurso literário de Chico Buarque. Lançado em 2003, pela Companhia das Letras, o romance arrancou simpáticos comentários de muitas sumidades da intelectualidade. José Saramago louvou-o: “Chico ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um arame e chegou ao outro lado. Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro.” Veríssimo, após elogiar a “prosa depurada” e a “construção engenhosa”, também derreteu-se em loas, dizendo que chegamos ao fim do livro “lamentando que não haja mais” e “assombrados pelo sortilégio deste mestre de juntar palavras”. Já José Miguel Wisnik sugeriu, com muita propriedade, que “no exato momento em que termina, transforma-se em poesia”.
Como adaptá-lo para a telona sem trair o espírito de um livro tão instigante, complexo e bem realizado? O diretor Walter Carvalho, que já tinha assinado a direção do documentário Janela da Alma (com João Jardim) e a cine-biografia musical Cazuza – O Tempo Não Para (com Sandra Werneck), realiza sim uma tentativa bem-cuidada, que prima pela técnica e que transporta com razoável fidelidade o mundo imaginado por Chico, ainda que com certos deslizes e equívocos (que logo mais comentamos).
“Como dar vida aos livros? Como voltar a vê-los como uma via real para a boa vida e não apenas como papel e tinta conversíveis em dólar?” , pergunta-se Jurandir Freire Costa (em artigo para a Folha de São Paulo, 7/2/99). Budapeste é uma obra que nos deixa obcecados e preocupados com a mesma dúvida, e um tanto desconsolados com a resposta que nós dá o atual estado de coisas.
Pois aqui as podridões no submundo da literatura são trazidos à tona: autorias duvidosas, campanhas de marketing apelativas, “tenebrosas transações” de bastidores, noites de autógrafo espetaculosas e festas de lançamento repletas de câmeras, champanhe caro e caviar. Um cenário repleto de êxitos literários efêmeros e voláteis parece erguido com o fim de ser um velado questionamento, que nunca descamba para uma crítica de artilharia pesada, a uma Sociedade do Espetáculo que criou livrarias que mais parecem templos do consumo e que fez se disseminarem como a peste os best-sellers e os livros de “auto-ajuda” (que ajudam muito mais a conta bancária de seus autores e editoras do que a conquista de sabedoria pelos leitores).
Mas a maior alfinetada às picaretagens do mundo literário é a própria profissão de Costa (encarnado no filme pelo excelente Leonardo Medeiros): ghostwriter, ou “escritor anônimo”. Trampando numa agência que oferece plena “confidencialidade”, ele topa escrever de tudo por encomenda: de teses de doutorado a livros de poesia, de auto-biografias a cartas de amor, passando até por discursos políticos e ameaças de suicídio – escritos que faz menos pela grana que pelo “exercício de estilo”.
No romance, esta faceta crítica é mais intensa e peçonhenta que no filme, no qual aparece um tanto atenuada e escondida detrás da “história de amor” que domina o primeiro plano. No livro, por exemplo, quando Costa vai ao lançamento do volume de poesias em húngaro que escreveu para outro assiná-lo, comenta enfezado que aquilo é um “rega-bofe para privilegiados!”. Sem falar que em seu livro Chico, provocando pesado, faz até o presidente da Academia Brasileira de Letras ser um cliente da Agência de Escritores Fantasma!
Costa é um autor ressentido por ser um mero “fantasma” e está faminto por palmas. Mostra-se sempre ansioso por destronar os falsos ídolos que se ergueram à glória literária com luz de empréstimo e pena alugada. Budapeste faz uma análise em minúcias de uma personalidade cindida entre o conforto de criar nos bastidores e a vontade de estar brilhando em cima do palco. Sua profissão gera nele um intenso desejo de vanglória, que é tão ardente por ter sido tão reprimido por tantos anos pela obrigação profissional de permanecer nas sombras do anonimato. “Eu desde sempre estive destinado à sombra, mas que palavras minhas fossem atribuídas a nomes mais e mais ilustres era estimulante, era como progredir de sombra…”, escreve Chico.
Há em Costa um anseio por reconhecimento que não pode confessar-se e que só se satisfaz de contrabando e às migalhas. Sua própria esposa, Vanda (interpretada por Giovana Antonelli), lê muitos artigos de jornal e livros de sucesso, sem saber que seu marido é o autor deles: “Ver a Vanda correr os olhos sobre as minhas letras, esboçar um sorriso, apreciar um texto meu sem saber que o era, seria quase como vê-la se despir sem saber que eu a estava olhando.” (103) Os momentos de maior carga dramática no filme de Carvalho são aqueles em que o “gabarola” que há em Costa sai de sua casca e exige para si os holofotes e as salvas de palmas. Como na cena em que ele, num rompante de ciúme, feito Otelo prestes a estrangular Desdêmona, arranca a esposa dos braços de um pseudo-escritor e desfaz a farsa a altos brados, no meio de uma festa. “Sou eu o autor do livro, não ele!”, esbraveja, como uma criança birrenta que quer a bênção da professora, dizendo que o colega que tirou 10 colou dele a prova inteira…
Budapeste, apesar de seu nome, não deixa de ser também uma obra sobre o Rio de Janeiro. Chico narra, com muito conhecimento de causa, várias cenas-marco do panorama carioca. Oferenda de lírios à Iemanjá debaixo dos foguetórios. Marchinhas de carnaval que emergem das ruas e disputam com o som dos televisores. Gringos deslumbrados que se enamoram de mulatas e seus indecorosos bronzeados. Jovens suburbanos, de cabeça raspada e profusas tatuagens, que talvez sejam “desses skinheads que gostam de encher as bichas de porrada”. Caminhadas infindáveis, de Leblon a Copacabana, que faz um literato avoado que os vendedores ambulantes provocam: “e aí, meu, tá à toa na vida?”
Escapando de um casamento opressivo no Brasil, Costa parte para uma aventura sentimental-literária em Budapeste. O filme (e o livro) é um relato de sua batalha para assimilar uma cultura estranha e adquirir uma nova língua – e uma das mais esdrúxulas e pouco familiares que existem para um brasileiro. Mesmo os budapestinos reconhecem o enrosco de seu idioma: “O húngaro é a única língua que o diabo respeita”. Costa nos dá a impressão de ser um homem que ama desbravar os mistérios das línguas estranhas e que acha que “desembarcar em país de língua desconhecida dá sempre uma sensação boa”, escreve Chico, “como se a vida fosse partir do zero”.
Kriska (Gabriella Hámori) é a paixão que ele acha em solo húngaro. Branca, bela e amante da disciplina, torna-se sua professorinha dedicada e exigente: “nas primeiras aulas, me fazia passar sede porque eu falava água sem acertar a prosódia”, escreve Chico. Não se sabe se a paixão é maior pela mulher ou pelo idioma, mas estas não são obssessões que se excluem: uma alimenta a outra. Quando está prestes a se aventurar no corpo estrangeiro de Kriska, ele pensa: “me comovia sabendo que em breve conheceria suas intimidades e, com igual ou maior volúpia, o nome delas.”
A prosa de Chico, ecoando sua poesia musical, possui muitos elementos brincalhões e lúdicos, com uma veia cômica muito afiada, o que não transparece quase nada na adaptação cinematográfica. Um pouco na linha de Lobato, Guimarães Rosa ou Adélia Prado, Chico adora usar termos, tanto do linguajar chulo e popular quanto do português mais parnasiano e livresco, que soam divertidos, inauditos e coceguentos. Pesquei de Budapeste, só a título de exemplo, alguns exemplares: arraia-miúda, embevecido, ressabiado, brutamontes, mentecaptos, caquético, lépido, encasquetado, atarantado…
Em Chico, o avião faz pouso forçado porque “deu um bode”, o chefe é um “vampiro que chupa talento” e a apresentadora de TV é uma “papagaia”. No exílio , o que mais maltrata o personagem é a saudade da língua materna, que faz com que Costa ligue para o Brasil só pelo prazer de deixar, numa secretária eletrônica, gostosuras do brasilianês – “marimbondos”, “adstringências” e “Guanabaras”, palavras que gringo algum tem o prazer de pronunciar! Apesar do livro estar repleto dessas guloseimas linguísticas – o leitor descobre fascinado que “tartaruga em alemão é sapo com escudo” e é apresentado a moças com “vestido maria-mijona”! – no filme o banquete linguístico é bem mais pobre e menos requintado.
Mas, se fosse só isso, o problema seria pequeno e indigno de reproches mais inflamados. O problema é que o filme comete mais graves pecados. Não se sai “tesourando” e modificando o espírito da linguagem de um livro, ao transpô-lo para o cinema, com impunidade artística e sem entornar um pouco o caldo. No fundo, a impressão que fica é que o cinema idealiza e tenta tornar “elevado” o que a literatura de Chico trata de modo pé-no-chão, irônico e cáustico.
O filme morre de medo da feiúra, enquanto que Chico em seu livro é frequentemente “punk” e obsceno – falando, por exemplo, em “comedor de merda”, “chupador de pica”, “beijar no cangote”, “se esbaldar no sex shop” e “falar peito, boceta e cu em dialeto”. Um bom bocado dessa linguagem ofensiva e forte é limado de um filme que se pretende refinado e sublime, mas que por isso trai bastante o espírito lúdico e brincalhão da apimentada escrita buarquista.
Através de uma fotografia majestosa e bela, o filme torna a cidade húngara algo elevado e altamente estético – e o deleite que nos causam nos olhos certas tomadas não surpreendem, já que Carvalho se notabilizou por magníficos trabalhos como diretor de fotografia em filmes como Lavoura Arcaica e Abril Despedaçado. Mas a Budapeste que Chico imaginou me parece bem menos acolhedora e maternal do que aquela que vemos na tela: seu Costa fica sem-teto e com cartões de crédito confiscados, zanzando por espeluncas e becos mau-iluminados, como um dejeto latino-americano indesejado. É uma figura um tanto trágica, que tem suspeita de pneumonia, só arranja trampo de subalterno e quase se suicida no Danúbio. Esses extremos maus bocados por que passa aparecem bem atenuados no filme de Carvalho, fazendo o personagem perder um pouco de seu caminhar trôpego e quase trágico. Tanto que fica a impressão de que o filme exagera na glicose e na água-com-açúquice em momentos em que o livro é trash feito um romance de Henry Miller.
No livro, Kriska também nos aparece muito mais como uma porra-louca indelicada, hedonista e maluquete, que vive tomando altos porres de vermute e convidando à sua cama vários homens. Nada a ver com a anjinha fofurete que vemos na telona. Ela, no filme, também não aparece com a densidade que possui no livro, quando é por horas radiografada pelo narrador com ironia fina, à la Milan Kundera: “A fim de me segurar comendo em sua mão, como talvez deseje, sempre me negará a última migalha”, escreve Chico.
O livro também passa longe de ser uma história de amor adocicada e terna, em que Kriska seria um porto seguro para um estrangeiro desnorteado, como fica a parecer na adaptação sentimentalizada que fez Carvalho. O que Chico descreve não é, de modo nenhum, uma relação amorosa alegre, sadia e radiosa que conduz a um happy end de conto-de-fada. Há no romance uma série de momentos em que o tom é de hostilidade, angústia e desnorteio muito mais que de harmonioso encontro. Cito Chico para referendar o dito: “Acho que Kriska só me fez entrar em casa porque não queria problemas com a polícia, caso eu viesse a falecer no seu portão”; “súbito me acometeu um espasmo, uma sensação de estrangulamento, uns arquejos violentos, eu soluçava como grunhe um porco…”; “esperei que me cuspisse na boca e me arranhasse a cara, depois me enfiasse aquelas unhas nos olhos e os arrancasse das órbitas, eu tudo suportaria…”.
Só por estes trechos já nota-se que a relação entre Kriska e Costa, que o cinema tenta transformar (sem muito sucesso) num bonitoso caso-de-amor açúcarado, é de fato uma tensa gangorra, em que lábios emudecem “palavras caídas em desuso de tão atrozes” (pg. 151) e o homem é capaz dos gestos mais brutais – como quando espatifa o prato de espaguete contra a parede quando não recebe os mimos que mudamente pede. O que em Chico é quase um Trópico de Câncer trashão e trágico e debochado, torna-se no cinema um Encontros e Desencontros adocicado com um pano-de-fundo cult e literário.
Budapeste, afinal, é uma obra sobre a podridão de um mundo literário espetacularizado, que Chico Buarque, sendo ídolo nacional e mito vivo, deve ter experimentado na pele quando procurou migrar da poesia cantada para a escrita romanceada. É uma obra que descreve de arrebatados ímpetos de ciúme e vanglória muito mau-canalizados, e que Chico só não transforma em tragédias shakespearianas dignas de figurarem em Otelo pois têm muita paixão pelo deboche e pelo hilário para que recaia no melodramático. E é também, sobretudo, uma obra sobre amores trôpegos que tentam, muitas vezes em vão, vencer o abismo de desconhecimento causado pela solidão e por tudo que se perde na tradução.
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