No palco principal do Carnaval do Recife no Marco Zero, neste ano, assim como aconteceu em anos anteriores, artistas que fazem sucesso em todo o país, regem a festa. Entre o samba, o pagode, o funk, o pop, o frevo e o maracatu, estão o brega e o brega funk.
Que o frevo é eterno símbolo do Carnaval, isso é inegável. Assim como o maracatu, os baques, os afoxés, os blocos líricos e inúmeras outras expressões da cultura popular pernambucana. Também é verdade que não é de hoje que a tradição divide lugar com outros ritmos na festividade. Afinal, o que é o Carnaval se não um período de liberdade e diversidade? Esses elementos, que fazem parte do ser folião, representam a música e as mudanças que os novos tempos da cena artística trazem.
Há uns 30 anos atrás, Carnaval e shows, por exemplo, eram coisas que não se interligavam. Ao consultar o crítico musical José Teles foi possível entender que por volta de 1980-1990, o Carnaval do Recife ainda era feito, principalmente, por blocos de rua, nos quais o frevo corria solto. Em 1994, porém, Chico Science & Nação Zumbi se apresentaram em cima de um palco no Cais da Alfândega.
A experiência embrionária se replicaria, fosse por ali mesmo anos depois com o Rec-Beat, fosse, por iniciativa do poder público no Marco Zero, e posteriormente em polos espalhados pela cidade. Esse “sistema” de palcos chegou até na super tradicional Olinda, que em 2023 adotou os shows e polos descentralizados. Não só as cidades irmãs, assim como diversos municípios de Pernambuco, investem na “receita” em 2024, abrindo o leque do repertório musical da festa, que além da tradição, traz shows no propósito de atrair mais públicos com uma roupagem multicultural.
Nesse contexto, o brega e o brega funk são destaques. Vale distinguir que ao mencionar somente “brega” refere-se a vertente mais romântica do estilo, mais dor de cotovelo, lenta, das músicas que fazem dançar colado. Já o brega funk é a skin mais despojada, enérgica, pra dançar, fazer passinho e rebolar. Ambos, ao se somarem, representam o Movimento Brega.
Sobre a presença desse Movimento no Carnaval de Shows do Recife, lembremos: o brega marcou presença pela primeira vez no palco principal do Marco Zero em 2020, antes da pandemia, com uma apresentação histórica de Priscila Senna, enquanto o brega funk ocupou o mesmo espaço pela primeira vez no ano passado.
Programação do Carnaval 2024
Shows no Marco Zero: Gilberto Gil, Ludmilla, Luísa Sonza, Alceu Valença
Rec-Beat: Letrux, Ana Frango Elétrico, Urias
Praça do Arsenal e Pátio de S. Pedro: Rubel, UANA, Marcelo D2
Olinda, praça do Carmo: Nação Zumbi, MC Tocha, Siba
Olinda, Guadalupe: Conde Só Brega, Dany Myler, Abulidu
Se pensarmos que a cena romântica faz sucesso no estado desde 2008, e a do brega funk tem força desde 2017, por que somente em 2024 as duas facetas do gênero vão pisar, juntas, no palco principal da festa na capital pernambucana?
Brega como expressão cultural no âmbito político
“Foi um processo lento a entrada do brega no Carnaval. Esse processo tem a ver com o que eu chamo de institucionalização do brega no estado de Pernambuco. Pra entender como entra no Carnaval é preciso perceber como é visto pelo estado, dentro do que podemos pensar em políticas públicas”, explica Thiago Soares, escritor, professor e pesquisador de cultura pop da Universidade Federal de Pernambuco.
Ele é autor do livro Ninguém é Perfeito e a Vida é Assim: A Música Brega em Pernambuco, utilizado como referência para a elaboração das leis de reconhecimento do Movimento em âmbito estadual. A lei que reconhece o brega como expressão cultural de Pernambuco aprovada em 2017, e a que intitula o gênero como Patrimônio Cultural Imaterial da cidade do Recife em 2021.
Thiago Soares conta que para ser inserido no circuito de editais públicos ou em leis de incentivo a cultura, o brega precisou ser reconhecido pelo estado como expressão cultural, e destaca que esse processo lento tem a ver com suas origens. “Esse movimento não é novo. Isso aconteceu com o samba na década de 1930, com o forró, na década de 1960. Qualquer música popular que vem das periferias, que vem de pessoas negras, subalternas, a priori, não é reconhecida. Primeiro, será muito hostilizada. Esse não é um fenômeno que vai se esgotar. São músicas que por virem dessas origens são bastante estigmatizadas”, analisa.
Depois de amparado pela lei, o brega começou a subir em palcos ancorados por verba pública. A primeira vez que isso aconteceu foi em 2019 no Festival de Inverno de Garanhuns, com “A Noite do Brega”, onde se apresentaram atrações como Amigas do Brega, Banda Kitara e Priscila Senna.
“Politicamente, o brega vai sendo incorporado também como uma agenda de governos. Pelo menos, desde 2018, o Movimento passou a fazer parte de uma agenda política. É preciso pensar que o governo de João Campos, e mais precisamente do PSB, usou com muita eficácia a plataforma do brega se aproximando de perfis como Brega Bregoso, Recife Ordinário”, observa Thiago Soares, entendendo que desde o reconhecimento pelo poder público, o cenário ganha esses contornos. “É aí que ele coloca o brega funk com o Anderson Neiff no palco do Marco Zero. Esse é um processo que tem a ver com interesses culturais e políticos. É rentável para os políticos, do ponto de vista de métrica, alcance e popularização, se aproximar do brega e o Carnaval é um grande momento em que essa aproximação acontece para esses fins”, completa.
Buscada pela reportagem, a Prefeitura do Recife reforçou o compromisso com o brega em nota: “A gestão vem buscando estratégias e abrindo cada vez mais caminhos para fortalecer, também, a cena cultural do brega, tão significativa e crescente nas periferias da cidade, e garantindo seu espaço nas programações, celebrações, playlists, palcos e ciclos festivos oficiais do Recife. Além disso, desde os primeiros editais culturais lançados pelo poder público municipal, como o Recife Virado e o Plano Recife AMA Carnaval, um número cada vez maior de projetos dedicados ao ritmo vem sendo registrado, o que confirma e, ao mesmo tempo, fortalece a importância que o movimento segue ganhando na capital pernambucana e dela em diante.”
Afinal, Brega é Carnaval?
Em 2019, o Movimento Brega começou a ser incorporado nos palcos ancorados por verba pública. A Prefeitura do Recife relembra em nota que neste mesmo ano “o brega já espalhava atrações nos polos de Réveillon montados pela Prefeitura”. No que diz respeito ao Carnaval, essa presença deu seu pontapé inicial em 2020 com Priscila Senna. Porém, vale mencionar que no âmbito independente essa chegada aconteceu mais cedo.
No Rec-Beat de 2018, Tocha foi uma das atrações principais do lineup e “foi recebido por um Cais da Alfândega lotado e por fãs ansiosos pela presença do artista”, segundo as palavras do repórter Túlio Vasconcelos em cobertura para a Revista O Grito! naquele ano.
Essa recepção calorosa se repetiu em 2020 com Priscila Senna, show que a própria Prefeitura considera “das mais bonitas apresentações que o Carnaval, no Marco Zero do Recife, já emoldurou”, em 2023, primeiro ano da iniciativa “Recife Capital do Brega”, quando os artistas não conseguiam conter a emoção ao se deparar com o mar de foliões cantando suas músicas, e no mesmo ano, quando o Conde Só Brega foi headliner do Rec-Beat. Tais recepções servem para medir o nível de afinidade do folião pernambucano com o brega.
“É tardia a entrada do brega no Carnaval. A cena de brega no Recife começa a efervescência por 2008/2009, quando se tem a grande presença de programas de auditório na televisão e as bandas, como Metade, Ovelha Negra, a volta de artistas mais consagrados, como Reginaldo Rossi, Conde, Banda Só Brega. Desde 2008/2009 se tem o brega já muito presente na cultura popular midiática de Pernambuco. Veja aí o lapso, mais de 10 anos da consolidação até a entrada como agenda do Carnaval”, constata Thiago Soares.
Ele observa, todavia, que ainda que antes de 2019, não relacionado oficialmente como atração do Carnaval, o brega nunca esteve distante da festa. “Quando acabavam os shows, nas ruas ao redor, o povo ligava suas caixinhas de som e ficava dançando. Ou seja, não esteve presente nos palcos oficiais, mas de maneira oficiosa, nas ruas, no corpo, na dança, sempre esteve”, compartilha.
Neste ano, oficialmente, o Movimento Brega estará presente nos carnavais de shows do Recife, de Olinda, de Bezerros, de Igarassu, entre outros municípios, o que para a cantora Dany Myler é uma vitória. “Essa é uma luta que não vem de hoje, é de muitos anos. De artistas que ocupam o espaço do brega muito antes de mim, que infelizmente não estão aqui hoje para ver as conquistas que estamos tendo, como o próprio Rei Reginaldo Rossi. Seria incrível que ele estivesse vivo, vivenciando e colhendo todos os louros que hoje nosso brega, mesmo com algumas resistências, está alcançando”, reflete.
Dany tem uma carreira para mais de 20 anos com o gênero musical, dona de hits como “Thynara”, integrou grupos como Lolyta Vision e Amigas do Brega. Atualmente, em carreira solo, segue antenada na trajetória de ocupação de lugares que o Movimento vem travando. Ela, esteve no ano passado, junto a nomes como Michelle Melo, Conde Só Brega e Nega do Babado em Brasília na audiência pública realizada pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados para debater a criação do Dia Nacional do Brega.
“Ter essa valorização diante do nosso Carnaval, uma das maiores festividades culturais do nosso estado e do Brasil, nos enche de orgulho. É estarmos de fato com a alma lavada, sabendo que estamos fazendo um bom trabalho, principalmente valorizando os militantes do nosso Movimento. Essas conquistas se dão através dos artistas e dos porta-vozes que seguem brigando e fazendo com que cheguemos longe”, reforça Dany Myler.
“Politicamente, o estado precisa acolher esses artistas pernambucanos. Houve uma gradação da entrada do brega no Carnaval. Primeiro o brega romântico, que goza de menos estigma, que já tem uma tradição de Reginaldo Rossi, da música dor de cotovelo. O brega funk veio por último porque goza de mais estigma por ser uma música feita prioritariamente por homens e mulheres negras, agora mais recentemente pela comunidade LGBTQIA+. O racismo estrutural também se manifesta no brega. Os artistas negros, os chamados “malokas”, o passinho, sempre foram vistos com muito estigma. Isso foi transferido no olhar que o estado teve para esse setor. Ainda bem que está se revendo esses princípios muito pela força política do passinho, do bregafunk”, contribui Thiago Soares.
“A importância de ocuparmos esses espaços é enorme, artisticamente, mas principalmente se falando de movimento cultural. A gente sabe que o Movimento Brega representa uma parcela muito grande da comunidade que se via sempre invisibilizada nesses momentos. Embora todo mundo curtisse brega, não via seus representantes estando naquele lugar, elevando a nossa cultura a outros patamares”, enxerga Dany Myler. “Estamos correndo aí para que haja o Dia Nacional do Brega e para que a lei de patrimonialização não se restrinja apenas ao Recife mas que percorra o Brasil inteiro, ganhando editais para que consigamos ocupar outros lugares além do Carnaval”, almeja a cantora.
O perfil multicultural do Carnaval Pernambucano é uma realidade, e o brega faz parte disso. Ainda que hajam mentes conservadoras que sejam contrárias a inserção do Movimento no Carnaval, há também a constante defesa do brega como expressão cultural, assim descreve Thiago Soares. “Quem critica o brega no Carnaval não entende que o Carnaval é uma festa sobretudo da grea. Umas das marcas estéticas do brega é a grea, uma coisa muito pernambucana, essa coisa jocosa, humorística, de tiração de onda. Isso é muito parte da cultura do brega. Não existe Carnaval sem grea. É uma parte fundante de uma relação que estabelecemos com a festa, quando suspendemos um pouco a dinâmica da racionalidade, e alteramos na chave da sexualidade, da alegria”.
E continua: “Outra grande bobagem é separar o brega da cultura popular, quando o Movimento é a grande expressão da cultura popular midiática de Pernambuco. Existe em Pernambuco o popular folclórico, que seria o frevo, o maracatu, mas também existe a cultura popular midiática, que seria essa cultura atravessada pela mídia, que precisa dela para se estabelecer. Grande parte dos artistas do brega tocam em bandas de frevo, fazem intercâmbios com a cultura popular, são de comunidades, vivem com maracatus, com caboclinhos, grupos populares. Essa separação que se faz é artificial porque no dia a dia estão misturadas. Na verdade, quem diz que não é Carnaval, está retirando do brega seu grande valor de alegria, de grea, de felicidade, que tanto classifica a expressão cultural de Pernambuco.”
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