Beyoncé
Renaissance
Parkwood/Columbia, 2022. Gênero: Pop, R&B.
Passaram-se seis anos desde que Beyoncé lançou seu último álbum, Lemonade, um trabalho em que explorava questões políticas ligadas à experiência negra na América ao mesmo tempo em que processava turbulências internas em seu casamento, alimentado por rumores de infidelidade de seu marido, Jay Z. Renaissance, seu sétimo trabalho, marca uma nova era mais assertiva e escapista, dançante, com um trabalho que reverencia a cultura dance, sobretudo a contribuição de negros e LGBTs para esta cultura.
O retorno de Beyoncé vem cheio de significados e tem um contexto histórico que trará um peso ao álbum muitos anos adiante. Este lançamento chega como o primeiro grande evento da música pop da sociedade pós-pandêmica e dá o tom de uma emergência de vitalidade necessária após anos de isolamento e perda. A artista indica que o caminho pra esse renascimento passa pela pista de dança.
Mas não se trata de um disco puramente escapista ou raso em suas intenções estéticas e sonoras. A persona de diva pop construída por Beyoncé desde seu disco homônimo de 2014 a colocou como um nome relevante culturalmente por conta de seu interesse em ressoar questões políticas de seu tempo através de suas músicas. Isso significou trilhar um caminho que muitas vezes não se adequava ao esperado pela indústria do entretenimento. Os fãs a apoiaram totalmente neste intento e acompanharam atentos a cada projeto da artista, mesmo que Beyoncé tenha se tornado cada vez mais reclusa e seletiva em suas aparições. O exato oposto da superexposição que muitas artistas precisam se submeter para dar conta do apetite cada vez mais voraz por conteúdos online em um mundo subjugado por algoritmos de redes sociais.
Seu dois últimos trabalhos apostaram em uma sonoridade que a desamarrou da cartilha do pop mainstream, indo fundo em uma pesquisa sonora que apostou em influências do afrobeat, rap e country, ao mesmo tempo em que fazia um R&B de altíssima qualidade. Em Renaissance ela volta a se aproximar desse universo pop mainstream, mas sem se dobrar às expectativas da indústria. E segue com o intuito de ressoar questões de seu tempo, como fez em seus dois últimos trabalhos. Mas agora, com um desejo fortíssimo de se divertir pra valer.
Escrito durante os anos de isolamento da pandemia do coronavírus, a inspiração para o Renaissance veio de décadas de cultura dance. Beyoncé não apenas usou os clássicos da pista de dança como referências para o álbum – ela compreendeu a importância que essa cultura tem para grupos marginalizados e deu um verniz de celebração para as faixas do disco. Ao longo do disco é possível ouvir diferentes referências à cultura ballroom, que foi o espaço de acolhimento para várias gerações de LGBTs, como em “Pure/Honey”, uma faixa perfeita para dar close na passarela do baile em qualquer categoria. O disco foi dedicado ao seu tio gay, Johhny, que morreu em decorrência de complicações causadas pela aids. Ele a apresentou a uma cultura musical dance marcada pelo protagonismo negro e queer.
Não faltam referências à era disco, a exemplo de “Summer Renaissance”, que traz sampler de “I Feel Love”, de Donna Summer e “Move”, que conta com vocais de Grace Jones, creditada como um feat na faixa. Beyoncé também faz do disco um espaço de aceitação de si mesma, com faixas pensadas para todo mundo se sentir gostosa como ela, com “Virgo’s Groove”, onde expressa o prazer de amar alguém que te faz sentir bem consigo mesma e “Cozy”, sobre estar confortável e segura com o próprio corpo.
Em “America Has A Problem” ela exalta os prazeres sexuais sem culpa em uma faixa que remixa o clássico de Kilo Ali dos anos 1990 “Cocaine (America Has a Problem)”. Quando a lista de faixas foi divulgada, a expectativa era por uma faixa ostensivamente política, mas afinal o resultado soou como um “bait” da cantora. Curiosamente, é um dos momentos mais fracos do disco. Mas, se a falta de sutileza se faz notar aqui, o resto de disco segue encorpadíssimo, com uma produção muito bem construída para funcionar com um gigantesco DJ-Set, o que chama atenção inclusive pelas transições entre as faixas. O momento em que a ótima “Energy” dá lugar ao single “Break My Soul” é simplesmente perfeito.
No batidão de Beyoncé há espaço para diferentes propostas sonoras (os famosos “moods”), o que faz do disco uma experiência nada monótona de audição. Tem afrobeat em “Heated”, um disco-funk nervoso em “Cuff It” (uma das melhores faixas), um gospel com jeitão oitentista em “Church Girl” e há espaço até mesmo para o intercâmbio eletropop com o queridinho alternativo da eletrônica A. G. Cook, que produziu “All Up In Your Mind”, uma faixa eletrônica puxada pro synth-pop que soa como uma boa surpresa no repertório da artista. E em um disco que aponta para um aceno pop bastante evidente da cantora, “Plastic Off The Sofa” chega com sua interpretação impecável para aquele momento mais romântico/sexy que os fãs aguardavam desde o 4, de 2011.
“Alien Superstar”, outro ponto alto do disco, referencia novamente a cultura ballroom ao mesmo tempo em que soa como uma das faixas mais pop feitas por Beyoncé em muitos anos. É um trabalho que resume bem este disco, pois coloca a cultura dance no lugar de destaque, com presença de elementos bem típicos dessa cultura, como o mestre de cerimônia abrindo os trabalhos anunciando as categorias, o carão, as poses. Mas, ao mesmo tempo em que tem uma emergência pop, é uma canção cheia de camadas, com uma produção tão sofisticada que revela detalhes a cada nova audição.
Beyoncé sabe que a pista de dança foi o refúgio que negros e queers sempre recorreram ao longo das décadas contra tudo de ruim que existia ao redor. Ela quer retomar essa proposta, mas para um público claramente maior e este parece ser seu principal posicionamento para esta era. O que todas as faixas deste primeiro ato do Renaissance dizem é que a pista de dança é também um espaço de afirmação, de emancipação, de fuga, de proteção.
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