A 13º edição do Animage teve sua abertura marcada pela estreia de Bizarros Peixes das Fossas Abissais, de Marão – logo, era de bom tom finalizar as atividades com a exibição do outro longa-metragem brasileiro na programação: Placa-Mãe (2022), animação infantil de Igor Bastos que antecedeu a cerimônia de encerramento, realizada no cinema da Fundação Joaquim Nabuco do Derby no último domingo (8).
Ao longo de uma hora e 45 minutos, a obra acompanha a relação entre a androide Nadi e os órfãos David e Lina. Em um Brasil futurista – e proporcionalmente desigual – os robôs vivem entre os humanos, tratados como animais de estimação ou funcionários a depender de suas características.
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Nadi, no entanto, pela complexidade de sua construção, alcançou o status de cidadã na justiça, permitindo que tenha propriedades e abrindo margem para a constituição de uma família. A ideia, no entanto, não é bem vista por uma parcela da população representada pelo senador Asafe e sua falsa moralidade sobre noções de família.
Avançar pelos primeiros trinta minutos de filme pode ser cansativo. Tecnicamente, a obra não impressiona, despida de fundamentos cinematográficos essenciais para instigar o público, de escolhas de enquadramento à movimentos de câmera, especialmente perceptível em cenas de ação sem ritmo, peso, tensão ou impacto.
Há quem releve tais problemas sob a justificativa do público-alvo infantil – mas a desculpa não cola em um festival como o Animage, repleto de obras infantojuvenis incríveis, mesmo sendo um longa-metragem com uma maior duração e necessidade de recursos que um curta. É sempre válido lembrar que crianças merecem o mesmo nível de qualidade e apreço que os adultos.
Dito isso, os elementos técnicos incomodam menos quando o filme finalmente engata no arco dramático cobiçado, pois é no roteiro onde estão a maior parte de seus acertos. A história não é complexa, mas aborda questões realistas e relevantes o bastante para tocar até mais os pais do que os pequenos, especialmente aqueles cujo laço familiar é adotivo.
A todo momento, a produção faz questão de ressaltar que existem múltiplos tipos de família possíveis, não só a tradicional formação nuclear composta por pai, mãe e filhos conectados por sangue – uma mensagem especialmente poderosa ao Brasil de 2023, ainda imerso em um período de conservadorismo e fundamentalismo que alega valorizar ideais de família, exceto quando não segue os padrões estabelecidos por instituições milenares.
É interessante, inclusive, a escolha de Bastos em criar um antagonista que tão abertamente satiriza o ex-presidente Jair Bolsonaro e os tantos outros políticos que adotaram personas similares como uma forma de ensinar que o sistema é necessário, mas ainda feito de pessoas corruptíveis.
Em meio a sua cruzada “em prol dos valores da família” e a cassação da cidadania de Nadi, o senador Asafe põe as crianças em risco e sequer demonstra qualquer preocupação sobre sua segurança – sugerindo até “se livrar das evidências” se referindo ao jovem David – preferindo a preservação de sua agenda ideológica e popularidade.
A boa mensagem e diálogo proporcionado pelo roteiro, infelizmente, acaba prejudicado pelo uso de artifícios narrativos pobres e sem sentido para justificar conflitos – como Nadi falando em devolver um robô para onde ele seria maltratado apenas para David ouvir e decidir fugir de casa, desvirtuando fundamentalmente a moralidade de Nadi, que compreende humanos e máquinas como seres vivos que merecem um lar – e soluções conceitualmente esquisitas em meio a mensagens tão otimistas.
Buscando a sátira e a verossimilhança em seu Brasil futurista, com uma gama de possíveis alternativas mais esperançosas, o diretor opta pelo caminho do realismo ao amarrar as pontas no final, essencialmente pontuando que os vilões vencem, tempos sombrios se aproximam, e não há nada que possa ser feito além de se adaptar e procurar por brechas legais na tentativa da salvação. Uma dura realidade, mas que não deveria apagar as faíscas de otimismo.
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