Cinema da UFPE, Recife (PE)
Um dos momentos principais do Animage 2023 aconteceu logo em sua noite de abertura, quando o cineasta carioca Marcelo Marão exibiu seu longa-metragem Bizarros Peixes das Fossas Abissais pela primeira vez no Brasil. Tanto como homenagem quanto uma forma de introdução aos não-iniciados na obra do cineasta, a curadoria organizou uma retrospectiva de seus curtas – datando desde 1996.
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Vale ressaltar que a exibição da mostra na última sexta-feira (6) no cinema da UFPE não foi a primeira. A seleção já havia chegado às telonas da sala da Fundação Joaquim Nabuco no dia seguinte à estreia do longa, sendo uma das únicas mostras do festival a ter duas sessões – ao lado da Africana, cuja estreia e reprise acontecem no final de semana.
Ainda assim, Marão não deixou de marcar presença, tendo acompanhado inclusive as mostras competitivas que antecederam a sua própria. Quando o público se aconchegou nas poltronas, o diretor foi introduzido pelo curador Julio Cavani e aproveitou o tempo para contextualizar os bastidores e inspirações para algumas das obras prestes a serem exibidas, receando até que pudessem achar que um dos curtas não estava finalizado, por motivos, talvez não-tão-óbvios, sem as informações adicionais.
O diretor carioca é uma figura carismática. Sem microfone, subia os degraus do cinema para projetar a voz e ter certeza que alcançava todos os ouvidos. Marão usa a comunicação a favor de sua obra – faz questão que o público não perca tempo se prendendo a fatores que ele considera superficiais ou inerentes ao contexto da realização.
O caso mais interessante é em Pelotas de Regurgitação (2000), o caótico curta de apenas um minuto, com traços rápidos e por vezes incompreensíveis riscados em película reutilizada, e cuja dublagem de gritos inconsistentes foi feita por amigos e colegas bêbados do autor. Esta é talvez a melhor introdução ao trabalho de Marão – surtos altamente criativos e experimentais que nem sempre trazem uma mensagem, mas exalam inspiração e arte.
Entretanto, cronologicamente, este não foi seu primeiro trabalho. Seus dois primeiros curtas apresentados foram Cebolas São Azuis (1996) e Chifre de Camaleão (2000), que já trazem os primeiros sinais de elementos que viriam a ser icônicos, como o humor nonsense e irônico e as narrativas focadas em personagens bem definidos – outro ponto fortíssimo de sua obra.
No primeiro, acompanhamos um herói tentando resgatar os habitantes de seu vilarejo das mãos de um mago tecnológico que os transformou em cebolas. Justamente por ser o mais antigo de seus filmes, é o mais “contido”, chegando até a causar um estranhamento, que se acentua com a mensagem nada sutil (porém engraçado) contra os exageros do mundo digital – um tipo de crítica que não se encontra muito na superfície do restante dos curtas exibidos.
O segundo, por sua vez, é praticamente uma observação naturalista de camaleões disputando por uma fêmea no quintal de uma residência, enquanto coexistem com a ameaça de um bebê humano – e novamente, destaca-se o design de personagens automaticamente reconhecíveis e divertidos de acompanhar. Também é válido ressaltar que estes dois trabalhos mais antigos também carregam marcas temporais que os demais não possuem, como a objetificação da figura feminina, desde seios e glúteos tomando a tela até personagens sendo despidas como alívio cômico.
Com o passar dos anos, Marão criava cada vez mais fora da caixa. Nada revolucionário, mas sempre único, constantemente pessoal e majoritariamente otimista, ou pelo menos oferecendo uma interessante autorreflexão, seja aos pequenos ainda em processo de desenvolvimento de moralidade e valores, ou para os adultos atrás de uma reinterpretação de seu lugar no mundo.
Com O Arroz Nunca Acaba (2005), o cineasta fez uma épica batalha aleatória simulando o processo de produção de um curta-metragem. Nem todas as cenas estavam completamente animadas, e algumas propositalmente eram expostas ainda no storyboard, o que não deixou o conflito menos instigante. Novamente com as lições otimistas, Marão aproveita o cenário para não apenas incentivar determinação, mas a resolução pacífica de conflitos.
Seu Dente e Meu Bico (2006) é talvez o menos autoral da seleção. Produzido para um edital do Ministério da Cultura com o tema “Melhores Amigos”, apenas um minuto de duração e sem diálogos, o diretor retrata a relação entre um pássaro e um jacaré que cuidam um do outro para sobreviver na natureza selvagem.
Em linha semelhante, O Muro Era Muito Alto (2019) também teve uma mão criativa mais leve em sua produção, sendo uma colaboração extraída do longa Unicórnio (2019), dirigido por Eduardo Nunes. O trecho começa com a cena do live action, onde um pai conta à sua filha a história de um ratinho tentando pular um muro para sua liberdade – ilustrada por Marão.
Apostando em discursos aparentemente mais pessoais, Marão faz uma reflexão sobre seu lugar na sociedade, autoestima e estereótipos com O Anão que Virou Gigante (2008) – o título é autoexplicativo e literal. A narração soa como um desabafo repleto de metáforas, exageros e até preconceitos, quebrados à medida que sua divagação vai chegando à uma realização concreta sobre a perfeição inalcançável dos padrões impostos.
Eu Queria Ser Um Monstro (2009), único stop-motion da seleção, também segue a linha de histórias mais íntimas, relatando o dia a dia de um menino com bronquite e a sutilmente emocionante relação com seus pais e a percepção de si próprio.
Sua obra mais assumidamente documental, no entanto, é o divertido Até a China (2015), onde o próprio Marão assume o protagonismo e reconta sua viagem ao outro lado do mundo para um festival de cinema e relata sua primeira experiência com os choques culturais como um alienígena explorando uma sociedade completamente distinta.
A seleção da Mostra Retrospectiva, realizada por Julio Cavani, é o perfeito contexto para um melhor entendimento de Bizarros Peixes das Fossas Abissais, como as peças chave de um quebra-cabeça caótico nonsense que viveu diversos momentos diferentes da criatividade do cineasta. Em cada curta, o público compreende um pouco mais como cada parte de seu cérebro funciona, como ele integra suas mensagens e discursos à arte, e como seu caos é milimetricamente elaborado. Talvez justamente por isso ele não cansa de dizer que os curtas-metragens são o formato nobre da animação.