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“Anarcoma” é uma deliciosa chuva de deboche e irreverência

A personagem, criada nos anos 1980, pelo iconoclasta Nazario Luque Vera foi um símbolo da liberação sexual na Espanha após o fim da ditadura franquista

“Anarcoma” é uma deliciosa chuva de deboche e irreverência
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Anarcoma
Nazario
Veneta, 160 páginas, 119,90
Tradução de Marcello Quintanilha

Você gostaria de ter um robô o qual basta apertar um botão vermelho instalado no umbigo para ele transar adoidado? Pois bem, essa é apenas uma das divertidas aventuras vividas pela travesti detetive Anarcoma, personagem criada pelo quadrinista espanhol Nazario Luque Vera, cujas histórias apareceram no início dos anos 1980, primeiro na revista Rambla e, depois, na mais famosa publicação alternativa espanhola, a El Víbora. Em 2017, a Ediciones La Cúpula produziu uma coletânea dessas histórias e ela agora chega ao Brasil, traduzida e publicada pela editora Veneta.

A El Víbora surgiu na Espanha em 1979 e circulou regularmente até 2005. Foi uma das mais irreverentes publicações dos quadrinhos underground do período e principal divulgadora de artistas como Nazario, um ícone da contracultura no país e um dos primeiros autores a abordar a homossexualidade de forma aberta e explícita. Nascido em uma pequena cidade do interior da Espanha, durante quinze anos Nazario foi professor para adultos até ir viver em Barcelona onde começou a desenhar quadrinhos. Anarcoma é a sua criação de maior sucesso e se tornou um símbolo da liberação sexual e das mudanças de costumes ocorridas naquele país após o fim da ditadura do General Franco.

Para entender por que Anarcoma tornou-se tão emblemática, basta ver como ela é apresentada, pelo próprio Nazário, na galeria de personagens que abre a coletânea. Pelas suas características físicas – “mistura de Humphrey Bogart e Lauren Bacall” com um “quê de Modesty Blaise e Emmanuelle” –, e por sua personalidade controversa, não restam dúvidas de que estamos diante de uma figura ímpar no universo dos quadrinhos. Seu nome inclusive conjuga as palavras desgoverno (anarquia) e corrosão (coma), como observa o tradutor da edição brasileira, Rubén Lardín, na apresentação do livro.

Não é difícil perceber que Nazario, ao criar a personagem, usou e abusou de elementos referentes à cultura pop e a cultura gay em voga naquele momento. Nas palavras do próprio artista, Anarcoma “não é operada e nem pretende ser, porque tem orgulho de sua jeba. Atua em um clube de travestis, dublando ou fazendo pista, faz trottoir, mas seu maior sonho é ser detetive. Gosta de flores artificiais, quadrinhos, imprensa sensacionalista e classificados amorosos são suas leituras preferidas”. Mais pop, portanto, impossível. Ah! E ela tem uma máquina de fliperama em casa.

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Nazario Luque (Foto: Divulgação.)

Além do personagem fascinante, as histórias de Anarcoma tem como cenário as ruas frenéticas de Barcelona, cidade que também viveu sua “movida” (movimento sociocultural que varreu a Espanha após o fim da ditadura de Franco a exemplo de Madri, no qual o cineasta Pedro Almodóvar foi um dos expoentes). Nelas, Nazario chutou o pau da barraca da caretice que ainda imperava no país. É bom lembrar que a Espanha, entre as décadas 1940 e 1970, se tornou um dos países mais conservadores e retrógrados da Europa, sobretudo pela forte censura do regime franquista e, mesmo no início dos anos 1980, ter uma travesti protagonizando uma história em quadrinhos era uma ousadia, principalmente pelo fato de Nazario, com seu caráter provocador e transgressor, não fazer concessões de ordem moral.

O mundo de Anarcoma tem cafetões, gigolôs, bichas, travestis e mafiosos. Nas páginas de suas histórias desfilam sociedades secretas como os cavaleiros da Santa Ordem de São Reprimônio, gangues de mulheres como Metamorfosina e suas Piranhas Caolhas, policiais atrapalhados, militares sádicos, um inventor – o Professor Onliyu, cuja máquina por ele construída é roubada e sempre causa algum quiproquó nas tramas – e os Irmão Herr, duas bichas cientistas que fabricam robôs para treparem com eles. E é um desses robôs, o XM2, com aparência de macho alfa, peludo e bem-dotado, que se torna amante de Anarcoma.

Anarcoma, de Nazario.

Ler as histórias em quadrinhos de Anarcoma é passear pelas ramblas de Barcelona e dar boas risadas com as situações inesperadas vividas pela personagem nas quais não faltam tórridas cenas de sexo e conversas debochadas das bichas e travestis soltando muito veneno. Nesse sentido, a narrativa de Nazario se revela como crônica humorística quase jornalística das ruas, pois fica evidente o quanto dos enredos é fruto de seu próprio cotidiano.

As diversas histórias integrantes da coletânea estão repletas de situações hilárias como o robô bofão que, aos poucos, descobre seu talento como transformista e passa a fazer shows dublando a cantora Sarita Montiel, e o velório de uma bicha velha rica que se transforma num bacanal. O leitor, no entanto, também vai se deparar com muita ação quando Anarcoma cai em campo para investigar crimes e se envolve com bandidos inescrupulosos e assassinos sanguinários, o resultado é mais sexo com direito a uma chuva de “slurps” e gemidos, mas também porradas, tiros e cadáveres, como pede qualquer boa HQ de aventuras.

Nazario

Embora, por um lado, os quadrinhos de Nazario, em alguns momentos, se mostrem um pouco datados e pareçam mais atraentes pelo valor histórico que representam, por outro, o espírito iconoclasta que eles carregam permanecem bem atuais, sobretudo se observarmos como um certo bom-mocismo tem prevalecido nas manifestações artísticas integradas à indústria cultural mainstream, mesmo as produzidas por artistas do mundo queer.  Rever as peripécias deliciosamente obscenas e transgressoras de Anarcoma é, portanto, uma forma de refletir até que ponto, apesar dos avanços em torno das questões de gênero e comportamento sexual, não existe, hoje, uma ameaça da volta de movimentos repressores. A leitura de Anarcoma nos instiga a ficar alerta.

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