À Procura de Eric

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DO FUTEBOL COMO DELÍRIO, CIMENTO E PAIXÃO
À Procura de Eric traz Ken Loach fazendo a crônica do operariado inglês através das influências do futebol em seu cotidiano

Por Eduardo Carli de Morais
Crítico da Revista O Grito!, em São Paulo

O veterano cineasta inglês Ken Loach, na ativa desde 1969, sempre esteve interessado em narrar, sem sentimentalismo nem happy-ends, a dura vida da classe operária inglesa. Neste À Procura de Eric, um de seus filmes mais leves e despretensiosos, Loach centra o foco numa dimensão importante do riff-raff britânico: o modo como o futebol impregna o cotidiano da gente comum e motiva atos e fantasias dos mais diversos, servindo inclusivo como uma espécie de “cimento” social.

Verdade que Loach já dedicou-se a temas mais sérios e graves – como a Guerra Civil Espanhola de 1936-39, em Terra e Liberdade, e as batalhas étnicas na Irlanda do Norte, em The Wind That Shakes the Barkley (que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes). Neste seu novo trabalho, sem cair na futilidade, mas também sem conseguir alçar-se a grandes revelações, faz um filme menor, de ambições modestas, que talvez maravilhe fãs de futebol, mas que é também de interesse para quem não liga pro esporte bretão, mas aprecia retratos autênticos e vívidos de personagens do povão.

Apesar de trazer a presença ilustre de um craque dos gramados que marcou época no Manchester United, o francês Eric Cantona, o filme traz muito mais uma abordagem sociológica sobre o esporte do que a celebração de uma estrela. O que interessa a Loach é retratar de que modo o futebol participa da vida cotidiana do operariado inglês: que peso possui, que fantasias gera, que sonhos e rixas faz desabrochar.

O foco de atenção não são nem os jogadores, nem a torcida, nem os cartolas: mas homens comuns que, em meio aos perrengues cotidianos, em meio a tretas familiares e afetivas, em trampos que pagam pouco e dignificam mal, nos bares onde regam à chopp o papo sobre o campeonato nacional, utilizam o esporte como um amigo, uma muleta, uma amante. A força resultante de tantas paixões futebolísticas paralelas parece ser uma “unidade” entre indivíduos isolados, que comungam nos estádios (mas também fora deles) por torcerem pelo mesmo time e berrarem os mesmos gritos.

Eric Bishop (Steve Evets), o protagonista, é um carteiro que anda realizando mal seu trampo, tamanho sua crise existencial e seus ímpetos suicidas. Já na primeira cena, o vemos dirigindo seu carro na contra-mão, sedento por uma trombada violenta. Seu desânimo e sua sensação de vida-perdida estão no auge. Contra estas cruéis moléstias psíquicas, seus colegas só têm a oferecer auxílios emprestados de best-sellers de auto-ajuda barata. Nada mais terapêutico, sugere um desses livros (que traveste o hedonismo mais raso com as roupas de um louvável conselho de vida), do que uma boa dose de diversão. Tudo justificado com um verniz científico: a alegria libera endorfinas, como provam os cientistas, e a endorfina é ótimo remédio pra qualquer neurose… Então tá. Lá vão os colegas, em romaria, contar piadas a Eric, em nome da sua psicoterapia, como se palhaçadas fossem o que bastasse para solucionar uma depressão. Também passam a eles o conselho aumentador-de-auto-estima do autor: “imagine-se à frente de um espelho imaginário; imagine alguém que ama você; imagine-se olhando a si mesmo pelos olhos deste alguém…”

Dados os efeitos pífios das bem-intencionadas ajudas dos camaradas, Eric Bishop vai buscar consolo existencial no futebol. Este lhe concede bem mais do que mero entretenimento: Bishop é tão fã de Cantona que o elege como amigo imaginário – e nesta função o utiliza de vários modos: confessor, psicoterapeuta, conselheiro sentimental. É o fantasma do ex-craque do Manchester que ele procura para chorar suas pitangas e ajudá-lo a tomar decisões para tirar do atoleiro sua vida. E, por incrível que pareça, este vovô meio pinéu, que conversa delirantemente com seu ídolo, realiza um bom tanto com o auxílio de seu imaginary friend: faz as pazes com a mulher que no passado amou e abandonou, envolve-se mais ativamente na vida dos enteados e até mesmo organiza uma “surra” coletiva pra cima de gângsters que lhe estavam atormentando a vida…

Bishop é também uma espécie de “filósofo de boteco” sobre assuntos futebolísticos. Vê num estádio de futebol a única situação social em que pode-se realizar sem vergonha nem constrangimento atos tão catárticos como berrar e cantar a plenos pulmões, celebrar em uníssono a força do mesmo desejo, abraçar-se grupalmente com outros homens, até mesmo chorar – seja de alegria ou de desgosto. Visão obviamente otimista, cor-de-rosa, quase kitsch, que só enfatiza o lado positivo destes grandes espetáculos de massa. Talvez um “contra-argumento” interessante a esta tese possa ser encontrado numa das obras da provocativa artista Barbara Kruger (foto abaixo), que, com muita perspicácia, escreveu sobre uma foto de brutalidade masculina: “Você cria rituais complicados que te permitem tocar a pele de outros homens”. E é como se sugerisse que, secretamente, os homens possuem um desejo de contato corporal recalcado, que não manifestam no cotidiano (talvez por temor do estigma de serem taxados de homossexuais), e que se manifesta nestes grandes rituais onde, sem vergonha, os abraços e os suores se mesclam numa grande orgia… Fica a provocação.

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Gay: o que Barbara Kruger pode nos explicar sobre o futebol?

O filme de Loach, que poderia ter aberto o caminho para uma reflexão mais profunda sobre o futebol e sua relação com o povão, acaba funcionando mais como um retrato ou uma crônica do que como obra capaz de instigar o pensamento crítico. Sem dúvida que destaca bem o quanto o peso do esporte na vida das grandes massas é estrondoso – como sabe muito bem qualquer um que já foi ensurdecer-se no Morumbi ou no Maracanã em confrontos míticos como um Corinthians e Palmeiras ou um Fla-Flu. E também sugere que o fanatismo aí presente contêm também seus perigos, como também sabe quem já viu a fúria irracional e preconceituosa que as torcidas organizadas nutrem uma pela outra, e que por vezes termina com o solo manchado de sangue – que não é nem da Gaviões da Fiel, nem da Mancha Verde, mas de homens comuns que põe-se a mamar nas carótidas uns dos outros por motivos que, pensando bem, são pura futilidade.

Em seu filme, em especial no desfecho, Loach consegue sublinhar bem o poder que possui o futebol para organizar pessoas e fazê-las realizarem atos em uníssono – a ressalva infeliz é que, normalmente, trata-se da organização de uma gangue, e os atos que fazem juntas, por vezes, são de brutalidade, vingança, humilhação do outro. Muito simbólico disso é a presença no filme, tanto como ator como “idealizador”, de Eric Cantona, que além de seu status como craque-artilheiro, ficou muito célebre justamente como um agressor – belo símbolo das “duas faces do futebol”.

Lembrem-se que já está virando quase um costume nacional que craques franceses, à maneira de Zidane, tratem seus desafetos a cabeçadas e voadoras. Cantona, que era adepto deste último método, envolveu-se num escândalo, anos atrás, quando mandou ver pra cima dum torcedor do Crystal Palace um golpe digno de Bruce Lee. Pegou 9 meses de suspensão, mas e daí? Poucos futebolistas podem se gabar de façanha semelhante de fino trato. E muitos menos podem se orgulhar de ter pedido desculpas, frente à imprensa, com uma pérola “filosófica” assim: “Quando as gaivotas seguem o barco dos pescadores, é porque pensam que sardinhas serão atiradas ao mar”. É ou não é um gênio da raça?

Cantona, por um lado, é uma prova rara de futebolista que, saindo dos gramados, continua tendo uma vida criativa, ao invés de cair no ostracismo ou na dissipação consumista e fútil da fortuna faturada. Mas ele, certamente, é exceção. A regra, em nossa sociedade imediatista e espetacularizada, em que os ídolos pop correm velozes pela linha de montagem, como patinhos numa estande de tiro, nenhuma fama é duradoura. Quem hoje é rei, amanhã pode ser mendigo. Aquele que é eleito hoje o mais sensacional futebolista do planeta ou uma grande estrela da música, pode estar, daqui a 20 anos, num trampo tosqueira, ganhando uma merreca, completamente endoidecido por ter tido tudo, e tudo ter perdido. O pop é cruel. Lembram-se de como morreu (pra não chover no molhado falando de Cobain…) a Marilyn Monroe? O que fazem aqueles que, depois dos 15 minutos de fama, amargam 35 anos de esquecimento e trevas?

Em suma: que o futebol possa ter um elemento de celebração coletiva, de euforia conjunta, de “cimento social” que une vários corações na mesma batida, é inegável. E chego até mesmo a pensar que se as pessoas conseguissem se unir do modo tão coeso quanto fazem nos estádios de futebol (ou nos desfiles pelo sambódromo), mas voltando esta enérgica união para grandes missões de transformação social, talvez as moléstias sociais se transformariam de modo bem mais veloz em algo melhor. Mas não: também é inegável que, além de ser uma força de cimentação social mau canalizada, que desperdiça uma imensa quantidade de união que poderia ser melhor utilizada se direcionada para outros fins, o futebol por vezes descamba para a ignorância, o fanatismo e a violência: elementos de vidas miseráveis demais para poderem ser sensatas.

NOTA: 7,5

Eduardo Carli é jornalista e um dos autores do blog Depredando o Orelhão