A Flor do Buriti
João Salaviza e Renée Nader Messora
BRA, 2023. 2h03. Drama. Distribuição: Embaúba Filmes
Com Ilda Patpro Krahô, Francisco Hỳjnõ Krahô
Na escuridão da floresta, duas crianças Krahô se deparam com um boi ameaçador, perto da sua aldeia. O feroz animal prenunciava um sangrento massacre perpetrado pelos fazendeiros da região, em 1940. O flashback, logo nos minutos iniciais de A Flor do Buriti, é potente e simbólico: acuados, os pequenos indígenas sabem que precisam se defender. A garotinha determina para o amigo – este em cima de uma árvore – acertar uma flecha no olho do animal. O menino hesita, mas põe o artefato em posição de ataque e mira. Filmado de frente, o personagem está mirando, na verdade, a câmera, numa espécie de quebra da quarta parede, como se a flecha estivesse apontada para o espectador. Uma alegoria sobre a resistência secular de um povo incessantemente violentado.
Mais recente obra da dupla de realizadores João Salaviza e Renée Nader Messora, A Flor do Buriti chega aos cinemas brasileiros após ótima jornada em festivais mundo afora. A coprodução luso-brasileira foi reconhecida, por exemplo, com o prêmio do elenco na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes 2023.
O filme aprofunda as reflexões sobre narrativas da Aldeia Pedra Branca, terra indígena Krahô, no Estado do Tocantins, iniciadas no brilhante Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018). Neste primeiro longa-metragem, a história concentra-se nas angústias individuais do protagonista Henrique Ihjãc Krahô, em conflito com a iminência de se tornar xamã. As atrocidades do homem branco estão, ali, de forma mais indireta, até mesmo inconsciente, moldando os anseios de um jovem que quer se desgarrar da tradição de suas raízes.
Em A Flor do Buriti, a hediondez dos brancos é explícita. Mantendo o estilo híbrido de ficção e documentário, o filme denuncia a tensão permanente da invasão nas terras indígenas. Roubo de animais silvestres, instalação arbitrária de pastos por parte de fazendeiros: mais político, o novo filme de Salaviza e Nader Messora é um retrato do Brasil indígena durante o governo Bolsonaro (e como é significativo o cartaz com a foto do ex-presidente, com os dizeres “O Agronegócio está contigo!”, na estrada de barro próxima à aldeia).
O roteiro entrecruza passado e presente para reforçar a ideia de perpetuidade dos crimes cometidos. Através de sonhos e da própria história oral dos mais velhos, a narrativa mostra como o Estado brasileiro, durante a Ditadura Militar, incitou a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN), com o objetivo formar grupos paramilitares e treinar indígenas com técnicas de tortura.
Inegavelmente importante como divulgação histórica, a abordagem destes episódios acaba por intrincar a fluidez do filme. Com as idas e vindas do roteiro, a obra inicialmente destaca determinada personagem para, em seguida, praticamente esquecê-la. É o que acontece com a adolescente Jotàt. Fio condutor da narrativa, a garotinha está com dificuldade para dormir, porque tem sonhado muito com os antepassados.
A personagem tem muito tempo de tela, no primeiro ato do filme, mas depois é relegada a segundo plano. Ela retorna apenas na cena final, claramente para oferecer uma conclusão do seu arco narrativo. Vale ressaltar que a presença das crianças é elemento fundamental no filme: todo o argumento é construído a partir da noção de legado e perpetuação da cultura – e da própria existência – do povo Krahô. Não à toa o nascimento de uma criança, belamente filmado, é cena-chave da obra.
A culminância da narrativa se dá ao acompanharmos Ilda Patpro Krahô numa grande mobilização indígena em Brasília, nos idos de 2021. É lindo ver como a personagem, no começo do filme, é motivada por um vídeo de Sônia Guajajara – hoje ministra dos Povos Indígenas do Brasil – e decide ir ao ato na capital federal. Lá, percebe a importância do engajamento das diversas etnias na luta pelos direitos dos povos originários.
A Flor do Buriti é, em última instância, um enfático lembrete para evitar o esvaziamento das pautas indígenas. Mais uma vez, os diretores acertam ao integrarem os corpos indígenas à feitura cinematográfica (Ilda Patpro Krahô é assistente de produção do filme e assina, ao lado de Nader Messora, o argumento). O resultado é um filme orgânico, politicamente urgente, sobre um Brasil ainda recôndito para tantos. Merece – e precisa – ser visto.
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