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Foto: Divulgação/Rocco.

Harry Potter, 20 anos no Brasil

Fãs, pesquisadores e críticos lançam novos olhares para um dos maiores fenômenos literários da literatura juvenil

Imagine-se num mundo com castelos, feitiços, dragões e bruxos. Você é um pré-adolescente de apenas 11 anos e precisa fazer amizade em um mundo até então totalmente desconhecido. O importante é: você não estará sozinho. Logo, fará amizade com Rony Wesley, Hermione Granger e com Harry Potter. Vocês precisam se sair bem nas disciplinas escolares, desenvolver seus poderes e lutar contra bruxos das trevas. Na verdade, contra o maior bruxo das trevas. Essa história, esse universo, que tocou crianças, jovens e adultos em todo o mundo, completa 20 anos da sua estreia no Brasil. Sua relevância para a literatura infantojuvenil, o poderio de sua marca na indústria do entretenimento e a relação afetiva construída nos leitores são agora analisados com as lentes do tempo. E esses novos olhares sobre a obra acontecem em meio às polêmicas de sua criadora, a britânica J.K. Rowling, novamente envolta em acusações de transfobia por conta de declarações nas redes sociais.

O impacto e a relevância de Harry Potter no mundo literário são inegáveis. Ao todo, foram publicados sete livros, lançados entre 1997 e 2007. No Brasil, o primeiro da série – Harry Potter e a Pedra Filosofal – foi lançado em 1º de janeiro de 2000. O impacto foi tamanho que muitos críticos hoje afirmam que a literatura “teen” se divide em antes e depois de “HP”. 

Alguns pontos precisam ser estabelecidos para compreender o fenômeno literário de J.K Rowling. O doutor Frederico Machado, professor de Teoria da Literatura da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda, exemplifica os pontos máximos e básicos da obra. “Não há grandes relevâncias no quesito inovação estética, porque ela usa modelos já preestabelecidos. Esteticamente, é uma construção parecida com outras obras. Fica claro isso quando percebemos a busca dos personagens por uma ascensão ao poder, a discussão entre bem e o mal, etc”, pontua Machado.

Ainda que do ponto de vista estético e narrativo a relevância de Harry Potter tenha sido discutível por críticos e acadêmicos, por outro lado, sua popularidade junto aos leitores foi inquestionável. A saga do bruxo adolescente vendeu mais de 400 milhões de exemplares em todo mundo, sendo 3 milhões no Brasil. A obra também foi a porta de entrada para o letramento de muitos pequenos leitores e teve seu sucesso potencializado pelo fato do público crescer junto com os personagens. “Harry começa a trama com 11 anos, mesma idade de seus leitores”, lembra Machado. “Foi uma das poucas obras, da década de 1980 para cá, que atingiram patamares tão grandes de divulgação. Uma das colaborações da série foi a volta à fantasia, enquanto gênero”, complementa o professor. 

Bruno Zolotar, diretor de marketing e comunicação da Editora Rocco, avalia que o impacto da série no mercado editorial infanto-juvenil no Brasil é ímpar. O grande mérito foi trazer um novo público para a leitura. “Quem leu Harry Potter depois migrou para outros livros e séries e o mercado para esse público cresceu muito em decorrência disso”, comenta. A explosão de “HP” rendeu franquias igualmente exitosas estreladas por protagonistas adolescentes, como Jogos Vorazes, Eragon e Divergente, entre outros. 

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Para o diretor da Rocco, Zolotar, a série envelheceu bem: “Recebemos mensagens de gente que começou a ler Harry Potter há 20 anos e hoje lê para a série para os filhos.” (Divulgação/Rocco).

A Rocco percebeu o sucesso de Harry Potter quando decidiu lançá-lo no Brasil, mas não existia a ideia de que a saga do bruxo se tornaria um fenômeno. “Quando o Paulo Rocco comprou os direitos, se dizia que Harry Potter era uma série que estava indo bem no Reino Unido. E isso chamou a sua atenção. Mas ainda não tinha estourado. O Paulo comprou porque queria uma série para reforçar o seu catálogo de juvenis. Não tinha a dimensão do que a franquia se tornaria“, diz Zolotar. Para o diretor, a série envelheceu bem. “Harry Potter de certa forma é um grande romance de formação misturado com uma fantasia muito criativa e os jovens se identificam. Mas a série tem uma característica muito interessante. Ela é atemporal. Não envelhece e pega várias gerações. Recebemos mensagens de gente que começou a ler Harry Potter há 20 anos e hoje lê para a série para os filhos.” A Rocco lançou uma edição comemorativa dos sete livros com novas capas e um box exclusivo. 

A comunidade do bruxo

O professor de genética e biologia molecular Enio Myrddin é leitor assíduo de Harry Potter. Em 2002, aos 11 anos, pegou o primeiro livro da série emprestado com um amigo. Foi o bastante para se sentir parte daquele universo mágico. Enio morava em Palmeira do Piauí, uma cidade pequena, com cerca de 5 mil habitantes, no interior do Piauí. Lá não existia cinema nem locadoras de filmes. Foi assistindo a eles, na época exibidos pelo SBT, que o professor de Biologia teve contato com Harry Potter no audiovisual, embora já tivesse lido os exemplares já saídos até então. “Eu já lia livros antes de ler Harry Potter, era um frequentador assíduo da biblioteca da cidade. Mas lá a maioria dos títulos eram antigos e eu sentia falta de histórias contemporâneas”, relembra. 

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Nanda Andrade faz cosplay de Bellatrix em eventos. (Foto: Acervo Pessoal)

Encontrar fãs e leitores afirmando que Harry Potter serviu como ponto de partida para outras leituras é algo comum. Os laços desenvolvidos por Harry Potter, porém, vão além do texto e tem a ver com a noção de comunidade, com os fãs/leitores compartilhando diversas referências. 

Em eventos que promovem encontros de fãs, como o Pottergame, organizado pelo Clube da Fênix, no Recife, fizeram o casal Nanda Andrade e Vitor Hugo engatarem um relacionamento. Ela, que trabalha num setor de engenharia de uma operadora de telecom; ele, numa corretora de seguros, foram unidos por conta do universo do bruxo Potter. 

Vitor, ainda criança, teve contato primeiro com os filmes em fita VHS e desconhecia a existência dos livros. Ele conta que, após ser inserido no mundo literário de Harry Potter, sua leitura foi expandida. “Sempre existiram diversas sagas e obras literárias, obras gigantescas e grandiosas, mas provavelmente Harry Potter foi a que conseguiu captar um nicho em ascensão e com um potencial muito grande de evolução nesse universo. E meio que isso foi um pivô para diversas outras obras serem escritas ou criadas no mundo todo, abrindo portas tanto no universo literário como cinematográfico”, afirma. 

O mesmo aconteceu com Nanda, que só tinha contato com literatura na época da escola com livros paradidáticos. “Harry Potter tem uma escrita bem simples e de fácil compreensão, o que atrai ainda mais fácil o público infanto-juvenil. É uma saga que faz você se sentir imerso, já que você acaba crescendo junto com os personagens principais.” 

Nanda faz cosplay da personagem Bellatrix, prima de Sirius Black e fiel seguidora de Lorde Voldemort, e, assim como Vitor, coleciona bonecos, filmes e livros. Por conta das suas idas fantasiada a eventos geeks, ela conseguiu até alguns trabalhos interpretando a personagem. “Desde pequena eu sempre tive espírito de colecionador, sempre gostei de colecionar coisas, mas Harry Potter é, com certeza, a maior parte dos itens da minha coleção, como bonecos, réplicas de itens do filme, varinhas, estátuas, e por aí vai”, explica. 

Ao longo dos anos, os fãs foram se apropriando cada vez mais da saga do bruxo. É preciso, antes de tudo, entender o papel do fã e como ele era visto dentro do universo acadêmico para, depois, teorizar em cima dessa figura que está diretamente ligada com os objetos da indústria cultural. Segundo João Freire Filho, autor de Reinvenções da Resistência Juvenil, a priori, ser fã de algo não era bem visto pelas pessoas e, sobretudo, pela Academia, uma vez que era atribuída a ele um status quo de doentes – patologicamente falando – e alienados. Esse indivíduo normalmente procura em seu ídolo uma representação de algo que não pudera ser, uma “compensação psicológica para carências e frustrações de suas vidas sem brilho”, segundo o autor. 

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20 anos da série de livros no Brasil foi comemorado com uma caixa exclusiva para a coleção. (Divulgação/Rocco).

Douglas Kellner, pesquisador estadunidense na área de teoria crítica, afirma em seu livro A Cultura da Mídia (2001) que os objetos da cultura pop possuem um poder imagético junto aos fãs – como é o caso de Harry Potter. De acordo com ele, “[…] a cultura da mídia põe à disposição imagens e figuras com as quais seu público possa identificar-se, imitando-as. Portanto, ela exerce importantes efeitos socializantes e culturais por meio de seus modelos de papeis, sexo e por meio das várias ‘posições de sujeito’ que valorizam certas formas de comportamento e modo de ser enquanto desvalorizam outros tipos”. 

A ligação do mundo ficcional com o real é uma linha tênue dentro do universo das teorias literárias. A relação dos leitores, dos fãs, com o autor também é um aspecto que deve ser analisado. Ao longo de anos, Harry Potter colocou em discussão, mesmo que num pano de fundo, questões relacionadas à lealdade, amizade, aceitação, preconceito, dentre outras. Todas essas abordagens acabaram criando uma figura imagética também para sua autora,  J.K Rowling, que automaticamente carregaria todas essas qualidades evidenciadas pela trama. Acontece que o mundo real é um tantinho mais complexo que a ficção. 

Nos últimos meses, a autora vem dando declarações transfóbicas nas redes sociais, o que reavivou na memória dos fãs outros comentários parecidos feitos no passado. Rowling usou sua conta no Twitter para zombar de uma matéria que abordava sobre “pessoas que menstruam”. A autora disse que “pessoas que menstruam são mulheres” e que a reportagem deveria ter usado esse termo. 

Em seguida,  Rowling tentou aliviar a controvérsia de sua declaração em um texto em que dizia que transexuais são livres para se expressar, porém a experiência de ter nascido com o sexo biológico feminino é um fator importante. Daniel Radcliffe, protagonista da adaptação de Harry Potter para o cinema escreveu um artigo no portal Trevor.org com reflexões e críticas à fala de Rowling. O astro lembrou da importância da escritora em sua vida, mas ressaltou a importância de lutar pelo fim da discriminação. “Mulheres trans são mulheres. Qualquer afirmação que diga o contrário é uma maneira de apagar a identidade e a dignidade das pessoas trans e vai contra todos as recomendações dadas por profissionais de assistência social que tem muito mais conhecimento sobre o assunto do que J. K Rowling ou eu”, escreveu Radcliffe.

Isso gera debates dos fãs e não-fãs da autora. Nanda resume todas as polêmicas como uma decepção e afirma que J.K Rowling chegou a ser sua autora preferida, mas que lamenta as declarações. “Aparentemente ela não pretende fazer o mínimo esforço pra tentar se desculpar e reconhecer seus erros. É muito triste ver alguém que criou um universo incrível se mostrar tão intolerante assim”, pontua. 

Embora seja uma atividade difícil separar o autor da obra – tópico de discussão em aulas de Teoria da Literatura – as pessoas ainda misturam as coisas. “Não vou parar de consumir Harry Potter pois o universo que ela criou se tornou algo muito maior que ela”, finaliza Vitor.

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