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Nas artes, aceitação e desconfiança com os homossexuais andavam lado a lado

Apenas obras de autores homossexuais consagrados não sofriam ressalvas e nem eram submetidas a julgamentos de ordem moral 

Esta reportagem faz parte da série “Antes do Orgulho“, que aborda a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife. Acompanhe as outras reportagens da série:

+ Antes do Orgulho: Jornais do Recife só amenizaram discurso sobre gays e travestis no final dos anos 1970
+ Travestis encontravam trégua e compreensão nas matérias e colunas dedicadas às artes cênicas

Parte 1: + “Anormais” – a homofobia na crônica policial do Recife
Parte 2: + “Bonecas não têm vez no Carnaval”:  duas décadas de hostilidades e intolerância na cobertura dos jornais
Parte 3: Entre o ódio e o medo

Na seara das artes – literatura, cinema, teatro – o tema da homossexualidade aparecia na imprensa local, mesmo antes da década e 1980, de maneira discreta, sem causar alarido, mas também sem o tom moralista e abertamente repressor de outras editorias. Se tomarmos como parâmetro o jornal Diario de Pernambuco, embora vez por outra, um intelectual mais conservador soltasse farpas, veremos, nas resenhas de obras artísticas, que personagens e situações homoeróticas tendiam a ser compreendidas e toleradas. Embora isso nem sempre significasse aceitação. 

Em 1964, o sociólogo Gilberto Freyre lançou sua primeira obra de ficção, Dona Sinhá e o Filho Padre, classificada pelo próprio autor como uma semi-novela. O livro conta a história de uma mãe que promete seu filho ao sacerdócio, filho este que cultiva um amor platônico por um colega de escola. Elogiadíssimo pela crítica literária da época, os comentários de Osmar Pimentel, em janeiro de 1965, no Diario, ilustram com precisão esse estado das coisas. Na resenha Pimentel ressalta que “o tema complexo do homossexualismo – mal tratado, literariamente, antes de Dona Sinhá e o Filho Padre – Gilberto soube revivê-lo com imparcial acuidade de psicólogo, de sociólogo e de poeta. Nem a apologia gidiana nem a caricatura envergonhada de Proust. O homossexualismo como fenômeno humano que exige antes compreensão e respeito que defesa ou escárnio”.

Nas páginas de literatura, de uma maneira geral obras de autores clássicos consagrados sabidamente homossexuais como Oscar Wilde, Walt Whitman ou Jean Genet – que esteve muito em evidência no Recife na década de 1970 por conta das montagens das peças O Balcão e As Criadas – não sofriam restrições.  Nomes menos conhecidos no Brasil também ganhavam atenção. Nesse sentido, o colunista do Diario de Pernambuco Paulo Azevedo Chaves, titular da coluna cultural Poliedro, cumpria um papel interessante de divulgação desses autores. Chaves era pernambucano, mas morava no Rio de Janeiro. Em sua coluna noticiava e comentava exposições de artes plásticas, sobretudo de artistas nordestinos, lançamentos de livros, assim como diversos assuntos do campo da cultura e dos costumes, dentre os quais acontecimentos de interesse da comunidade gay, fosse repercutindo reportagens e estudos publicados em revistas internacionais, comentando obras de escritores homossexuais ou criticando atitudes homofóbicas de grupos religiosos.

Na Poliedro, Chaves publicava versos de poetas que admirava como Paul Verlaine, Walt Whitman, John Gay, Vladimir Maiakovski – a versão original e a tradução –, autores locais como Juhareiz Correia, de quem era grande entusiasta, e ainda abria espaço para poetas inéditos. O colunista era um crítico contundente da censura e vez por outra escrevia notas informando quando filmes e livros eram proibidos. Mesmo o Diario de Pernambuco foi alvo da ira de Chaves quando um poema de sua autoria, intitulado “Memórias do Desencanto”, publicado na seção Versos Escolhidos teve várias estrofes suprimidas. Em nota, o jornalista denunciou a mutilação e disse que suprimir a publicação teria sido a melhor solução.

Cinema

Nas páginas de cinema nos anos 1960 e 1970, as críticas das obras de cineastas como Pier Paolo Pasolini ou Luchino Visconti, entre outros, não recebiam comentários negativos ou reprovação quando as histórias neles contadas tinham também relações com o tema. Um dos primeiros filmes na década de 1960 a abordar a homossexualidade de forma direta, o britânico Meu Passado me Condena, estrelado por Dirk Bogarde e dirigido por Basil Dearden foi anunciado por Fernando Spencer em sua coluna como um “filme que focaliza o problema da homossexualidade em face da organização jurídica e social inglesa (…) um tema difícil e delicado, porém, segundo alguns críticos, encarado com decência e sobriedade”. 

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Outro filme marco do período, Domingo Maldito, de John Schlesinger, com Glenda Jackson e Peter Finch, sobre um triângulo amoroso entre uma mulher heterossexual, um homem maduro homossexual e o jovem amante bissexual de ambos, também não recebeu ressalvas por sua temática. Ele estreou no Recife em 1972 e o fato da censura brasileira ter cortado quase meia hora do filme, entre as quais uma cena de beijo entre os dois homens, foi inclusive criticado pelos jornalistas. O crítico Aranha de Moura em sua resenha observou que a mutilação imposta pela censura interferia na compreensão da obra que, segundo ele, era um “assunto escabroso para os falsos puritanos, mas existente e atual e nunca abordado sob o ângulo do ridículo ou desprezível”. 

Evidentemente filmes menos comportados com personagens fortes provocavam embates que extrapolavam inclusive as páginas de cinema editadas pelo crítico Fernando Spencer. Um exemplo disso é o filme Rainha Diaba, de Antonio Carlos Fontoura, que estreou em 1974. Exibida na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, a obra tem como tema o submundo marginal carioca em que uma travesti negra, interpretada por Milton Gonçalves, comanda uma quadrilha de traficantes de drogas num quartinho no fundo de um prostíbulo, cuja dona é vivida pela atriz Odete Lara. 

Depois do circuito comercial, Rainha Diaba foi exibido no Cinema de Arte Coliseu e teve ampla divulgação no Diario de Pernambuco com o diretor Antonio Carlos Fontoura relatando o processo de criação do filme. Enquanto esteve em evidência colunistas também deram seus pitacos sobre ele, entre os quais Paulo Fernando Craveiro e Paulo Azevedo Chaves. Mas, enquanto Paulo Craveiro se mostrava avesso ao filme, Chaves destacou em sua coluna a boa acolhida da obra pelo público e crítica e elogiou seu vigor dramático apontando Rainha Diaba como “um dos melhores da safra mais recente do cinema brasileiro. Uma desmunhecagem em tom maior, gente!”. 

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Teatro

Todavia, curiosamente, é na cena teatral – bem movimentada no Recife neste período –, talvez pela proximidade física das encenações, que se percebe uma maior abertura na cobertura jornalística na medida em que peças abordavam cada vez mais o assunto da homossexualidade e mais e mais atores e atrizes revelavam-se gays. Na década de 1970 cresceu o número de espetáculos sobre o tema vindos do Rio ou São Paulo e também o de produções locais. As montagens vindas do Sudeste eram bem recebidas pelos jornais e assistida por pessoas da sociedade que eram anotadas nas colunas prestigiando as encenações. A peça Greta Garbo Quem Diria Acabou no Irajá do pernambucano Fernando Melo foi uma delas. Depois de grande sucesso no Rio de Janeiro, o espetáculo veio ao Recife sendo apresentado no Teatro de Santa Isabel. A peça conta a história de um homossexual frustrado e envelhecido, um jovem recém-chegado ao Rio e a prostituta que ele namora. No elenco os atores Nestor de Montemar, Mário Gomes e Janine Carneiro que substituía a atriz pernambucana Arlete Salles da montagem original.

Os ares de liberdade e tolerância também apareciam na cobertura das apresentações do Vivencial que eram sempre provocativas mesmo que, por vezes, houvesse reações adversas por parte dos leitores. Uma nota publicada por Valdi Coutinho para a estreia, em maio de 1976, da montagem Sete Fôlegos a partir de textos de Jomard Muniz de Britto e Carlos Drummond de Andrade foi um exemplo. No texto, o crítico reproduzia as palavras do diretor Guilherme Coelho onde ele afirmava que o espetáculo era “dirigido a todos, principalmente àqueles que não temem as minorias eróticas”.

A nota destacava ainda que o ator Roberto de França (mais conhecido como Pernalonga) era o responsável pelo toque mais alegre e “gay” do musical. Dias depois Coutinho publicou outra nota informando que por conta da divulgação de Sete Fôlegos teria recebido duas cartas, uma anônima e outra assinada, e um telefonema contrários ao trabalho do Vivencial, o que demonstrava, segundo ele, que “o ‘gay’ continua incomodando uma porção de gente”. 

Esses entreveros, no entanto, já não provocavam retrocessos, basta ver a divulgação do espetáculo Belos e Malditos, de Álvaro Guimaraes, montagem de um grupo baiano que estreou no Teatro do Parque em abril de 1977 e foi anunciado abertamente como uma peça gay e uma sátira sobre os costumes da sociedade em relação ao tratamento dado aos homossexuais. Na matéria publicada no Diario, o diretor afirmou “não usamos plumas nem paetês. A força está no tema (…) num momento em que a opressão e a repressão são tão comuns em nossa realidade, e que as pessoas mais do que nunca se autocensuram e se policiam, o estilo de vida ‘gay’, assumindo todas as implicações e incompreensões que tal comportamento ainda provoca, parece ser o mais corajoso e heroico, o que ainda permanece liberado”.  

Quadrados

Mas enquanto críticos teatrais como Adeth Leite e Valdi Coutinho, em suas colunas no Diario de Pernambuco, veiculavam matérias e comentários sobre os espetáculos versando sobre homossexualidade sem ressalvas, baluartes do teatro pernambucano, provavelmente inconformados com os novos rumos das artes cênicas, acabavam se pronunciando sobre o cenário teatral da época de forma virulenta. Entre eles, o médico e dramaturgo Valdemar de Oliveira, fundador e diretor do tradicional grupo Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP). Em 1976, em um artigo para o Diario, intitulado Quadrados e Redondos, Oliveira refletia sobre o panorama da produção teatral contemporânea a partir do que ele vira no Rio de Janeiro e no teatro local, chegando à conclusão de que o sexo seria o grande mito do teatro moderno naquele momento, um mito incensado pela maioria dos autores e diretores e uma forma de “atrair mais cruzeiros para a bilheteria”. 

Oliveira e o TAP tiveram um papel importante na modernização do teatro pernambucano nos anos 1950 e 1960. Defensor de um teatro de qualidade, com apuro estético, ele encenou textos expressivos do teatro mundial e brasileiro. Trouxe ao Recife encenadores como Zygmunt Turkow, Ziembiski, Bibi Ferreira, Hermilo Borba Filho e montou peças escritas por Bernard Shaw, Pirandello, Nelson Rodrigues, Dias Gomes e dramaturgos locais como Luiz Marinho, responsável pelo maior sucesso do grupo, a comédia Um Sábado em 30. Aclamado e inatacável pela imprensa do Recife, sempre ao lado do poder oficial, Oliveira, no entanto, fiel ao papel que se atribuía de homem culto de moral ilibada, não via com bons olhos as renovações no campo das artes que não seguissem suas convicções.

Para sustentar sua argumentação, o diretor do TAP, dizia, no artigo, ter ouvido de artistas cariocas de “alto gabarito” que ou eles se submetiam ao mito do sexo ou morreriam de fome. Segundo ele, era como se “a humanidade de hoje fosse, por toda a parte, um imenso poço de sujeiras e imundícies; e só bracejasse, em suas angústias, na lama e no lixo, e não encontrasse nas estantes, nenhum oásis mais onde pudesse contemplar, juntas, a Verdade e a Beleza”. Esse estado de coisas, complementava o dramaturgo, estaria devastando a cena nacional, pois o sexo estaria sendo visto com lentes distorcidas já que a abjeção era a única forma de se ganhar dinheiro. 

Dentro dessa perspectiva do sexo como motivo para ganhar público, para Oliveira o “caminho preferido dos encenadores seria o do homossexualismo”. E mais uma vez ficava evidente que o julgamento vinha de uma classificação que distinguia os homossexuais cultos e refinados dos considerados, por ele, vulgares, tais e quais os que apareciam nas peças teatrais naquele momento: “E esse homossexual não tem, jamais, a marca de um Wilde ou de um Gide, mas rebola-se, no palco, para que rebolem na plateia, os ignaros. Mesmo que seja um homossexual como o da peça de Valdi Coutinho, psicopata que tira de sua lama o sustento da família”. 

Para completar, Oliveira ainda citou as travestis que para ele “estavam contagiando meio mundo” além de “falsear ao mesmo tempo, o modelo feminino e a verdade artística”.  Toda essa violência retórica era dirigida sobretudo para “certo rapazinho de Olinda (provavelmente o diretor do Vivencial, Guilherme Coelho)” que havia chamado Oliveira de “quadrado”. O diretor do TAP encerrava o artigo dando “graças a Deus, por partir o qualificativo de quem parte. Visto que pouco, bem pouco mesmo, se me dá de sua vida e de suas besteiras, só lhe digo que fique inteiramente à vontade, com seus invertidos e suas extrovertidas”. 

Essa atitude reativa de Valdemar de Oliveira, todavia, já se mostrava desgastada diante de uma realidade em transformação onde a própria imprensa se desvencilhava aos poucos de um olhar insensível e persecutório. A estreia da peça A Noite do Antílope Dourado, de Fernando Melo, em maio de 1977, sobre a ligação entre uma travesti da Lapa, um jovem marginal e um enfermeiro, ganhou capa do caderno Viver do Diario de Pernambuco, com reportagem feita por Valdi Coutinho, e nela se percebe claramente que o tratamento dado a questão da homossexualidade estava tomando novos rumos.

A reportagem é informativa com Coutinho contando a trajetória de Melo desde sua vida no Recife, a ida para São Paulo e as dificuldades que enfrentou até se tornar um autor de sucesso. O mais relevante da matéria, no entanto, é quando Melo responde a Coutinho sobre a sua motivação criadora, já que a homossexualidade e o comportamento das pessoas tidas como marginais pela sociedade eram os temas centrais de todas suas peças: “Porque diz respeito às minhas verdades. Tem uma correlação em termos de posicionamento existencial. É preciso defender as minorias oprimidas”. 

Antes do orgulho: a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife
Reportagem: Alexandre Figueirôa
Edição e revisão: Paulo Floro
Artes: Felipe Dário

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