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Foto: Divulgação.

“O Aprendiz”: Donald Trump e os fragmentos de uma vida sem escrúpulos

Bem executada, cinebiografia vilaniza ex-advogado Roy Cohn e retrata um jovem Trump inocente e influenciável

“O Aprendiz”: Donald Trump e os fragmentos de uma vida sem escrúpulos
3.5

O Aprendiz
Ali Abbasi
EUA, 2024. Drama. 2h. Distribuição: Diamond Filmes
Com Sebastian Stan, Jeremy Strong, Maria Bakalova


Em menos de um mês, os estadunidenses irão escolher seu novo presidente. A cinebiografia do abominável candidato republicano foi lançada no dia 11 de outubro nos Estados Unidos e chega nesta quinta-feira (17) ao circuito brasileiro após fazer parte da seleção de Cannes este ano. Questiono-me: o momento é adequado? Sob a direção de Ali Abbasi, O Aprendiz (2024) me parece uma faca de dois gumes: apesar de demonstrar as aberrações morais e éticas durante a ascensão pública de Donald Trump, a obra humaniza – mesmo que indiretamente – a figura do bilionário. 

Trata-se de um bom filme? Sim, a habilidade de Abbasi (diretor de Holy Spider) e a atuação potente de Sebastian Stan são os pilares da produção que retrata o jovem Trump, ainda irrelevante na década de 1970. A narrativa acompanha seus primeiros passos no ramo imobiliário e o encontro fundamental com Roy Cohn (interpretado por Jeremy Strong), advogado cuja completa ausência de caráter moldou e influenciou radicalmente a postura de Trump – ao menos segundo o filme. O roteiro é assinado por Gabriel Sherman, jornalista e escritor de The Loudest Voice in the Room, livro sobre outro energúmeno: Roger Ailes, ex-presidente e fundador.

O grande mérito do filme é a reconstrução histórica e espacial da Nova Iorque de vários anos atrás. Para isso, Ali Abbasi e o diretor de fotografia Kasper estabelecem dois visuais distintos na obra: uma textura 16mm para a década de 70 e uma fotografia broadcast video, para os anos 1980, que funcionam perfeitamente. O modo captar as imagens no filme nos dá a impressão de conteúdo televisivo, com vários zooms nos personagens, câmera na mão e outros elementos característicos da linguagem jornalística. Tudo é potencializado por uma montagem ágil e dinâmica, repleta de imagens de arquivo reais. 

Este aspecto “sujo” de filmar também é corroborado pela trilha sonora rock’n’roll, presente em vários momentos da narrativa. E aqui, talvez, comecem meus obstáculos com a obra de Ali Abbasi. Na construção cinematográfica de Donald Trump, o diretor cria um perfil jovial do futuro presidente; o personagem é apresentado como alguém ambicioso, mas também muito influenciável. É quase como se o discurso do filme apontasse para a lei de causa e efeito: o jovem Trump tornou-se uma pessoa má devido aos vilões que o cercaram. A exemplificação da máxima “o meio corrompe o homem”.  

Categórico estudo de personagem, O Aprendiz aborda o relacionamento de Trump com sua primeira esposa, Ivana, com a polêmica cena sobre o suposto estupro marital cometido pelo republicano. Ali Abbasi é um diretor que explora a violência em suas obras e, até mesmo nesta cinebiografia, encontra espaço para sequências bem desconfortáveis. Além do abuso sexual, outra cena explícita que deve provocar incômodo nos espectadores é a dos procedimentos cirúrgicos de lipoaspiração e transplante capilar. 

O Aprendiz.
Trump chamou a cinebiografia de “fajuta”: longa é uma faca de dois gumes em meio às eleições. (Divulgação).

Considero bastante eficiente o desenvolvimento do protagonista; além de estar idêntico a Donald Trump, Sebastian Stan imprime uma atuação primorosa, passando de um Trump inseguro, vacilante, para o magnata autocentrado cujo ego parece não conhecer limites. Do modo de pronunciar o “s” durante a fala aos maneirismos gesticulares com as mãos, o ator demonstra total domínio numa performance marcante. Outros destaques no elenco são Jeremy Strong, brilhante como o detestável Roy Cohn; Maria Bakalova, que está ótima na pele de Ivana Trump; e o sempre eficiente Martin Donovan, desta vez no papel do patriarca Fred Trump. 

Classificado como fajuto e sem classe pelo próprio Donald Trump, O Aprendiz é uma cinebiografia que, desde a sua gênese, demonstra a vontade de causar polêmica e zunzunzum no público, na mídia. Ao se debruçar sobre um dos personagens mais contraditórios da contemporaneidade, a produção pode levantar questionamentos sobre a necessidade de fazer este filme, sobre este ser humano em específico. De qualquer forma, para além das intenções por trás da sua confecção, é uma obra esteticamente interessantíssima, favorecida por ótimas atuações. 

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