PEKAR: ESPLENDOR DO BANAL
Um dos autores de HQs mais importantes, morto recentemente, tinha um único personagem básico, ele mesmo
Por Germano Rabello
Colaboração para a Revista O Grito! , no Recife
O mundo se despede de Harvey Pekar (1939-2010). Quem já cruzou com alguma edição de suas HQs (desenhadas por artistas diversos), sabe que se tratava de um artista único, um cronista da vida cotidiana no que ela tinha de mais banal. Muitos também o conheceram através do filme Anti-Herói Americano (de 2003), que mistura documentário e ficção, encenando algumas passagens de sua vida e os americanos lembram suas entrevistas na televisão. Como roteirista, Pekar era certamente pouco versátil. Ele tinha um personagem básico, ele mesmo. Mas justamente isso o distinguia dos demais criadores.
Como bem notou Gary Groth no texto introdutório do Comics Journal, Harvey não cresceu lendo quadrinhos, embora adorasse tiras antigas e alguns autores underground. Não estava interessado em escapismo super-heróico nem em fantasias psicodélicas. A matéria-prima de suas HQs era sua vida cotidiana, no que ela tinha de mais banal. E isso se transformava em algo interessante, graças a uma extraordinária capacidade de observação e um senso crítico agudo.
A primeira American Splendor foi publicada em 1976, com dinheiro do próprio Harvey. Era uma coleção de histórias curtas com vários artistas, e Harvey manteve esse padrão durante todos esses anos, com arte em preto e branco, mesmo que as edições mais recentes tenham saído pelo prestigioso selo Vertigo da DC Comics. Robert Crumb era amigo de Harvey desde muito antes e ilustrou várias dessas HQs. Aliás, essas parcerias foram compiladas pela editora Conrad no álbum Bob & Harv: dois anti-heróis americanos. Afora essa feliz contribuição, não há mais nada do roteirista disponível no mercado brasileiro.
Certamente existe algo único nos quadrinhos de Harvey Pekar, mesmo para quem já leu dezenas de quadrinistas autobiográficos. Embora seja um dos pioneiros a investir nesse gênero, ele certamente não foi o primeiro, já que Justin Green, art spiegelman e outros haviam se aventurado nesse campo, alguns anos antes. A grande novidade é que Pekar não exagera nenhum detalhe, faz questão de manter tudo no nível do banal. As experiências dele não tem nada de especial. Ele não era um bon vivant, não era um aventureiro, não era especialmente traumatizado, nem nada. Era um funcionário público. Vivia uma vida de homem comum, embora seu pensamento fosse um pouco diferente.
Mesmo no campo das imagens, ele não buscava enfeitar as HQs com metáforas visuais, recursos de cinema. Alguns de seus roteiros, entregues a artistas menos inspirados, podiam se tornar discursos entediantes de cabeças falantes.
Mas Pekar já trabalhou com feras como Crumb, Ty Templeton, Rick Geary, Joe Sacco, Jim Woodring, Gilbert Hernandez, Chester Brown, Hunt Hemerson, Eddie Campbell. Nas parcerias mais felizes, ele injetou um novo ânimo á arte seqüencial, mostrando que a vida mais banal pode ser muito interessante também, e dando aos leitores do futuro uma deliciosa fatia da vida na nossa época. Longa vida à obra de Harvey Pekar!