Tipos de Gentileza
Yorgos Lanthimos
EUA, 2024. Drama. 2h44. Distribuição: Searchlight Pictures
Com Emma Stone, Hong Chau, Willem Dafoe, Jesse Plemons
Há um elemento recorrente em toda a filmografia do Yorgos Lanthimos: a condição animalesca da humanidade. Se olharmos a fundo, nas fissuras da sociedade autodenominada civilizada, enxergamos o quão bestializados somos. Poucos meses após o lançamento do hit Pobres Criaturas (2023), o cineasta grego parteja sua nova provocação ao moralismo e à domesticação de comportamento sociais. Absolutamente dessemelhante à obra anterior, Tipos de Gentileza é um retorno – ousado, eu diria – do diretor às suas origens narrativas.
Dividido em três partes independentes, o filme já pode causar certa estranheza pela escolha de utilizar o mesmo elenco nas diferentes histórias. O quinteto estelar, composto por Emma Stone, Jesse Plemons, Willem Dafoe, Margaret Qualley e Hong Chau, interpreta personagens distintos em cada segmento do filme. O único fio condutor em comum na trinca de episódios é o personagem R.M.F, interpretado pelo ator Yorgos Stefanakos. A enigmática figura surge em cenas pontuais do filme e serve para batizar, inclusive, os títulos de cada uma das partes. Mas não há relevância fundamental para o personagem; ele é apenas o eixo de ligamento entre os contos, sem qualquer peso narrativo.
Em “A morte de R.M.F”, primeira fábula do filme, Yorgos Lanthimos elabora contundente crítica sobre como o mundo corporativo adestra as pessoas para agirem de acordo com suas diretrizes. Conscientemente ou não, a obra de Lanthimos reverbera o conceito de biopoder do filósofo francês Michel Foucault; em resumo, biopoder seria um conjunto de mecanismos disciplinares utilizados (pelo sistema, pelo Estado, pela igreja) para governar a vida social, com o objetivo de controlar e amansar nossos corpos. O personagem de Willem Dafoe – o patrão – é como a representação do mercado: controla a vida dos “funcionários”, decide com quem devem se relacionar, se podem ou não ter filhos e pede por provas de fidelidade que, no cinema de Yorgos, ganham contornos de tragicidade cômica.
Repetindo a parceria com o diretor de fotografia Robbie Ryan, o mesmo de Pobres Criaturas e A Favorita (2018), o cineasta volta a experimentar o uso do preto e branco em Tipos de Gentileza, especialmente em momentos de sonhos e flashbacks dos personagens. Menos requintado esteticamente que seus antecessores, o novo filme mantém o rigor técnico de composições bem elaboradas, belos planos-detalhe e movimentos de câmera perspicazes.
Na segunda história, “R.M.F está voando”, Lanthimos se aproxima do cinema de David Cronenberg, ao abraçar princípios do body horror, e é beneficiado por uma atuação enfática de Jesse Plemons. Sem dúvidas, é o momento mais grotesco do longa-metragem, para o bem e para o mal (como fã de terror, gosto do gore nas cenas mais explícitas, mas entendo que há certos excessos narrativamente dispensáveis).
Na sua terceira colaboração com o diretor, Emma Stone comprova, mais uma vez, seu status de atriz fenomenal. Com personagens mais comedidos nos dois primeiros atos do filme, a atriz se esbalda em “R.M.F come um sanduíche”, último conto de Tipos de Gentileza – e talvez o mais absurdo. O enredo mimetiza uma espécie de seita religiosa, onde os fiéis buscam se purificar da “contaminação” do mundo e gerar rebentos do líder espiritual. Há uma busca pela mulher perfeita, capaz de ressuscitar os mortos com um simples toque. Desprovida de qualquer escrúpulo para alcançar seu objetivo, a personagem de Stone origina alguns dos momentos mais intrigantes de toda a obra.
Ritmicamente mais próximo dos sensacionais O Lagosta (2015) e O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017), o novo filme de Yorgos Lanthimos revisita temáticas recorrentes na biografia do cineasta, com evidente apelo à perplexidade e ao nonsense. Com quase três horas de duração, Tipos de Gentileza talvez provoque bocejos em parte dos espectadores – quando assisti ao filme no cinema, foi possível escutar os sinais de sonolência nas fileiras mais próximas. A decisão de desmembrar a obra em três partes é uma faca de dois gumes: enquanto para alguns funciona como momentos de respiro ao longo da projeção, outras pessoas podem considerar a experiência fatigante. Encaixo-me no primeiro grupo. Um ótimo filme que, sob a luz da excentricidade, expõe as faces carcomidas do Homo sapiens.
Leia mais críticas
- “Wicked”: adaptação do musical da Broadway é tímida, mas deve agradar fãs de Ariana Grande
- “Herege”: com boa premissa, novo suspense da A24 se perde em soluções inconvincentes
- “Gladiador 2” é ambicioso ao explorar os dilemas de uma Roma decadente
- Um “Seu Cavalcanti” para chamar de seu
- “Ainda Estou Aqui”: tomografia de uma família flagelada pela ditadura