Maracatu de Baque Solto une tradição e modernidade com nova geração de mestres

Cultura tradicional da Mata Norte, maracatu rural mantém legado da tradição com elementos modernos com jovem geração de mestres

Maracatu de Baque Solto une tradição e modernidade com nova geração de mestres.

Fotos por Hugo Muniz/Especial para O Grito!
Ilustração de David Shamá

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Todo dia Nailson Vieira, 22 anos, saí de sua casa em Nazaré da Mata, Zona da Mata Norte de Pernambuco, com o céu ainda escuro, precisamente às quatro horas da manhã, com destino a Universidade Federal de Pernambuco, onde cursa licenciatura em Música. Filho e neto de maracatuzeiros, Nailson é um dos representantes da novíssima geração de brincantes de maracatu em Nazaré da Mata e é também um belo exemplo da mudança que vem ocorrendo dentro da cultura popular. 

“Viver maracatu e vir pra cá é realmente desafiador. Fora o lado da carga pesada de tá na Zona da Mata Norte e acordar de quatro horas da manhã todo dia. Pra mim é o ambiente da relação emocional porque você encontra aqui pessoas que, sinceramente, são muito importantes para mim”, disse o músico sentado no hall de entrada do Centro de Artes e Comunicação da UFPE. “Eu estou em uma licenciatura porque educação também é um ponto da minha vida, que eu não enxergo que eu precise ir pra sala de aula, essa da escola, porque tenho a sala de aula que eu vivo, que é o maracatu”.

Neto de Manoel Vieira, brincante de bloco rural, e filho de Narciso Vieira, mestre de boi e maracatuzeiro no carnaval da Mata Norte, Nailson desde criança cresceu dentro do maracatu acompanhando o pai e brincando durante a folia da cidade. “Com 3 anos de idade, pai faz uma fantasia de burra pra mim e no ano seguinte fez uma de caboclo”, relembrou. 

O pai de Nailson foi contramestre – aquele que responde aos versos – do mestre João Paulo, que é conhecido na região como o papa do maracatu por ser um dos mais antigos e importantes maracatuzeiros da cidade. “Meu pai foi mestre de boi, depois foi mestre de maracatu e João Paulo tem uma importância muito grande na vida dele porque foi ele que confiou nele e quando João Paulo não pôde assumir um maracatu, disse que quem ia assumir era pai”, contou o jovem músico que no carnaval desse ano se apresentou no Festival Rec-Beat e no palco Marco Zero como convidado do show Recife Cidade do Mangue.

Narciso Vieira, o pai de Nailson, chegou a mestrar maracatus de Lagoa de Itaenga, o Leão Formoso de Tracunhaém e alguns em Nazaré. Já Nailson, apesar de já ter participado de outras agremiações, sempre foi apaixonado pelo Maracatu Estrela Brilhante de Nazaré da Mata. Você consegue enxergar o brilho nos olhos do jovem enquanto fala de tudo o que envolve o Estrela, onde hoje é o Presidente. “Estrela sempre foi o maracatu da minha vida porque tem um cara que é Geraldo, que mora descendo a minha rua, e quando se fala em caboclo de maracatu o povo só cita ele e eu corria desde novo pra ver Geraldo saindo de casa no carnaval”. Nailson conta que Geraldo, hoje com 72 anos, ainda brinca o carnaval de Nazaré. 

A carreira artística de Nailson é um retrato perfeito dessa nova geração de mestres, permeada por ritmos tradicionais de Pernambuco em consonância com o que há de mais atual no cancioneiro global, com ciranda, coco, maracatu rural misturadas com cúmbia, brega, pop e a forte presença do trombone, instrumento que escolheu como seu. Recentemente, o músico lançou seu primeiro clipe “Canto Espanto”, canção que funciona como uma carta de intenções do jovem e mostra sua amálgama de elementos pop com a forte influência da tradição da Zona da Mata Norte. 

Estrela que brilha, Estrela Brilhante

“A relação com a Estrela sempre foi muito próxima, do antigo mestre e fundador da Estrela, que é Barachinha, presenciar o meu nascimento e ir na maternidade me ver, sabe? Tem a relação com meu pai também, que foi contra-mestre de Barachinha por muito tempo, e foi ele que fez o primeiro símbolo da Estrela Brilhante no primeiro carnaval”, lembrou com carinho. Apesar dessa relação quase umbilical com o Estrela, o primeiro maracatu que Nailson brincou foi o Leão Misterioso do mestre João Paulo. 

Comparado a outros maracatus, a história do Estrela Brilhante é até recente. Mas, desde sua fundação o Estrela vem ocupando lugares de destaque dentro do carnaval. Fundado em 1º de abril de 2001, o Estrela tem realizado, de forma sistemática, apresentações culturais nos ciclos festivos do calendário cultural do Estado, bem como a realização de aulas-espetáculos em escolas públicas e participação em festivais e encontros culturais nacionais e internacionais. É, atualmente, a agremiação que mais detém a simpatia dos jovens. É comum, inclusive, durante as sambadas e ensaios do maracatu, presenciarmos muitos jovens da capital se dirigindo a Nazaré com a camisa da agremiação.

Barachinha é uma das cinco pontas que fundaram o Estrela Brilhante, e recorda como se deu o início do maracatu. “Estrela Brilhante foi um sonho do saudoso Trigueiro que há muito tempo tinha vontade de fazer um maracatu. Em 2001, Trigueiro, meu pai Mané Porfírio, meu irmão Biu Porfírio, Tiano, Mário Catita, eu e muitos outros fundamos o Estrela e tá ele aí até hoje”, relembrou o mestre.

“Não sei nem explicar direito, vem de berço mesmo. O único maracatu que eu sempre sonhei em brincar foi o Estrela Brilhante”, disse. A primeira vez que ele brincou carnaval no Estrela foi em 2012 e após uma breve saída, em 2017 ele voltou pra ficar. Atualmente, Nailson é o Presidente do maracatu. O jovem mantém uma relação de verdadeira adoração com todos os fundadores do Estrela Brilhante, mas com um a relação é especial. “Quando eu nasci, Barachinha foi na maternidade e disse assim: “Não bote chupeta na boca dele não, coloque um apito”, brincou o mestre fazendo menção a um dos instrumentos indefectíveis de um mestre de maracatu.

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Barachinha é um contador de histórias nato.

Mestre Barachinha: Um construtor de amigos

É impossível andar pelas ruas de Nazaré da Mata com Mestre Barachinha, 55 anos, e não parar pelo menos umas cinco vezes com abordagens dos amigos e conhecidos do mestre. Barachinha se define como um construtor de amigos, e é bem por aí mesmo. Um dos mais importantes mestres de Maracatu de Baque Solto da Mata Norte, Barachinha tem sempre um causo para relembrar e um ensinamento para dar. Tem um verso seu, do álbum No Baque Solto Somente (2003) com Siba, em que ele consegue em poucas estrofes se apresentar de uma maneira perfeita.

“Mostrei meu rio 

Sem deixar faltar nadinha

Querendo uma ajuda minha

Procure com confiança

Manuel Carlos de França

O popular Barachinha”

Barachinha é um contador de histórias nato, e mantém uma relação de amizade com todos os outros mestres da cidade, da nova e da antiga geração. Sempre a partir do bom humor, que é uma de suas marcas característucas. Com Nailson, não é diferente. “Nós temos essa resenha, essa brincadeira mesmo. Eu creio que antes dele chegar em casa eu já tinha visto ele, já tinha chegado perto através do pai dele que é uma pessoa que eu respeito muito. E a minha relação com Nailson é de muita seriedade, muita lealdade, muito respeito e carinho”, garantiu lembrando da história da chupeta.

Morador de engenho na infância em Buenos Aires, Barachinha iniciou no maracatu muito novo quando se mudou para Nazaré da Mata. “O primeiro contato mesmo eu não me lembro o ano, mas foi com o Leão do Norte de Carpina. Foi quando eu já comecei a chegar perto de maracatu, não acompanhei, mas cheguei dentro do maracatu pra olhar. Meu pai já estava lá brincando”, lembrou.

Antes mesmo de brincar no maracatu ou ser mestre, Barachinha foi artesão da brincadeira. “Não sonhava nem em brincar, mas já comecei a fazer o chapéu, já sabia amarrar fita em guiada, fui fazendo essas coisas lá”, disse. Sua trajetória no maracatu também se deu pelo Leão Formoso de mestre João Paulo como contramestre. Desde 1993, ano em que ele decidiu ser mestre de maracatu, já passou pelo Leão Misterioso, Cambinda Brasileira, Estrela Brilhante, e desde 2014 ele está à frente do Estrela Dourada de Buenos Aires, município do interior de Pernambuco. “E de lá eu só saio, quando parar de ganhar título”, provocou o jovem Nailson, que ouvia a entrevista realizada na sede da Estrela Brilhante e logo respondeu: “Ano que vem ele saí”, aos risos.

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Manoel Carlos de França virou Barachinha por causa do mestre caboclo Alfredo Miguel: “sorte”.

E quando foi que Manoel Carlos de França virou Barachinha? “Foi pequenininho, eu tinha perdido a hora da escola e ia andando apressado aí no meio do caminho tinha um bar e o saudoso mestre caboclo Alfredo Miguel me chamou assim “Barachinhaa! Barachinhaaa!!” nunca passou pela minha mente que era comigo”, conta. “Aí ele “Mané porfírio” aí eu parei e fui lá, aí ele disse “a partir de hoje seu nome é Barachinha” e pegou até hoje”, lembra. Segundo Barachinha a sorte foi pegar carona no nome de Baracho, considerado um dos maiores mestres de maracatu da Zona da Mata Norte de Pernambuco.

Até verso inspirado nisso, Barachinha criou:

“Porque antes de ser mestre
Nome de mestre eu já tinha

Eu não era nada e já

Me chamavam Barachinha”

A conversa com Barachinha é assim, entre um causo e outro, ele emenda com um verso que criou. Ao mesmo tempo, trata com seriedade quando é preciso. Acolhe e incentiva a todos que conhece, principalmente os jovens brincantes de maracatu como Nailson. “Eu faço questão de sair divulgando as pessoas pra incentivar, se Nailson, por exemplo, não fosse o músico que é, não fosse envolvido com Estrela do jeito que é, pouquíssimos maracatus tem um mestre do nível dele”, disse. 

“É um reconhecimento de um valor que eu vejo nele, um futuro que a gente vê em Nailson, é Presidente de um maracatu, mas é um mestre, sem dúvidas nenhuma, com condições de mestrar qualquer maracatu que exista, inclusive o que eu tô”, continuou. O mestre lembra que quando começou, não recebia o mesmo tipo de tratamento dos mestres mais antigos, é por isso que faz questão de ser diferente. “Quando eu comecei, meu amigo, não ouvi uma palavra de conforto não. Era só defeito”, deixou claro.

E é na prática que a postura de Barachinha é diferente, porque só na época em que era mestre do Estrela Brilhante trouxe para o maracatu um certo Sérgio Veloso, Mestre Bi, o próprio Narciso Vieira, Mestre Anderson Miguel e muitos outros. Construir pontes entre gerações e incentivar mais pessoas para brincadeira são as bandeiras que o mestre faz questão de carregar. 

O Baque Solto Salva

O Maracatu de Baque Solto tem sua origem na Zona da Mata Norte de Pernambuco, em fins do século 19 e início do século 20, porém por sua origem rural e como expressão popular dos trabalhadores, seu processo de surgimento praticamente não foi documentado. O que sabemos é que a expressão chega ao Recife na década de 30 do século 20, pela ação de pessoas que migraram para a capital. Trata-se de um folguedo, ou seja, uma manifestação coletiva em que os brincantes assumem e vivenciam determinadas representações. 

As apresentações de Baque Solto são compostas por um desfile de uma corte real: baianas e arreia-más/caboclos de pena (um caboclo com penas de pavão na cabeça), rodeados pelos caboclos-de-lança, que se tornaram o maior dos símbolos da brincadeira e já são reconhecidos nacionalmente, e complementados por personagens como a catita, a burra, o mateus e a catirina. Estes personagens dançam ao som de um terno, que é como é chamado a orquestra de percussão e metais (caixa, cuíca, bumbo, surdo, trombone, trompete e gonguê) que embala os desafios de versos improvisados pelo mestre do grupo.

O mestre é também uma liderança dentro da comunidade e do maracatu, alguém que serve de exemplo dentro do espaço onde o maracatu atua. Prezando pela influência na postura, nos modos e alguém em que todos que podem contar e pedir conselhos.

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Mestre Anderson Miguel: paixão pela música desde os 8 e cantante profissional desde os 12.

Durante muito tempo, até meados dos anos 1990, o maracatu de baque solto foi uma espécie de patinho feio da cultura popular pernambucana. Fato que mudou com o movimento Manguebeat, e o fato de Chico Science, vez por outra, trajar a indumentária vistosa de caboclo de lança nos shows com a Nação Zumbi, foi o que o trouxe de volta à mídia.

Atualmente, quando se fala em maracatu em Pernambuco, o Baque Solto é a referência. O de Baque Virado ou Nação, com a morte de Naná Vasconcelos em 2016 e a perda da abertura do carnaval, acabaram perdendo força gradativamente. Apesar disso, um plano de salvaguarda do Maracatu Nação está sendo produzido com apoio da Fundarpe. Fundamental para a memória de uma das mais antigas manifestações culturais afro-brasileiras, cujos primeiros registros, em Pernambuco, datam do século 18.

Manoelzinho Salustiano e uma família da cultura popular

Mestre da cultura popular pernambucana e atual presidente da Associação de Maracatus de Baque Solto de Pernambuco, Manoelzinho Salustiano, 54 anos, iniciou a sua imersão na cultura popular ainda criança. Além de dirigente de maracatu, ele é conhecido também pelo seu trabalho de bordadeiro de estandartes e pela habilidade em unir as agremiações em torno da valorização de suas manifestações artísticas. 

“Quando se começa a brincar esse folguedo, dentro dos engenhos depois da suposta libertação dos escravos, se batia no mulungu, se cantava e tocava com as suas próprias ferramentas”, explica Manoelzinho. E bater o mulungu? O que é isso? “É você pegar aquela madeira do mulungu, a mesma que faz o boneco de mamulengo, e fazer um bojo feito o de macaíba que você encontra no baque virado”, complementa.

“Depois, quando começaram a fazer os cortejos saindo dos engenhos para os sítios, deram o nome de maracatu. O tempo foi passando e, em 1954, Guerra-Peixe fez a definição de Baque Solto e Baque Virado”, revela. Segundo Manoelzinho, Baque Solto é porque a pancada é solta no bumbo e Baque Virado porque tem um meião que dá a virada na pancada. Misturando dança, música e poesia, o maracatu de baque solto ou rural está associado ao ciclo canavieiro. 

Já sobre a divisão pela alcunha de Maracatu Rural e Urbano, Manoelzinho explica que a pesquisadora e antropóloga norte-americana Katarina Real, nos anos 1960, escreve um livro onde entrevista brincantes do maracatu da cidade do Recife e acaba batizando de Maracatu Rural o Baque Solto porque está na Zona Rural. Sobre isso, o Doutor Honoris Causa esclarece: “Mas, ela não diz que o Maracatu de Baque Virado é urbano e aí o nome rural até pra fazer o verso é mais fácil, Por isso, todo o mundo ficou chamando de maracatu rural. É até engraçado, toda bandeira, todo estandarte está lá: maracatu de baque solto, mas o mestre na hora de versar fala maracatu rural”.

Maracatu de Baque Solto.
Nailson Vieira une elementos pop e tradição.

Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil desde 2014, o maracatu em Pernambuco encontra seu berço na cidade de Nazaré da Mata, cerca de 70 km do Recife, reconhecida como a capital estadual do maracatu, pela Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe). Lá estão o maracatu mais antigo em tempo ininterrupto do Brasil, o Cambindinha de 1914. E hoje em dia tem cerca de 18 grupos de maracatus em atividade. 

A brincadeira popular ocupa um papel expressivo nas vivências e nas dinâmicas políticas do município, além de ser razão de vida de boa parte da gente que vive por lá. Contudo, a história da cidade ainda é insistentemente atravessada pela monocultura canavieira que marcou desde o princípio a economia e a história da região.

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Mestre Bi: trajetória inusitada.

Mestre Bi, um operário do maracatu de baque solto

Exercendo atualmente a função de diretor de Turismo e Cultura de Nazaré da Mata, Lezildo José dos Santos, ou como todos conhecem: Mestre Bi, 37 anos, tem uma trajetória singular no maracatu. Criado no Engenho Teimoso, em Nazaré da Mata, ele começou a mestrar com uma idade considerada avançada. “Eu comecei de mestre já foi tarde para o que a maioria começa, foi em 2010. Era um brincante, fui caboclo de lança do Cambinda Brasileira, depois fui pra vice-presidente de lá e me afastei por motivos bem próprios”, relembra. Bi se recorda que na mesma semana em que saiu do Cambinda, houve o convite para ir para o Estrela Brilhante.

“E eu fui e até hoje estou por lá. Entrei por um convite de Barachinha, pessoa que sempre acreditou em mim e me estimulou como mestre”, disse. Atualmente, Bi se divide entre as atividades públicas no município, os compromissos com o Estrela Brilhante e sua atividade artística com a Ciranda Bela Rosa. “Se você observar o coco de roda, a ciranda, o maracatu, praticamente estão usando a mesma métrica hoje e isso facilita pra brincar de todas as formas, eu procuro mesclar tudo”.

Sobre a relação da cidade com o maracatu, Bi é taxativo. “Nazaré se destaca por abrigar o maior número de maracatus do mundo, tem o Parque dos Lanceiros, o parque dos maracatus, e a cidade também quebra alguns tabus: é a única cidade do Brasil que tem um maracatu só de mulheres, o Coração Nazareno. Também tem o Cambinda Brasileira, maracatu centenário, o segundo mais antigo do Brasil”. 

Uma unanimidade durante todas as entrevistas é o alto custo envolvido na manutenção de um maracatu.Absolutamente todos os mestres, da nova e da antiga geração, atentaram para o fato de ser quase inviável financeiramente organizar o brinquedo. “Não tem dinheiro no mundo que dê pra maracatu não. Muitas pessoas que observam de fora acham que maracatu é um meio de vida, mas na verdade de um carnaval pro outro o déficit é grande”, relata Mestre Bi. 

O mestre é também uma liderança dentro da comunidade e do maracatu, alguém que serve de exemplo dentro do espaço onde o maracatu atua. Prezando pela influência na postura, nos modos e alguém em que todos que podem contar e pedir conselhos.

Segundo o mestre do Estrela Brilhante, ao fim do carnaval a arrecadação do maracatu não consegue cobrir a despesa e ao fim da folia, o déficit chega em média a 30 mil reais. “Então, a dificuldade maior do maracatu é financeira, a gente recebe pouco nas cidades que brincamos, alguns concursos pagam melhor. A cidade de Nazaré nos dá uma condição boa e os editais que existem também dão uma força. Mas os municípios vizinhos não dá, tentam nos sacrificar, pagam muito mal”.

De acordo com Bi, é quase impossível encontrar um maracatu que arrecade mais do que se gasta. Já é natural dessa cultura. “Eu cheguei em Estrela pra ganhar dinheiro cantando, com dois anos lá me apaixonei e desde então eu pago pra brincar lá”, conta o mestre. “Eu já sufoquei meu décimo terceiro, minhas férias, tudo pra colocar no maracatu. É um saco sem fundo mesmo”, revelou. Apesar disso, o amor e a paixão pela Estrela Brilhante o fazem seguir sem nem pestanejar.

Assim como Mestre Bi e Nailson Vieira, e antes foi também com Barachinha, o Estrela Brilhante é a menina dos olhos de outro mestre, esse com trajetória tão rica quanto a dos outros três, mas com algumas sutis diferenças de contexto: Siba Veloso, 55 anos.

Siba Veloso, o poeta pesquisador

“Sérgio Veloso foi um assistente competente e um gentil companheiro de viagem, e agora ganhou sua própria bolsa de estudos para estudar a rabeca e sua música”, é assim que o  etnólogo norte-americano John Patrick Murphy se refere a um jovem Siba Veloso nos agradecimentos iniciais da tese etnográfica do cavalo marinho, de John Murphy, viabilizada pelo Instituto de Estudos Ibéricos e Latino-Americano da Columbia University, da Fundação Fullbright, com participação da Universidade Federal de Pernambuco, onde Siba então estudava no começo dos anos 90.

Murphy, que escreveu um tratado minucioso sobre o cavalo marinho de Pernambuco, mal imaginavas que, sem querer, estava também dando uma importante contribuição à música popular pernambucana. Siba Veloso sabia muito pouco, quase nada, sobre as manifestações culturais da Zona da Mata. Enquanto trabalhava como assistente de John Murphy acabou encantado com as brincadeiras populares, e nessa época em especial com o folguedo dramático. Aprendeu as toadas do cavalo marinho, e canções de forró com características bem particulares, realizados na Zona da Mata. 

Dessa experiência, fundou com alguns amigos a banda Mestre Ambrósio, que foi uma das grandes expoentes do movimento Manguebeat. Mestre Ambrósio é um personagem do cavalo-marinho, responsável por vender as máscaras e roupas durante a apresentação do folguedo, típico da Zona da Mata Norte pernambucana e do Agreste paraibano.

“Eu era um estudante de música da UFPE que já estava no processo de busca, de compreender e me aproximar dos movimentos de cultura popular e que já tinha essa vivência que a gente tem por ser de Recife, de Olinda, uma vivência indireta” , lembra Siba. “Mas o Maracatu de Baque Solto era uma cultura de outro lugar pra mim, e eu me aproximei dele através da música, dessa pesquisa que eu tava fazendo na Mata Norte”. O músico se recorda que desde o começo, na primeira vez que viu, o maracatu foi algo que o impactou muito fortemente.

Apesar dessa relação inicial, foi só em 2001 e pós-Mestre Ambrósio que Siba decidiu se mudar de São Paulo e ir morar em Nazaré da Mata a fim de desenvolver um novo projeto, mais ligado à música tradicional, que acabou gerando A Fuloresta. A partir de então, o antigo pesquisador foi cada vez mais se tornando um brincante. “Até de um modo meio ingênuo, eu fui fazendo uma certa inversão de paradigma, percebendo na cultura popular não uma origem de pesquisa, mas sim um processo vivo de cultura que de algum modo eu poderia fazer parte também”. Siba foi procurando espaços para fazer parte da cultura, sem abrir mão de tentar entender o fenômeno, porém não mais como um agente de pesquisa e sim como um participante. 

Gradativamente, o músico foi se integrando aquela realidade. Começou observando a brincadeira, depois passou a participar como caboclo e por fim virou um mestre de maracatu. “Foram precisos muitos anos para eu ir ocupando o meu espaço, até que eu fui morar em Nazaré da Mata, para fazer a Fuloresta. É quando começa a minha história com o Estrela Brilhante, com Barachinha e a coisa tomou um rumo mais sério”, disse.

De início, o cantor rodou por outros brinquedos, foi contramestre do mestre Zé Duda na Estrela de Camará, em Aliança. Até que surgiu o convite de Barachinha para ingressar no Estrela, de onde nunca mais saiu. “Fui acompanhando o maracatu e ajudando, uma espécie de diretor que não sabe fazer nada, mas acompanhava lá. Minha história com a Estrela Brilhante começou assim, tá até hoje e não deve acabar”.

Siba enxerga essa conversa entre gerações como algo muito natural dentro da cultura do baque solto e de fundamental importância para o futuro da tradição. “Esse encontro de gerações no maracatu se dá de um jeito muito orgânico, sabe? É quase estranho falar de nova geração porque o conhecimento é passado de maneira horizontal, na convivência e na experiência de cada um”. Para Siba, não existe conflito entre as gerações porque não há necessidade de ruptura, nem de uma demarcação com quem veio antes ou depois.

“Muito pelo contrário, você percebe em todos eles uma reverência muito forte para todos da minha geração para trás. Só que essa geração que você fala, que tá na casa dos vinte anos agora, ela tem uma característica muito especial que é o fato de que ela foi gerada nos anos Lula”, explicou. “Foi o primeiro momento onde o povo daquele lugar, que é uma terra que tem uma história muito antiga de exploração e pobreza, tiveram o mínimo de dignidade no seu modo de viver, então obviamente essa geração é diferente”, completou.

O cantor não se agrada com conversas sobre um possível fim ou crise do maracatu, tampouco com a classificação da brincadeira como cultura popular, raiz, tradição, nem quando o classificam como agente modernizador dessa cultura. Com o tempo, passou a entender que era melhor passar a usar o senso comum para discuti-lo. E o que ele busca é apenas ser mais um agente ativo dentro dessa complexa lógica do maracatu. 

Hoje em dia, mesmo de longe morando em São Paulo, ele continua atuante dentro do Estrela Brilhante como uma espécie de diretor e mentor. Participa de um grupo de WhatsApp com Nailson e Mestre Bi, onde planejam ações do maracatu e discutem novos passos. “São três grupos, véi, tem o grupo do maracatu, o só da diretoria e tem um que é só eu, Bi e Nailson para assuntos mais sensíveis. A Estrela é meu povo, minha comunidade, minha família mesmo”. 

Inclusive, a história de Siba carrega muitas semelhanças com a do jovem Nailson Vieira como ele mesmo apontou. “O caso com Nailson é ainda mais doméstico, ele é como se fosse da minha família porque ele é filho de Nau e Nau era a pessoa mais chegada a mim depois de Barachinha, praticamente éramos um trio de amigos no tempo que morei em Nazaré”, relembrou. “Eu vi Nailson pelos terreiros de maracatu com Nau, mas nunca tinha trocado ideia com ele porque era uma criança e aí ele aparece como artista e de fato faz o movimento inverso do que eu fiz, porque ele se aventura pelo campo da música, trazendo junto toda a carga da tradição poética”, comparou. 

Ao contrário do que aconteceu com Siba, que veio da música pro maracatu, Nailson depois de crescer dentro do maracatu, sentiu a necessidade de um estudo formal em música na Universidade. Outro mestre da nova geração que mantém relação próxima a Siba é o Mestre Anderson Miguel, 28 anos.

Mestre Anderson Miguel e a voz ‘sonorosa’ da tradição

Desde os 8 anos de idade, Anderson Miguel já cantava maracatu acompanhando seu pai Aderito no maracatu Cambinda Brasileira. Aderito era contramestre – aquela figura que responde aos versos – e sempre levava o filho ao Cumbe, engenho onde está localizada a sede do centenário Maracatu Cambinda Brasileira. “Eu vim cantar profissionalmente, de fato, com 12 anos no Cambinda junto com meu pai e como mestre do Maracatu Sonho de Criança”, lembrou Anderson. O Sonho de Criança, como o próprio nome sugere, é um maracatu formado por meninos e meninas da região.

Desde o início, Anderson contou com amplo apoio e incentivo dos mestres de maracatu mais antigos. “Eu tive muito apoio, véi, até hoje dos poetas da velha guarda, né? Exemplo de Barachinha, João Paulo, Zé Galdino que já faleceu, Antônio Paulo Sobrinho também. Eu digo que sou um privilegiado porque tive a sorte de poder estar entre esses mestres e aprender com eles”.

“Não existe o presente sem o passado, né? Tem que ter o respeito pelos que vieram antes. Ao mesmo tempo que a renovação é importante pra cultura se manter viva”, refletiu o jovem mestre. Da mesma forma que aconteceu com o maracatu, desde criança Anderson mantém uma relação íntima com a música. “Desde que me lembro sempre fui apaixonado pela música, eu cresci ouvindo canções com a minha mãe em casa, sou um fã da música mesmo. Nunca imaginei que fosse me tornar cantor, mas aconteceu naturalmente”, conta o cantor que foi criado ouvindo Zezé Di Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo entre outros artistas que sua mãe ouvia em casa.

Claro que a raiz da  Mata Norte não fica pra trás, até por isso o músico fundou seu próprio conjunto de ciranda: a Ciranda Raiz da Mata Norte, batizada adivinhem por quem? Por Mestre Barachinha. Aliás, foi Barachinha também quem apresentou Anderson a Siba através de uma ligação por telefone. “A minha relação com Siba é muito importante, eu não o conhecia pessoalmente, ele ouviu um show meu pelo telefone numa ligação com Barachinha e foi aí que ele propôs uma parceria que dura até hoje”, recorda o mestre vencedor do carnaval do Recife de 2024 com a Cambinda Brasileira.

Mestre Anderson se refere ao amigo como seu “padrinho”, pois foi Siba Veloso quem produziu – ao lado de João Noronha – o Sonorosa (2019), seu primeiro disco. Entre os palcos que o show já esteve, Anderson destaca alguns dos principais festivais de música do Brasil: No ar Coquetel Molotov, do Recife, em 2018; Coala Festival, de São Paulo, em 2019; e o Radioca, de Salvador, ainda em 2019.

Durante o início da carreira, mestre Anderson Miguel era conhecido como o  “Neymar do Maracatu” –  apelido que, inclusive, deu nome ao personagem que interpretou no filme Azougue Nazaré (2019), do cineasta Tiago Melo. Uma versão dele mesmo, cujo apelido era explicado pela semelhança física, pelo talento astucioso, a inteligência intuitiva, e a desenvoltura firme para se colocar entre mestres com bem mais idade ainda muito novo.

Em Nazaré da Mata, a poesia é sempre o norte. É simples assim, os mestres da cultura popular são amigos, se apoiam e um frequenta os ensaios e as festas do maracatu do outro. Todos os envolvidos em maracatu, formam uma espécie de laço familiar para o bem da brincadeira. Há o claro entendimento de que eles formam uma trincheira de defesa de uma cultura muito antiga e que permeia todas as atividades da cidade. O município orbita em torno das artes e da cultura popular, com duas escolas de música tradicionais: a Capa Bode e a Revoltosa, 18 maracatus e inúmeros mestres.

“Não só em Pernambuco, mas essa parte das brincadeiras populares, dos grupos que se realizam através da celebração de festas com dança, música, poesia, ancestralidade, tudo na rua misturado, com esse modo de se reunir, fazer junto, e contar a própria história ao longo do tempo, todas essas atividades tem uma coisa muito importante em comum que é um fio invisível que vem de muito tempo atrás e que foram formadoras do país”, resumiu Siba Veloso. 

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Esta reportagem foi produzida com apoio do edital Acelerando Negócios Digitais, do ICFJ em parceria com a Meta.

Créditos:
Reportagem: Yuri Euzébio e Gabriela Passos
Fotos: Hugo Muniz, Ivson Gambarra e Gabriela Passos
Edição: Paulo Floro
Revisão: Alexandre Figueirôa

Esta reportagem foi produzida com apoio do edital Acelerando Negócios Digitais, do ICFJ em parceria com a Meta.