Reconhecido como um dos maiores festivais independentes do Brasil, o Rec-Beat surgiu como um ponto fora da curva dentro do Carnaval de Pernambuco para hoje se tornar referência, conquistando o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Recife. Do sábado de Zé Pereira à terça-feira gorda, a programação gratuita da festa costuma ocupar as margens do Rio Capibaribe, no Cais da Alfândega, com uma rica e diversa mistura de ritmos – sempre privilegiando um olhar atento e apurado para a tradição e para as inovações da música local e global.
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Impulsionadora das transformações na cena artística do estado, a primeira edição do evento aconteceu em 1995, em meio ao Manguebeat. “Desde o início, a ideia era trazer novidades. Era um momento que tinha uma cena muito efervescente na cidade e a gente entendeu que caberia um palco no Carnaval para mostrá-la. Era uma cena que existia, mas que demorou para conquistar os palcos. Não foi um processo tão rápido”, pontua o diretor e curador Antonio Gutierrez, ou apenas Gutie como é conhecido, à Revista O Grito!.
“Com uma programação sempre muito bem cuidada, o festival trouxe para a banda um reconhecimento por parte dos produtores e empresários que sempre estiveram em peso, e ajudou a moldar a personalidade dessa cena musical pernambucana no inicio”, reconhece Fábio Trummer, vocalista e integrante remanescente da formação original da Banda Eddie, uma das expoentes do Manguebeat.
Em seus quase 30 anos de história, o festival tem sido pioneiro ao acolher e promover esse e outros sons vindo da periferia. Recentemente, algo similar aconteceu com o brega funk, ritmo ignorado pela programação dos palcos públicos da cidade até pouco tempo atrás. Em 2018, o Rec-Beat foi responsável por romper essa barreira com MC Tocha, que se tornou o primeiro representante do gênero a tocar no Carnaval. Desde então, já passaram pelo palco nomes como Rayssa Dias e a dupla Shevchenko e Elloco.
Mas, diferente do que o público mais jovem possa imaginar, a festa nem sempre ocupou o espaço atual no coração do Recife Antigo, tampouco era realizada na capital pernambucana. As primeiras edições aconteciam em Olinda, no Centro Luiz Freire. A ideia era trazer uma experiência complementar à folia na Cidade Alta, cuja programação até hoje é majoritariamente diurna. “Quando as pessoas já estavam exauridas de blocos e troças nas ladeiras, iam lá para ver outras atrações”, explica o idealizador.
Logo, o que era voltado para a cena pernambucana, não tardou a abraçar artistas de outras regiões do Brasil – e, neste sentido, o Rec-Beat também tem conseguido captar tendências e revelar grandes talentos, se estabelecendo como um farol no cenário nacional. Entre os nomes que já se apresentaram no palco do festival ainda no início das suas carreiras estão a paraense Gaby Amarantos e os baianos do BaianaSystem, hoje vencedores do Grammy Latino.
Música para além das fronteiras
Nos últimos quinze anos, o horizonte do evento vem sendo ainda mais ampliado com a aposta em atrações de fora do país. A edição deste ano, aliás, vem com um número recorde de apresentações internacionais. São sete, no total, vindas da América do Sul, África e Europa. Um dos destaques da grade é o músico Niño de Elche, que traz uma bagagem de experimentações eletrônicas no flamenco, expressão artística popular de grande tradição na Espanha, e já acumula colaborações com Rosalía e C. Tangana.
“Já fomos para países da América Latina e África. Mas sempre com essa ideia de trazermos para o público uma experiência nova, de coisas que surpreendam, tragam frescor e, ao mesmo tempo, estimulem os sentidos. Esse é o objetivo do festival. A gente tem lá os nomes mais conhecidos, mas nosso objetivo principal é o que vai no recheio: os desconhecidos, os novos, as apostas do festival. Isso é o que, realmente, vai chegar ao público de outra maneira.”
“Os festivais são muito caros para algumas camadas sociais. Então, o Rec-Beat proporciona este acesso, o que eu acho muito importante. Até porque há uma experiência proporcionada que contribui para a formação das pessoas, para estimular a reflexão.”
Antônio Gutierrez, o Gutie
No entanto, o diretor e curador não concorda com o rótulo de palco alternativo, que muitas vezes acaba recaindo sobre o festival. “Nunca tivemos a ideia de ser um palco alternativo, no sentido de ser um palco que rejeita. Na verdade, é um palco que acolhe. Ele soma. E esse conceito mantemos até hoje”, avalia Gutie.
Outro forte pilar do festival é a gratuidade nos dias de folia. É difícil hoje encontrar um evento cultural com porte e proposta artística similar que seja aberto ao público, sobretudo dadas as dificuldades de financiamento. “Os festivais são muito caros para algumas camadas sociais. Então, o Rec-Beat proporciona este acesso, o que eu acho muito importante. Até porque há uma experiência proporcionada que contribui para a formação das pessoas, para estimular a reflexão.”
Para Trummer, iniciativas como esta na música exercem um papel fundamental na construção de uma sociedade mais igualitária, “quebrando ou tentando quebrar preconceitos enraizados na cultura de classes do país. Um festival que tem um importante papel durante o Carnaval que é mostrar outros universos sonoros que não o propriamente universo carnavalesco.”
Rec-Beat: Patrimônio Cultural Imaterial do Recife
O reconhecimento por essa trajetória veio, enfim, em dezembro do ano passado, quando o festival criado por Gutie há 29 anos, em Olinda, recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Recife. A honraria foi resultado de um projeto de lei proposto pela vereadora Cida Pedrosa (PCdoB).
O evento passou a acontecer na capital pernambucana a partir de 1999 e, inicialmente, ocupou a rua da Moeda, onde fomentou o modelo atual do Carnaval do Recife, com palcos multiculturais e descentralizados. O idealizador e curador considera, aliás, que existe hoje uma “recbitização” da folia na capital pernambucana. “Vários palcos que emulam uma programação e um conceito que o Rec-Beat desenvolveu e, de certa forma, já até abandonou, mas que se repete em vários palcos que não existiam.”
“Então, eu não diria que foi o Carnaval que contribuiu para o festival, mas o festival que contribuiu para o Carnaval, principalmente, no Bairro do Recife”, reflete. “Porque o Rec-Beat acentuou e aprofundou essa diversidade pela qual nosso Carnaval é conhecido fora. Tem o Galo, tem as troças, os blocos, tem o Marco Zero e tem o Rec-Beat. É uma contribuição muito grande para essa característica pela qual é reconhecido o Carnaval de Pernambuco e de Recife, particularmente.”
“Acompanho o festival praticamente desde criança, lembro de assistir shows incríveis por lá”, relembra o multiartista pernambucano Johnny Hooker, que já participou de quatro edições, sendo a última em 2020. “Se tornou um dos festivais mais reconhecidos no Brasil justamente por trazer artistas com relevância artística e de público. No meu caso específico em que estou barrado da programação oficial do carnaval da minha própria cidade desde 2016, quase 10 anos, foi uma maneira de poder participar da festa.”
O lado B da festa: as dificuldades pra conseguir recursos
Embora bem consolidado e reconhecido nacional e internacionalmente, o Rec-Beat ainda esbarra em dificuldades para garantir sua realização. Como o evento é gratuito, sua viabilidade depende inteiramente de apoios e patrocínios, o que nem sempre é fácil de conseguir para festivais independentes que estão fora do eixo Rio-São Paulo – mesmo os mais inventivos. “A gente tem que trabalhar com um orçamento limitado e tirar o máximo disso”, resume Gutie.
“Mas não é desprezando o apoio que temos. Pelo contrário, estamos sempre agradecendo e citando os patrocínios.” Neste ano, a festa tem o patrocínio da Fundação de Cultura Cidade do Recife, Secretaria de Cultura e Prefeitura do Recife, além de apoio da Fundarpe, Secretaria de Cultura e Governo de Pernambuco, Embaixada da Espanha no Brasil, Consulado Geral da Alemanha no Recife, Consulado Geral da França em Recife e Delikata.
Esta será a 28ª edição do Rec-Beat. A programação começa neste sábado (10). Urias, Rico Dalasam, Mateus Fazeno Rock, Ana Frango Elétrico, Ebony, Ivyson e Walter de Afogados são algumas das mais de 20 atrações anunciadas.
A Revista O Grito! fará a cobertura dos shows. Os detalhes das apresentações serão publicados em texto e fotos no nosso site e também em nossas redes sociais, Instagram e Twitter/X.
Programação do Carnaval 2024
Shows no Marco Zero: Gilberto Gil, Ludmilla, Luísa Sonza, Alceu Valença
Rec-Beat: Letrux, Ana Frango Elétrico, Urias
Praça do Arsenal e Pátio de S. Pedro: Rubel, UANA, Marcelo D2
Olinda, praça do Carmo: Nação Zumbi, MC Tocha, Siba
Olinda, Guadalupe: Conde Só Brega, Dany Myler, Abulidu
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