Orlando – Minha Biografia Política
Paul B. Preciado
FRA, 2023. Documentário, 1h38
Em janeiro de 2015, havia sinais de convulsão em várias latitudes do mundo: na França, o atentado terrorista à sede do semanário Charlie Hebdo, que deixou 12 mortos e 11 feridos; em Gaza, a invasão ao escritório da Organização das Nações Unidas – ONU; no Brasil, diversas tensões a marcar as primeiras semanas do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores – PT. Ainda no território nacional, na área da Amazônia Legal, abrangendo solo brasileiro e países vizinhos, cerca de 288 quilômetros quadrados de floresta haviam sido desmatados, resultando em um aumento de 169% em relação a janeiro de 2014.
Na Espanha, contudo, o abalo sísmico se dava em uma ordem mais pessoal, porém não menos política: no dia 18/01/2015, o diretor/a do Programa de Estudos Independentes do MACBA/Museo de Arte Contemporáneo de Barcelona assinava o texto Catalunya trans, em que abordava a violência contra o Charlie Hebdo, em Paris, como um “assalto, uma batalha perdida, uma contrarrevolução, mas também quem sabe como uma possibilidade de construir alianças novas que protejam e acolham quem amamos”.
E demarcava o início de uma nova fase em sua jornada de construção subjetiva: “De minha parte, comecei o ano pedindo a meus amigos próximos, e também aos que não me conhecem, que troquem o nome feminino que me foi designado no nascimento por outro nome. Uma desconstrução, uma revolução, outro duelo. Beatriz é Paul”, comunicava o autor/a de Manifiesto contrasexual, Testo yonqui e Pornotopía. Nascia, assim, o filósofo, teórico e autor Paul B. Preciado, outrora conhecido, admirado, lido e celebrado como Beatriz Preciado.
Oito anos depois, em fevereiro de 2023, Paul B. Preciado estreou como realizador cinematográfico com Orlando – Minha Biografia Política (Orlando, ma biographie politique, França, 2023), exibindo seu primeiro longa-metragem na mostra Encounters da 73ª edição da Berlinale – Festival de Cinema de Berlim. Saiu da Alemanha com o Prêmio Especial do Júri da Encounters e com o Teddy Award, destinado às produções que mergulham na temática LGBTQIA+ – tanto que, em 2018, tal láurea foi outorgada ao documentário brasileiro Bixa Travesty, de Cláudia Priscilla e Kiko Goifman, sobre Linn da Quebrada.
Orlando – Minha Biografia Política pode ser descrito, de forma correta e sucinta, como uma adaptação livre e libertária de uma das mais conhecidas obras da escritora britânica Virginia Woolf (1892-1941). Orlando, lançado em 1928 pela Hogarth Press, editora que Virginia fundara com seu marido, Leonardo Woolf, foi um dos livros que mais despertou interesse do ingleses na época; publicado três anos depois de Mrs. Dalloway, atraiu de imediato a atenção da plateia literária então vivendo sob o reinado de Jorge 5º. Décadas depois, foi abraçado por Preciado durante suas andanças pelo mundo: “O livro é uma pirâmide portátil, dizia Derrida, falando do povo judeu que, fugindo do Egito, transformou a arquitetura em papiro para poder levá-la sempre consigo. Foi assim que a obra de Virginia Woolf transformou-se, nesta viagem, no meu quarto de papel”.
Estas frases estão em Orlando On The Road, um dos escritos compilados em Um Apartamento em Urano – Crônicas da Travessia (Editora Zahar, 2020) que serve de força motriz e de chamariz para o Orlando cinematográfico. “Dada a minha ambivalente relação com ela (eu a adoro, embora às vezes seja homofóbica e outras vezes classista, em certas ocasiões pedantes e sempre impertinente), Virginia Woolf é um lar inóspito. Estou lendo o diário que escreveu entre 1927 e 1928, quando trabalhava na redação de Orlando. Entender como ela constrói Orlando narrativamente ajuda-me a pensar na fabricação de Paul. O que acontece com o relato de uma vida quando é possível modificar o sexo do personagem principal? Virginia qualifica de ‘êxtase’ o afeto que essa escrita gera. Não escondo que às vezes me assalta uma emoção semelhante”, delineia o filósofo em uma crônica escrita de Buenos Aires em 10 de julho de 2015.
Tal “emoção semelhante” deve ter sido um motor/lastro para que, ao longo de alguns anos, Preciado arregimentasse um elenco 25 pessoas, todas, sem exceção, trans e não-binárias, para participar de um teste de elenco cuja finalidade era interpretar a criatura fictícia esboçada e lapidada por Woolf… Um Orlando que nasce nobre e varão na Inglaterra no século XVI, viaja para a Turquia e, aos trinta anos de idade, de lá volta reconfigurado como uma mulher. Um ser imortal, posto que o enredo atravessa monarcas e poetas até a data de 11 de outubro de 1928. Escrito como uma carta de amor de Virginia a Vita Sackville-West, sua amiga por quem se apaixonara e que, como ela, era casada com um homem, repleto de referências a aspectos reais da biografia de Vita e de cruzamentos com gêneros literários, acontecimentos e personalidades históricas, Orlando, a matriz literária, merece o epíteto de “obra-prima”.
O que, por sua vez, contribui para conferir a Orlando – Minha Biografia Política o estatuto de uma “obra-prima” contemporânea; entretanto, o filme de Paul B. Preciado não o é apenas por causa da perenidade de Woolf, e sim porque se trata de um trabalho corajoso e político. Inventivo na forma e disruptivo na encenação, é propositor e balizador de questões essenciais para contemporaneidade – como se dão e se estruturam, na concretude do cotidiano, as vidas trans? Quem são essas pessoas? Como se posicionam perante os gestos banais do dia a dia – andar na rua, fazer compras, cumprimentar transeuntes – ou diante dos desafios que atravessam suas existências – como viver em países que na maioria das vezes querem nos exterminar?
Arthur, Emma, Clara, Eleonor… À medida que vamos singrando os 98 minutos de projeção, todas as pessoas se apresentam da mesma forma: “oi, eu sou Paul e neste filme interpreto Orlando de Virginia Woolf”. Enquanto narram as suas próprias vidas, emulam Orlando; enquanto ratificam a combinação de teima e resiliência que é ser quem se pode e se quer ser, evocam palavras escritas quase um século atrás, no entanto extremamente atuais justamente por evocar a fluidez da vida contemporânea. É um jogo de cena bem engendrado, que evolui com naturalidade na mescla entre realidade e ficção e na certeza de que não estamos também nós, o tempo inteiro, nas redes sociais, ao postar stories no nosso celular, também forjando uma nova e crível auto-representação?
Orlando – Minha Biografia Política se despede com todas e todos os Orlandos reunidos em uma espécie de sala de tribunal, onde a juíza é vivida por Virginie Despentes, ex-companheira de Paul, ex-prostituta, escritora, autora de Teoria King Kong (2006, publicado no Brasil pela n-1 edições), entre outros títulos, e uma voz ressoante nos estudos contemporâneos de gênero. Mas ali não há julgamento algum, e sim o vislumbre de uma bênção possível.
Exibido no Festival do Rio, em outubro, foi adquirido para distribuição pelo Filmes do Estação. A estreia em circuito comercial no país que mais aniquila pessoas trans no mundo (relatório divulgado em janeiro pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais – Antra constata que em 2022 foram 131 assassinatos) está prevista para o primeiro trimestre de 2024. Quem sabe a aparição de um filme como este não ajuda, de algum modo, a mudar este panorama sombrio? Mudanças, afinal, são cruciais para qualquer travessia, como bem sabe Paul B. Preciado, todas as suas e seus Orlandos e aqueles outros tantos que talvez nunca virem um documentário, mas que constituem, com seus corpos e sua coragem, a história trans em/de um mundo em transformação.
Leia mais críticas
- “As Polacas”: melodrama de João Jardim nasce datado e desperdiça eficiência do elenco
- “Queer”: Quando desejo e drogas alucinógenas se dão os braços
- “Clube das Mulheres de Negócios”: boas ideias esbarram em narrativa acidentada
- “Wicked”: adaptação do musical da Broadway é tímida, mas deve agradar fãs de Ariana Grande
- “Herege”: com boa premissa, novo suspense da A24 se perde em soluções inconvincentes