Crítica: O Lobo Atrás da Porta, de Fernando Coimbra

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Foto: Divulgação/Imagem Filmes.
Foto: Divulgação/Imagem Filmes.

Suspense O Lobo Atrás da Porta assume caráter universal da degradação dos subúrbios

Por Luiza Lusvarghi

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O cinema brasileiro sempre se prevaleceu, em seus primórdios, da associação de filmes policiais e de ação, às manchetes de jornal, e disso se valia para atrair espectadores. O filme O Lobo Atrás da Porta, no entanto, conta a história do sequestro de uma garotinha num subúrbio carioca e seduz pela temática, pelos planos fechados, e pelo suspense, embora o pano de fundo seja extremamente pertinente à realidade brasileira – o numero de crianças desaparecidas é alto e inspira manchetes, artigos, campanhas, telenovelas. As famílias de baixa renda são o alvo preferencial de quadrilhas de tráfico humano.

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A narrativa foi baseada na história real de uma mulher comum, Neide Maya Lopes, que se tornou conhecida na imprensa da década de 1960 como a “fera da Penha”, bairro periférico do Rio de Janeiro. Ao optar por atualizar o episódio, porém, manter o relato do filme no subúrbio carioca, o mesmo em que o caso original ocorreu, há mais de 50 anos, o diretor estreante Fernando Coimbra garantiu ao desenvolvimento da trama uma perspectiva distanciada, sem envolvimentos, com um final que surpreende o espectador pelo inesperado, e pelo macabro, além de conferir à trama um caráter universal.

Na visão de Coimbra, o subúrbio é uma paisagem global. Os bairros periféricos de Marechal Hermes, Madureira e a Igreja de Nossa Senhora da Penha, onde o fiscal Bernardo (Milhem Cortaz, o policial corrupto de Tropa de Elite) trabalha poderiam estar situados em qualquer país latino-americano. Do Rio de Janeiro das praias e do Pão de Açúcar não há vestígios e o que vemos são os trilhos de trens suburbanos, terrenos baldios, casinhas simples. A forma como esse espaço é abordado lembra uma área de confinamento, clausura, como ocorre com a neofavela de Cidade de Deus. É a outra cidade dentro da cidade do Rio. Não existe conexão entre essa região e a Zona Sul, nem com os indivíduos de outras classes sociais.

Foto: Divulgação/Imagem Filmes.
Foto: Divulgação/Imagem Filmes.

Os tons mais escuros adotados para trabalhar os interiores, repletos de moveis e utensílios sem nenhuma distinção especial, do tipo que se adquire em qualquer grande magazine a infindáveis prestações, além de acentuar a dramaticidade e o tom intimista de algumas cenas, contribui para acentuar a sensação de isolamento dessas pessoas. O interrogatório policial, que alinhava a narrativa e leva ao desfecho, também se dá numa delegacia totalmente desglamurizada – o delegado (Juliano Cazarré) é a antítese de qualquer investigador de seriado policial americano e sua aparência quase lembra a dos marginais.

A forma como o adultério é abordado lembra o universo do dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues, cujos personagens habitavam os subúrbios com seus pecados e luxúrias. Jornalista, repórter policial, considerado o criador da moderna dramaturgia brasileira, o autor vivenciou ele mesmo tragédia semelhante a de seus personagens: seu irmão foi assassinado em plena redação por uma mulher da sociedade carioca como represália a uma nota sobre adultério publicada pelo pai. Um dos méritos de Rodrigues foi justamente a sua capacidade de retratar com fidelidade a classe média baixa carioca, a desagregação da estrutura familiar, a vida como ela é, e sair do registro melodramático de influência europeia que predominava em produções teatrais do período.

A personagem de Leandra Leal, Rosa, mais humanizada, numa interpretação sensível e precisa, é transformada em vitima do sedutor Bernardo (Milhem Cortaz), e nos induz a ser cúmplices do seu ato diabólico. O filme não julga, apenas coloca os personagens em cena, colocando Rosa e mesmo Bernardo numa situação bem diferente do casal que inspirou o cineasta. Coimbra acrescentou ao adultério outro elemento que não existia nas peças de Rodrigues: a ausência total de culpa. Os personagens não possuem conflitos internos, apenas reagem dando vazão a seus instintos. Afinal, o que prende Leandra àquele caso condenado a um final trágico? A sede de vingança, a impossibilidade de ser a outra, garante ao personagem uma característica sombria, perversa, que se insinua, quando ela se aproxima da esposa de Bernardo, Sylvia (Fabiula Nascimento), sem se revelar.

lobo3O LOBO ATRÁS DA PORTA
De Fernando Coimbra
[BRA, 2014 / Imagem Filmes]
Com Leandra Leal, Milhem Cortaz, Fabiula Nascimento

Nota: 8,5

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