“TODAS AS GUERRAS JAMAIS SERÃO JUSTIFICÁVEIS”
Premiada animação israelense retrata os horrores e traumas da Guerra do Líbano com muita poesia visual e temáticas de causar indignação
Por Eduardo Carli, de São Paulo
VALSA COM BASHIR
Ari Folman
[Vals im Bashir / Waltz With Bashir, IRA, FRA, ALE, 2009]
O horror em excesso não é digerível pela mente humana. Há certas situações em que chega-se perto de uma overdose de terror: e aí a mente exila para o inconsciente, distorce a percepção da realidade ou sai apertando o botão “delete” do nosso computador interno para evitar um doloroso confronto direto com o Mal em estado puro. Em Valsa a Bashir, premiada animação israelense, o diretor Ari Folman, ao invés da fuga ou da negação, escolhe encarar de frente seus fantasmas e traumas. Ele, que perdeu os pais em Auschwitz e depois lutou como soldado na Guerra do Líbano, em 1982, sai numa jornada interior em busca da verdade sobre as consequências psicológicas de tantos horrores, e acaba com isso analisando as feridas disso em toda uma nação.
O filme não tem nada de inofensivo: está aí para salgar as feridas e protestar contra os crimes de guerra desumanos cometidos naquela ocasião, quando os falangistas cristãos, em colaboração com o exército de Israel, mataram cerca de 3 mil pessoas nos campos de Sabra e Chantila (entre elas, muitas mulheres, velhos e crianças). E acerta direitinho no alvo. É um choque necessário: o sangue continua a jorrar em Jerusalém e redondezas, e um lembrete desse horror ainda irremediado, pela via cinematográfica, é muito mais que bem-vindo.
Talvez possamos perceber uma “tendência” a surgir no cinema moderno de realizar animações adultas, ambiciosas – o que é o caso do premiadíssimo Persépolis, adaptado da novela gráfica de Marjorie Satropi, ou de filmes de Richard Linklater como Walking Life e O Homem Duplo. Valsa Com Bashir, vencedor do Globo de Ouro e do César de Melhor Filme Estrangeiro, além de indicado ao Oscar da categoria, transcendeu muito o alcance já alcançado pelos filmes de animação e é pura e simplesmente um belíssimo “filme de guerra” (influenciado por clássicos como M.A.S.H, de Altman, e Ardil 22, de Mike Nichols): mistura de retrato histórico, manifesto político e protesto inflamado contra os horrores bélicos.
O diretor Ari Folman inspirou-se em sua experiência pessoal como soldado no Líbano, em 1982, acabando por gerar uma atormentada auto-biografia animada. No filme, ele é um sujeito com amnésia pós-traumática que sai em busca de pistas para iluminar seu próprio passado na guerra. Por isso, toda uma reflexão sobre a memória emoldura essa cruel reflexão sobre a crueldade humana: muitos soldados cometeram atrocidades tão terríveis que precisaram esconder seus atos nos porões mais profundos da memória. O inconsciente destes personagens está tão entulhado de conteúdos reprimidos que a verdade vem à tona em pesadelos asfixiantes e fragmentos de imagens caóticas.
Por ora, as lembranças da guerra retornam de forma intensamente poética e simbólica, onde se misturam anseios eróticos e quadros de destruição: é o caso da cena em que um soldado “navega” no corpo de uma mulher nua, que serve como a mais doce das canoas num mar turbulento, enquanto as bombas chovem sem dó sobre a embarcação militar. Em outros momentos, as memórias são tão carregadas de tragicidade que os personagens mal ousam confrontá-las e certamente prefeririam distorcê-las ou apagá-las. Não são poucos que dizem que tal “cena” ou acontecimento foi “apagado do HD”: a mente humana não suportaria guardar tamanhas sanguinolências e tamanha culpa.
De cenas assim o filme está repleto: soldados que usam tanques de guerra como se fossem brinquedinhos e que invadem a cidade inimiga passando por cima de carros, postes e muros, sem razão plausível a não ser um apetite de destruição; soldados que invadem o país inimigo atirando a esmo, indiferentes aos alvos, como se estivessem num videogame ou filme hollywoodiano; soldados que erram os tiros que deveriam atingir os “terroristas muçulmanos” e atingem pobres camponeses que estão sobre seus cavalos… e por aí vai. Mas o mais chocante de tudo, de fato, o filme reserva para sua fração final.
As crianças, mulheres e velhinhos que são massacrados nos campos de concentração são um espetáculo difícil de ver – ainda mais quando, nos segundos finais do filme, o diretor faz a escolha muito acertada de sair do mundo animado e lançar imagens reais do massacre. O pior de tudo é que, como acontecia na Alemanha nazista, ninguém parece assumir à culpa pelo acontecimento – tema abordado também no recente O Leitor, de Stephen Daldry. O ser humano parece ter uma técnica bem comum para se livrar da culpabilidade que provêm de atos horrendos que comete: diz o famoso “eu só estava cumprindo ordens!” É sempre a mesma história, de Auschwitz até as torturas que os americanos infligiram nas prisões no Iraque. Aqueles responsáveis por apertar o botão que soltava o gás letal que assassinava os judeus nas câmaras, ou aquele que apertava o botão que disparava a bomba atômica que cairia sobre Hiroshima, sempre poderiam dizer: “Este é meu trabalho; é isto que o meu chefe mandou fazer!” E o chefe culpa o seu chefe, que por sua vez culpa o seu chefe, e assim indefinidamente. A responsabilidade pode ser sempre imputada à pessoa que está acima na hierarquia de poder, como numa batata-quente vertical. Quem tem as mãos cheias de sangue, na verdade, é sempre o chefe. No fim das contas, milhares de pessoas com as mãos encharcadas com as tripas dos inimigos ainda procuram esconder de si mesmas o que cometeram com as técnicas psicológicas – racionalizações, negações, distorções – mais grotescas, quando o mais sincero seria simplesmente reconhecer: “fomos culpados”.
Perturbador e poético, reflexivo e melancólico, capaz de ao mesmo tempo realizar uma severa acusação e causar no espectador uma onda de indignação, Valsa Com Bashir é, mais do que uma bela animação: um memorável filme de guerra. Outra obra que faz ecoar, uma vez mais, o grito de lamento que Marlon Brando soltava em Apocalypse Now: “o Horror! O Horror!…”.
NOTA: 9,0
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