Seu Cavalcanti
Leo Lacca
BRA, 2024. 1h30, Documentário. Distribuição: Filmes da Mostra
Conheço um coração (…) em que perdura a saudade, presença dos ausentes.
Olavo Bilac
Do humor da vinheta à emoção do longa. O trabalho de Leo Lacca, que já é bem conhecido pelos que frequentam o “Janela Internacional de Cinema do Recife”, foi consagrado na sessão de estreia do filme Seu Cavalcanti.
O filme é um romance documental da visão do diretor sobre seu avô. Foram cerca de 20 anos registrando momentos, de ordinários a especiais, da vida de um homem que viria a falecer aos 96 anos de idade. Ao juntar esse enorme mosaico de forma sensivelmente significativa, Leo Lacca realiza uma das aspirações dos maiores artistas que é transitar ao sublime através do simples.
Esse feito, na minha opinião, acontece pela coragem de ser transparente. Tanto ao desbravar o labirinto da personalidade e dos desejos de um saudável idoso imerso no séc. 21, mas criado no interior de Pernambuco na primeira metade do séc. 20, quanto por, finalmente, imprimir elementos de seu inconfundível senso de humor mas que raramente se via em seus outros filmes.
A construção da trama prende a todos porque o personagem é bem dirigido e, como o diretor mesmo fala no filme, “fica muito à vontade diante da câmera”. Tanto que esquece que está sendo filmado. Pelo menos essa é a impressão que passa pela extrema espontaneidade com que contracena com a atriz Maeve Jinkings. Um capítulo à parte no filme que vou deixar em suspense para incentivar que futura plateia veja com seus próprios olhos.
Vale dizer, todavia, que a mulher, o feminino, ocupa lugar central no encaixe entre Seu Cavalcanti e seu mundo. De suas filhas às suas memórias do “tempo bom”, passando pelo seu anúncio carinhoso do voto na ex-presidente Dilma. Como esse protagonista é um sertanejo idoso e ex-comissário da polícia civil, tal revelação poderia pegar no contrapé muitas pessoas que subestimam a complexidade humana, espectadores que poderiam depreender nele um espectro político completamente diferente.
Quando olhamos bem de perto para alguém, e com bons olhos, olhos de um neto que se considera como um filho, e assim é considerado também pelo avô, temos a oportunidade de superar nossos julgamentos precipitados. Gravando comportamentos triviais durante tantos anos, ao exercitar essa atenção rara e amorosa, o diretor viu e, o mais difícil, conseguiu nos mostrar o quanto não enxergamos porque temos pressa. O desinteressante, se houver, sempre está no olhar. E que não há personagem simplório ou desinteressante. Especialmente quando esse olhar, lá no fundo, está travando uma luta contra a impermanência…
O personagem é sempre tão interessante quanto uma obra de arte. E é nisso que foram transformadas tantas horas de filmagens variadas com câmeras e circunstâncias diversas e adversas que, a princípio, não tinham para o diretor qualquer objetivo definido. Até que ele, como nós, percebemos que Seu Cavalcanti é um tipo de ser humano que não se fabrica mais no mundo atual. Um trabalhador disciplinado, orgulhoso da profissão e sua longue durée, talhado numa época onde só havia basicamente o mundo das decisões intuitivas sobre situações concretas e não mediatizadas, a bebida relaxante… e a fuga apenas pelos sonhos do sono.
O filme eterniza um avô muito querido e um modo de olhar para as pessoas com paciência, por cima dos julgamentos, enquanto elas ainda estão próximas de nós. Essa é a lição preciosa, depois de 20 anos olhando, que Leo deixa ao conseguir eternizar na grande arte um Seu Cavalcanti para chamar de seu.