O filme Salomé, do cineasta André Antônio, um dos integrantes do coletivo pernambucano Surto & Deslumbramento, acaba de conquistar sete premiações no 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, entre eles o troféu Candango de Melhor Longa-metragem pelo júri oficial da Mostra Competitiva e mais os prêmios de Melhor Roteiro (André Antônio), Melhor Trilha Sonora (Mateus Alves e Piero Bianchi), Melhor Direção de Arte (Maíra Mesquita), Melhor Atriz Coadjuvante (Renata Carvalho), Melhor Longa Júri Popular e Prêmio da Crítica da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).
Salomé conta a história de uma jovem modelo que retorna ao Recife para passar o Natal com sua família e se apaixona pelo seu vizinho, um rapaz envolvido em uma misteriosa seita em torno da princesa bíblica Salomé. Antes de Brasília, o filme fez sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Valdivia, Chile.
André Antonio integra o coletivo Surto & Delumbramento ao lado de Chico Lacerda, Fábio Ramalho e Rodrigo Almeida e já dirigiu o longa A Seita (2015) e o média-metragem Vênus de Nike (2021), um interessante experimento cinematográfico, uma marca do cineasta, cuja obra tem se destacado pela abordagem de temas, em geral marginalizados, de forma inteligente, poética e com apuro estético. Salomé tem a mesma pegada e sua originalidade conquistou os espectadores como afirmou o próprio realizador em Brasília: “A gente não pode considerar que o público quer sempre a mesma coisa, a mesma fórmula. O público quer coisa nova, coisa bafo”.
Em entrevista para a Revista O Grito!, André nos conta detalhes desse seu novo trabalho que assume abertamente a sua condição de filme queer, uma obra que quebra padrões preestabelecidos.
O Grito! – A história de Salomé está presente em várias manifestações artísticas, na pintura, literatura e teatro a exemplo da famosa peça escrita por Oscar Wilde. A personagem também ganhou a tela em várias ocasiões desde o cinema mudo. O que te levou a revisitar esse tema e personagem?
André – A figura de Salomé foi constantemente resgatada por todos esses artistas como ponto de partida para se falar de luxúria, desejo e perversão. E é seguindo essa mesma linha que me aproprio de Salomé. Tenho tido vontade de, no meu cinema, olhar de frente e sem moralismo para a minha sexualidade, meus tesões e certas práticas sexuais fetichistas que me atravessam. Ao invés de simplesmente fazer um roteiro realista abordando essa temática, eu quis propor esse gesto de ressuscitar essa imagem antiga, que está ali pairando no fundo da memória do nosso repertório. E, dessa forma, deslocar essa princesa arcaica que se veste de ouro para um cenário inusitado: a cidade do Recife das minhas experiências pessoais.
Salomé é uma figura bíblica do imaginário religioso/histórico universal envolvida em uma certa mística ligada a atos de sedução, adultério, vingança que acabou custando a vida (e a cabeça) do profeta João Batista. Como foi transpor essa trama para o mundo contemporâneo?
A imagem clássica de Salomé é essa mulher que declara amor para uma cabeça decepada e sangrenta que ela segura com as próprias mãos. É a própria imagem da fetichização e objetificação do outro que é amado: João Batista rejeita as investidas sedutoras de Salomé, mas isso não a impede de beijá-lo… de beijar sua cabeça, uma parte isolada, descontextualizada do seu corpo. Em tempos da proliferação da pornografia digital amadora, da paquera por aplicativos e da progressiva saída das práticas sadomasoquistas de espaços restritos e de difícil acesso, parece que essa imagem de Salomé se faz bastante pertinente para enxergarmos esses afetos e sensações no contemporâneo. No roteiro do filme, eu tentei resgatar Salomé como um fantasma, um espírito que pode voltar a ficar presente entre nós, bem na chave do cinema de horror clássico dos filmes B norte-americanos.
Como e quem é a Salomé de André Antônio?
Ela é Cecília, interpretada por Aura do Nascimento, grande artista visual e atriz de Recife. Cecília é uma modelo sofisticada, com um estilo descolado e uma personalidade irônica. É uma jovem mulher independente que faz o que quer com sua vida, apesar do entorno conservador e provinciano do qual ela veio e que marcou sua infância. Quando ela volta para o Recife, sua cidade-natal, e reencontra João, um vizinho de infância, e se apaixona por ele, ela vai ver nesse amor um novo ponto de desafio e de descoberta na sua vida. E vai encarar esse momento com toda a coragem e força que a caracterizam.
Além de um cuidado na construção do roteiro e da trama percebemos em seus filmes – o curta-metragem Canto de Outono, o longa A Seita e o média Vênus de Nike – uma elaboração estética autoral que valoriza a composição da imagem muito além dela ser apenas o elemento de suporte ao que está sendo contado. Há um refinamento dos cenários, das cores, da luz, dos figurinos e um diálogo com conceitos estéticos como o kitsch e o camp. Salomé segue esse mesmo estilo?
Segue sim. Novamente neste filme, eu não uso o momento da filmagem simplesmente para ilustrar o que estava escrito no roteiro de forma realista. Para mim, o momento da encenação é o momento da criação de um mundo novo, único e singular. Então um uso forte e expressivo da cor, fotografia, arte e figurino que não permite o espectador esquecer que aquilo que ele está vendo é uma imagem, traz para Salomé uma atmosfera fantasiosa, onírica, artificialista e, sem dúvida, em vários momentos, caricata.
Salomé tem sido classificado como uma obra que estaria enquadrado no que se costuma chamar de cinema queer. Você considera isso um elogio ou uma limitação?
Um elogio. Para mim um filme queer tem as mesmas características de uma pessoa queer: uma recusa a se enquadrar em rótulos pré-estabelecidos; uma complexidade que embaralha nossas certezas prévias estéticas e morais. Acredito que Salomé tem a ver com isso que se chama de “queer”. Mas isso não quer dizer que o filme esteja restrito a um nicho e tenha um público-alvo específico. Os afetos e atravessamentos queer interessam a todos e devem estar em diálogo e no mesmo espaço que todas as outras abordagens artísticas. A vitória do filme no Júri Popular do Festival de Brasília parece mostrar isso de forma direta.
No contexto atual do cinema feito no Brasil e em Pernambuco como você vê uma obra como Salomé? O que o filme oferece de novo, original e desafiador no momento presente?
Sinto que não se está falando sobre tesão, erotismo, desejo sexual e as aberturas subjetivas que essas emoções humanas desencadeiam numa pessoa. Normalmente nos filmes, o sexo começa e tem um corte, ou a câmera vira para outro canto. É uma coisa que passa, que não desencadeia dúvidas, descobertas, tensões, ambiguidades; que não marca um personagem. Em Salomé, o sexo e o tesão são algo centrais para a experiência subjetiva de Cecília. Também tento olhar de forma empática para o uso que ela faz, no filme, do loló, um entorpecente comum no Recife no carnaval e em festas underground. Sinto que isso faz de Salomé um filme dissonante num contexto em que vejo um certo moralismo ou apaziguamento estético para essas questões no cinema.
O projeto de Salomé já tem um bom tempo de existência, inclusive com premiação em editais antes da pandemia da Covid-19. Quais foram as maiores dificuldades para o filme finalmente ficar pronto?
Ganhamos o edital para filmar em 2018 e começamos a ensaiar. Mas em 2019, o governo Bolsonaro desmantelou a Ancine e cortou a liberação das verbas para os projetos. Só conseguimos reaver esse dinheiro em 2022 e filmar em janeiro de 2023. Foi um longo caminho de incertezas, mas fico feliz por termos conseguido finalizar o projeto, apesar do seu orçamento baixíssimo para um longa-metragem. Há uma dificuldade de projetos que abordem sexo e drogas da maneira como esse filme faz de captarem recursos e acharem caminhos de distribuição. Agradeço à equipe guerreira sem a qual o projeto não teria percorrido toda essa estrada tortuosa.
Conta um pouco pra gente como você formou a equipe de técnicos e artistas que trabalharam em Salomé e o que te chama mais atenção no trabalho por ela desenvolvido.
Desde A Seita, conto com a parceria de Dora Amorim, Julia Machado e Thais Vidal para produzirem meus projetos. São grandes amigas que arrasam muito porque conseguem achar caminhos de captação e realização para projetos como os meus, que tem as dificuldades e desafios específicos que discutimos acima. No caso de Aura do Nascimento, que interpreta a protagonista, nós já éramos amigas. Ela performou numa festa de techno que eu organizava no Recife e desde então fiquei apaixonado pelo trabalho dela. Uma vez, numa sessão de A Seita, ela veio me dizer que se enxergava naquele personagem do filme. Nesse momento me veio um clique e ela virou Salomé. Passei a escrever o roteiro pensando no rosto e no corpo dela. A equipe toda foi um grande acerto e me parece que a premiação de Brasília comprova isso. Os nomes foram chegando e sendo sugeridos ao longo da etapa de pré-produção do filme.
A grande premiação recebida no Festival de Brasília te surpreendeu?
Sim. Eu amo o filme e acredito na potência dele, mas esse ano Brasília teve uma seleção incrível, nessa retomada do Festival com direção artística de Eduardo Valente. Então a concorrência estava alta, vários filmes fortes, então foi uma grata e grande surpresa o reconhecimento que os júris concederam ao nosso filme.
Salomé ainda participará de outros festivais e já está programado para distribuição e exibição nas salas comerciais?
O filme agora fará, pelos próximos meses, o circuito de festivais. Depois, estreará comercialmente em salas de cinema, com distribuição da Vitrine Filmes. Ainda não temos a data fechada para isso, mas oportunamente iremos divulgar nas redes e para a imprensa.
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