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Travestis no Carnaval: A luta vã por um Baile dos Enxutos

Durante uma década, travestis tentaram realizar bailes, mas nunca conseguiram a liberação. Autoridades alegavam que iniciativa atentava contra a moral e os bons costumes e jornais assinavam embaixo

Esta reportagem faz parte da série “Antes do Orgulho“, que aborda a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife. Acompanhe as outras reportagens da série:

+ Bonecas não tem vez no Carnaval: duas décadas de intolerância nos jornais
+ Dois pesos e duas medidas: jornais celebram as “Virgens”
+ Nem o Rei Momo escapou da homofobia

Parte 1: + “Anormais” – a homofobia na crônica policial do Recife

Tolhidos e ameaçados por assumirem publicamente a sua orientação sexual, homossexuais e travestis, da maneira que era possível, buscavam alternativas para poder brincar o Carnaval sem serem constrangidos e hostilizados. Foi dessa necessidade que, durante toda a década de 1970, houve a tentativa de se fazer no Recife um baile carnavalesco exclusivo para bichas e travestis. A inspiração para a iniciativa eram os Bailes dos Enxutos, como os que eram realizados no Rio de Janeiro e São Paulo. 

O assunto ocupava espaço nos jornais e ressurgia todos os anos quando o Carnaval se aproximava. A primeira tentativa ocorreu em 1971 como noticiou o Jornal do Commercio na matéria Travestis pedem licença para o Baile das Bonecas. Nela se relata que um grupo de travestis, liderado por Juraci Pereira, estava se mobilizando para a realização do 1º Baile das Bonecas do Recife. A reportagem revelava que Pereira, conhecido também como Pereirinha, estava disposto a se encontrar com o Delegado de Costumes Mario Alencar, argumentando que no Rio e São Paulo esses bailes atraíam turistas e que empresários apoiavam a iniciativa. Habilmente, o grupo tentava sensibilizar as autoridades com os benefícios econômicos que o evento poderia proporcionar.

O discurso bem articulado de Pereira e a demonstração de uma mobilização organizada, inclusive com o apoio de advogados e fundamentada na Constituição, fez com que o assunto fosse tratado com mais seriedade e com os argumentos do líder das travestis sendo reproduzidos na íntegra. Pereira garantia que a festa alcançaria sucesso absoluto “porque todos nós estamos empenhados em oferecer um grande baile, a exemplo do que ocorre no Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Apelamos para a compreensão das autoridades a fim de que consintam na sua efetivação”. Ele pedia também apoio moral da Empresa Metropolitana de Turismo (EMETUR).

No entanto, para decepção dos solicitantes, o delegado de costumes Mario Alencar continuou irredutível e em matéria publicada no Diario de Pernambuco afirmou que no baile “os homossexuais não iriam se divertir, mas apenas dar evasão às frustrações, e isso poderá trazer problemas”. O grupo ainda contratou dois advogados e tentou reverter a decisão sob alegação de que o delegado feria o artigo 153, parágrafo 27, da Constituição Federal em vigor que versa sobre o direito a reunião, como relatou a outra reportagem, no mesmo jornal, “Bonecas vão a Justiça para realizar baile”. O Secretário de Segurança Pública Armando Samico, no entanto, alegando que o baile induziria a prática de maus costumes, apoiou a proibição.

Em 1973, Juraci Pereira voltou a anunciar a realização do I Baile dos Enxutos. Em matéria no Diario de Pernambuco, na qual Pereira é identificado como “um conhecido homossexual”, ele afirmou que a festa aconteceria em um casarão que ele teria alugado em Olinda. Nela, o líder das travestis fez mais um desabafo pela incompreensão do povo do Nordeste não apoiando o evento e alfinetou os conservadores e moralistas: “Chamam Recife a terceira capital do país, só se for em ignorância”.  Dias depois o jornal publicou nova matéria sobre o assunto, dessa vez informando que a polícia olindense ainda não havia localizado o casarão onde aconteceria o baile anunciado por Pereira que, mais uma vez, não se realizou.  

No ano seguinte, os jornais noticiaram uma nova tentativa de realização do Baile dos Enxutos, mas, antes mesmo de chegar qualquer pedido de licença, a Secretaria de Segurança Pública anunciou a proibição com o diretor do Departamento de Vigilância e Capturas Recomendadas, Jairo Pontes, afirmando que “o pernambucano não gosta de fricote e prefere brincar o carnaval com mulheres”. A matéria não diz quem estaria à frente do evento, mas fala da insatisfação da travesti Isabela que não teria gostado da interdição, reproduzindo o que ele teria dito a respeito: “Não suporto a polícia. Ela somente atrapalha a vida da gente, mas eu nem ligo porque os policiais são uns chatos (…) Quadradões!”. 

Como em anos anteriores as travestis tentaram acionar a justiça como informa matéria publicada três dias depois no Diario de Pernambuco.  Conforme o texto, quem teria tomado a iniciativa fora Isabela, procurando o advogado José Augusto Lins com o intuito de impetrar um mandado de segurança contra o delegado. Segundo o redator, Lins teria recusado por entender que “a polícia tem razão em coibir abusos de homossexuais”.

O caso ganhou novo capítulo com Isabela anunciando a fundação de um bloco que se chamaria “A Vingança das Bonecas” e sairia pelas ruas do centro do Recife na segunda-feira de carnaval, segundo notícia publicada no dia 19 de fevereiro. O texto trata Isabela de forma pejorativa dizendo ser ela uma boneca revoltada, mas, ao mesmo tempo, diz que 120 participantes já estariam inscritas para o desfile. 

Mas, como era de se esperar, as forças da repressão reagiram aos intentos de Isabela e o Delegado de Costumes João Francisco Cavalcanti foi aos jornais para dizer que não alimentaria a ousada pretensão da travesti porque era contra toda e qualquer manifestação de atentado ao pudor público. Ameaçando deter Isabela por ter chamado os policiais de “quadradões”, Cavalcanti frisava que “o que não presta deve ser evitado, ainda mais tratando-se de um mal que pode contagiar inocentes”. 

Como em anos anteriores as travestis tentaram acionar a justiça contra a proibição de realizarem o baile. Procuraram então o advogado José Augusto Lins com o intuito de impetrar um mandado de segurança. Lins, no entanto, teria recusado por entender que “a polícia tem razão em coibir abusos de homossexuais”.

Interior

Se no Recife, a polícia se mostrava irredutível, em cidades do interior de Pernambuco os homossexuais conseguiram burlar as normas, como observa o historiador Sandro José da Silva em sua dissertação de mestrado. Nela, ele apresenta dois exemplos bem significativos registrados no carnaval de 1975. O primeiro foi em Vitória de Santo Antão onde um grupo de travestis Brasas em Folia saía todos os anos pelas ruas do município da Zona da Mata com nove integrantes. 

Naquele ano, porém, o grupo resolveu homenagear os times do futebol pernambucano e isto foi considerado uma afronta, o que levou a polícia a proibir a saída do Brasas em Folia. As travestis não se curvaram, arrecadaram dinheiro junto a população, fizeram as fantasias e em vez de desfilarem em um jipe aberto como era costume, saíram caminhando, em meio aos foliões, empunhando as bandeiras dos times. E os policiais nada fizeram para impedir o desfile, como noticiou o Diario da Noite.

A animação e a aceitação popular também marcaram o desfile do bloco Bonecas do Asfalto em Caruaru na semana pré-carnavalesca. É o que deixa claro a cobertura da saída do grupo formado por onze travestis com nomes de estrelas do cinema e da televisão como Elke Maravilha, Sarita Montiel ou Doris Day. Na matéria “Apresentação das bonecas faz povo de Caruaru vibrar” o correspondente Antonio Miranda ressalta que “as onze bonecas ricamente fantasiadas se exibiram na passarela da Rua da Matriz, sob os aplausos de milhares de espectadores que superlotaram a principal artéria desta cidade” (…) ao som de tamborina, bombos e surdos as bonecas cantaram e requebraram a valer até a meia noite”. 

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Malsãos

Mas enquanto as notícias mostravam que os homossexuais e travestis começavam a conquistar espaço e ganhar apoio nas ruas e sem causar a desordem tão temida pelas forças de segurança, o pensamento conservador e preconceituoso ainda ressoava nos veículos de comunicação. No calor dos debates sobre a realização ou não de um Baile dos Enxutos, o Diario de Pernambuco publicou em fevereiro de 1974, na sua página de Opinião, editorial com o título “Os Travestidos”. 

Nele, o jornal não vê nenhum problema que travestis como os desfilantes do bloco Virgens do Bairro Novo saiam às ruas no Carnaval. Segundo o autor do texto, as virgens que “desfilaram no domingo passado, pareciam exatamente o que eram: rapazes e senhores vestidos de mulher e nada mais. Por mais graça e feminilidade que alguns apresentassem, nada neles levava a pensamentos malsãos”. Já o olhar sobre as travestis tinha outro contorno. Para o jornal o equívoco por parte das bonecas é pretenderem serem apenas travestis quando, na verdade, são algo mais. Onde há divertimento querem colocar o vício. Não podem, portanto, esperar complacência das autoridades”.

O texto complementa sua argumentação afirmando que o travesti “imita sem querer mudar de sexo, diverte-se, cria uma realidade nova para outrem sem perder a própria (…) O puro tipo travestido tanto é o homem a fingir de mulher, como essa a bancar o homem, sem que, num ou noutro caso, se ultrapasse o campo lúdico.  Ora, as bonecas não se satisfazem com tão pouco, querem passar para a vida real o que é fingimento”. 

Em 1979, houve nova tentativa de realização do baile e segundo noticiou o Diário da Noite a iniciativa partiu de “pessoas influentes, inclusive empresários, comerciantes e artistas plásticos”. O delegado de costumes Djair Lopes Diniz, no entanto, repetiu a cantilena de sempre, embora como os pedidos partiram de pessoas bem-posicionadas socialmente, em vez do discurso usual, ele jogou a responsabilidade de sua decisão para os seus antecessores: “Todas as pessoas que falaram comigo procuraram manter sigilo sobre sua identidade embora afirmassem ser pessoas da sociedade, pois dava para perceber durante a conversa. A todos eu disse que não podia autorizar a festa, pois ela vem sendo proibida por todos os secretários anteriores”. 

Antes do orgulho: a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife
Reportagem: Alexandre Figueirôa
Edição e revisão: Paulo Floro
Artes: Felipe Dário