Esta reportagem faz parte da série “Antes do Orgulho“, que aborda a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife. Acompanhe as outras reportagens da série:
+ Antes do Orgulho: Jornais do Recife só amenizaram discurso sobre gays e travestis no final dos anos 1970
+ Nas artes, aceitação e desconfiança com os homossexuais andavam lado a lado
Parte 1: + “Anormais” – a homofobia na crônica policial do Recife
Parte 2: + “Bonecas não têm vez no Carnaval”: duas décadas de hostilidades e intolerância na cobertura dos jornais
Parte 3: Entre o ódio e o medo
No início dos anos 1960 a palavra travesti era empregada para descrever tanto o ato de se vestir de modo a aparentar ser de outro sexo ou de outra condição, quanto, em sentido figurado, exprimir a condição de alguém que teria alterado a sua aparência ou modificado o seu caráter. Um político autoritário, por exemplo, que no período eleitoral se apresentasse como uma pessoa aberta que ouvia os outros, era apontado como um travesti de democrata. Já no teatro, não se identificava como travesti apenas um ator que desempenhasse um papel feminino. Se ele interpretasse um homem mais velho ou um personagem que exigia grandes mudanças de sua aparência dizia-se que ele tinha se apresentado em travesti.
Assim, aparentemente, a julgar pelas notícias publicadas sobre espetáculos teatrais em que homens apareciam fantasiados como mulheres, o termo travesti, nesta época, não carregava o valor pejorativo que foi sendo atribuído nos anos seguintes fora do circuito artístico. Na coluna Ribalta do Diario de Pernambuco, de novembro de 1961 ao noticiar a realização do “divertissiment” Tem Jararaca na Bomba no Teatro da Festa da Mocidade, o redator diz que entre os diversos números de dança e canto apresentados, o do “transformista Mendes foi muito aplaudido no travesti executado”.
No carnaval de 1966, na mesma Festa da Mocidade, foram realizados quatro bailes com orquestras de frevo e desfile de fantasias e, segundo matéria do Diario, “animados e tranquilos”: “os quatro bailes decorreram sem quaisquer anormalidades, com o desfile de ‘travesti’ e povo em geral, não havendo uma vez sequer, intervenção da polícia para acalmar ânimos exaltados. Vale aqui registrar, como mostramos na segunda reportagem desta série, que uma das justificativas das autoridades de segurança de proibir as travestis no carnaval era o tumulto que elas poderiam provocar, algo que, pelo visto, estava apenas na cabeça dessas autoridades.
Piu Piu
No início dos anos 1960, um dos atores mais prestigiados do teatro local era Elpídio Lima, conhecido como Piu-Piu. Ele integrava a companhia de comédias do ator Barreto Junior no Teatro Marrocos e criou, com o ator Aloisio Campelo, a sua própria companhia de teatro rebolado, a Trá-lá-lá. Elpídio Lima era muito conhecido pelos números de travesti que fazia. Em 26 de janeiro de 1964 a coluna Teatro, Quase Sempre do crítico Adeth Leite dedicou um grande espaço ao artista na matéria com título Festa artística do ator Elpído Lima, amanhã, no Teatro Marrocos escrito em letras garrafais.
Além de anunciar as atrações da festa, o texto contava um pouco da vida do ator e elogiava seu talento e habilidades: “Os que frequentam o Teatro Marrocos conhecem de sobra um moço modesto, sempre pronto a ajudar na medida de suas possibilidades a quantos o procurem: Elpídio Lima. Pernambucano de Catende, da zona do açúcar, iniciou suas atividades no comercio hoteleiro. É habilidoso e de tudo entende um pouco. Pinta, costura, canta, baila, interpreta e, nas horas vagas, atua no palco como travesti, imitando a Sarita Montiel, na ‘Violetera’. Assim é Elpídio Lima, um bom sujeito e amigo de todos”.
Uma coisa é certa, enquanto no Rio de Janeiro e São Paulo nos meados dos anos 1960 já existiam espetáculos só com travestis, aqui no Recife, apenas um ou outro artista, a exemplo de Piu Piu, apresentavam números isolados de travestismo. Eles aconteciam, sobretudo, no Teatro Marrocos, embora o mais comum lá fossem os números de strip-tease de mulheres. Em novembro de 1967, o ator-empresário Ítalo Cúrcio, tentou inovar o repertório do Marrocos e anunciou um espetáculo de teatro rebolado intitulado Alô Bonecas. Segundo matéria da coluna Teatro, Quase Sempre, o rebolado estava dividido em 24 quadros e o elenco era composto por atores, atrizes e as travestis Consuelo Bergman, Sofia Cardinalle, Sheila Latour, Camille Duval e Fugika Holliday.
Não é mulher!
E se na rua, as travestis eram perseguidas, arriscamos afirmar que, nos jornais, elas passaram a receber um melhor tratamento nas colunas sociais e na cobertura dos eventos teatrais. O olhar dos redatores, todavia, neste primeiro momento, era ambíguo. Por um lado, eles demonstravam não estarem desconfortáveis com as travestis nos palcos, mas por outro, eram movidos também pelo desejo de causar espanto nos leitores tratando as travestis como se fossem criaturas exóticas.
Uma foto-legenda publicada na primeira página do Diario em 14 de agosto de 1966 é emblemática neste sentido. Nela, vemos a foto de uma personagem em trajes de vedete com o título “Não É Mulher!” acompanhada de um texto cuja fonte é a agência de notícias Meridional: “Essa morena brasileira de curvas estonteantes é, no seu gênero, a maior atração de Paris na atualidade. É por um motivo muito simples: a morena da foto não é, apesar das aparências enganosas, uma mulher, como se pode pensar à primeira vista. Trata-se do ‘travesti’ brasileiro Daloá, integrante do famoso corpo de travestis do não menos famoso cabaré parisiense Le Carroussel”.
Alguns dias depois a travesti Daloá ganhou novos comentários na seção Boca de Cena, na coluna de Adeth Leite, com detalhamento de sua trajetória até chegar ao sucesso no Carroussel de Paris. O texto sobre Daloá tinha como gancho a foto publicada anteriormente e, pela construção da narrativa e expressões utilizadas, é um reflexo de como pessoas, mesmo próximas do meio artístico, lidavam com o tema. A ironia do autor se volta ao leitor: “Que houve ‘nego’ com água na boca na boca não resta a menor dúvida com a ‘morena’ do ‘cliché’ (foto). Todavia, lendo a legenda, descobriu que a moça era um barbado”.
O tratamento dispensado à travesti também contém uma pitada de sarcasmo. O colunista compara a transformação do bailarino Francisco Serpa na travesti Daloá a um enredo de “novela de televisão (imprópria para menores)”. Ele conta inclusive que foi graças ao uso de hormônios que Daloá “adquiriu as formas enganadoras (que vocês ficaram basbaques). Por fim ele diz que a travesti estaria querendo vir se apresentar no Brasil e que isso não seria impossível “porque agora há uma verdadeira onda de espetáculos do gênero, no Rio e em São Paulo com ‘Les Girls’ e outros ‘bichos’.
Les Girls
Curiosamente, em outubro do mesmo ano, a coluna anunciou a provável vinda ao Recife da comédia musical Les Girls com apresentações no Teatro Marrocos. Produzida pelo empresário Luiz Haroldo, com texto de Mario Meira Guimarães e música do jovem compositor João Roberto Kelly, Leite não poupou elogios ao espetáculo: “é um show de alta categoria, elogiado por toda imprensa carioca, tornando-se sucesso e atração em todo o país, tendo o público reconhecido o teatro de travestis como uma demonstração de arte, uma vez que o elenco é integrado de artistas consumados e comprovadamente eficazes”.
Les Girls estreou no início de novembro, todavia no Teatro de Santa Isabel. Adeth Leite abandonou o discurso ambíguo no tratamento das travestis e publicou diversas notas sobre o espetáculo. Na seção Boca de Cena apresentou minibiografias de todas as travestis que compunham o elenco da peça, contando um pouco da vida artística de cada uma delas, respeitando a escolha de algumas para omitir os seus nomes de batismo, pois as famílias desconheciam a profissão delas no momento.
A temporada de Le Girls correu tranquila até que manifestações contra o espetáculo começaram a surgir na cidade. Entre elas, os vereadores Wandekolk Wanderley e Moacir Lacerda, que fizeram pronunciamentos na Câmara Municipal acusando o espetáculo de imoral, e do dramaturgo Valdemar de Oliveira, pelo fato das apresentações serem no Teatro de Santa Isabel. O fato de as encenações ocorrerem no Santa Isabel incomodava os reacionários de plantão como o jornalista Severino Barbosa que, em sua coluna Retratos da Cidade, esbravejou que não admitia que “invertidos sexuais” atuassem na casa por onde passaram Joaquim Nabuco, Tobias Barreto e Castro Alves. Apoiando o vereador Wandekolk, Barbosa vociferava: “Basta de desmoralização! Que transformem o teatro em comitê político, vá lá. Mas, num galinheiro, nunca!”.
Em sua coluna Adeth Leite defendeu a peça em mais de uma ocasião, pois, segundo ele, em resposta ao legislativo municipal, “as bonecas não estão exibindo no Teatro da Praça da República demonstrações de sexo, mas arte, defendendo galhardamente um texto”. No artigo “Les Girls em Op Art”, publicado em 10 de novembro, o crítico afirmou que “nos primeiros dez minutos da encenação, de certo a plateia não acostumada a funções do gênero, interpretadas por travestis sente uma pequena reação. Daí por diante, o espectador participa realmente do espetáculo, sem qualquer vexame e contaminada do ‘sense of humour’ de cada sequência. Ao final, ele recomenda o espetáculo “porque os travestis que a interpretam estão à altura do rendimento artístico da encenação”.
A apresentação de Les Girls ganhou, porém, um novo capítulo conforme matéria publicada no dia 12 de novembro no Diario de Pernambuco noticiando que um grupo de rapazes havia tumultuado a sessão na noite anterior tentando impedir a representação e ameaçando danificar o teatro. O Departamento de Vigilância e unidades móveis da Secretária de Segurança Pública foram acionadas e algumas prisões foram efetuadas. Segundo a matéria, o líder dos manifestantes, Roberto Souza Leão Filho, de apenas 17 anos, fez declarações endossando as palavras do vereador Wandekolk Wanderley e pedindo a interrupção do espetáculo. Além de afirmar que não se devia permitir atos que afrontassem a moralidade social, o rapaz afirmou que se devia “pensar e refletir, pois a maioria dos homossexuais podem ser curados pela psicanálise ou injeções de hormônio quando as causas sejam de origem mental ou física”. A notícia informava que depois de ouvidos os jovens foram liberados.
Todavia, no dia 14 de novembro, com mais de dez representações, sempre com casa lotada e duas sessões aos sábados e domingos, uma nota do secretário de Educação e Cultura do Recife, professor Aderbal Galvão, anunciou a suspensão da temporada, faltando apenas dois dias para seu encerramento. Na nota, o secretário alegava ter adotado tal providência “visando preservar a tradição e o passado cívico do glorioso teatro”. A notícia foi publicada no Diario de Pernambuco relatando a intensa repercussão nos meios artísticos que estranharam a decisão.
Sem nomear os autores das declarações, a matéria afirmava que esses meios não julgavam imorais as apresentações e o “fato de o grupo Les Girls ser formado por travestis não deveria ser levado em conta numa justa apreciação da boa comédia” que contava “com absoluta aceitação do público”. A matéria lembrava ainda que devia se considerar que “travestis formam conjuntos artísticos em quase todos os grandes países do mundo, trabalhando livremente no setor teatral e merecendo aplausos do público quando oferecem bons espetáculos”.
Vivecas
Aqui é bom assinalar que, nas ruas, a violência e a perseguição às travestis recifenses continuavam e o cotidiano delas passava bem longe do glamour dos palcos. Em junho de 1970, o repórter Alberto Eça do Diario de Pernambuco noticiava a existência de um Comando de Caça aos Afeminados formado por “um grupo de rapazes cabeludos e tendo como meio de transporte um Fusca envenenado”. Segundo o repórter o grupo “passeia pelas ruas do Recife e quando encontra um desmunhecado, eles param descem e dão a maior surra no cara”. A matéria informa ainda que a última vítima dos delinquentes fora a travesti Verônica, cujo nome oficial era Cláudio Neves. Com o olho direito coberto com uma atadura, Eça conta que ela teria dito na delegacia: “hoje mesmo deixo o Recife. Nunca mais eu volto aqui. Ser travesti aqui no Nordeste dói muito”.
Assim, a acolhida que o Grupo Vivencial e seu diretor Guilherme Coelho deram às travestis, incorporando muitas delas nos espetáculos da trupe, sobretudo quando a casa noturna Vivencial Diversiones, no Complexo de Salgadinho, foi inaugurada, era uma ação valiosa para um grupo tão discriminado. Na verdade, havia dois conjuntos distintos dentro do grupo formado por moças e rapazes, a maior parte deles moradores da cidade de Olinda. Havia os atores que faziam números em travesti como Henrique Celibi, Roberto de França, João Andrade, Américo Barreto, entre outros, e as travestis full time, a exemplo de Luciana Luciene, cuja atuação estava limitada a números musicais e de dança. Mas, como todos os integrantes do grupo eram chamados de “vivecas”, nas matérias quando o termo era utilizado, deixava de ser importante se essas “vivecas” eram pessoas do gênero masculino, feminino ou travestis.
O crítico Valdi Coutinho sempre dava notas em sua coluna sobre os espetáculos do Vivencial e outras atividades nas quais o grupo estava envolvido. Se fazia alguma crítica era sempre visando o desempenho cênico como aconteceu quando comentou um prêmio que o Vivencial recebeu, em 1976, do Serviço Nacional do Teatro (SNT). No texto, Coutinho chamou a atenção do diretor Guilherme Coelho: “Agora, o Vivencial vai ter que mostrar que teatro mesmo não é só aquelas colagens superpostas, aqueles shows muito rebolativos, e as ‘vivecas’ vão ter que entrar mesmo é no texto, porque texto ainda é teatro”.
Valéria e Rogéria
Nos meados dos anos 1970 notas sobre travestis famosas do Sudeste começaram a aparecer nos jornais locais, entre elas as cariocas Valéria e Rogéria, que já eram famosas no Rio de Janeiro e vieram ao Recife em shows teatrais. Valéria apresentou no Nosso Teatro, em março de 1974, o espetáculo Valéria Total. A travesti visitou a redação do Diario de Pernambuco para divulgar o show onde ela dançava e cantava músicas de Caetano Veloso, Roberto Carlos, Vinicius de Morais, entre outros. Aos jornalistas, Valéria explicou que o espetáculo era um audiovisual com slides acompanhados de depoimentos de pessoas famosas sobre ela. Segundo a matéria, a artista tinha certeza de que o show ia ser bem aceito: “o pernambucano vai adorar porque vocês aqui dão muito valor ao que é bem bolado”.
Já Rogéria veio ao Recife em outubro de 1978, integrando o elenco do show Alta Rotatividade que estreou no Teatro do Parque. O espetáculo era escrito por Max Nunes, Haroldo Barbosa e Agildo Ribeiro, com a participação de Luís Pimentel e Maria Odete, e tinha um formato de show autobiográfico. Na primeira parte Rogéria era a entrevistada fazendo um depoimento de sua vida e, na segunda, o entrevistado era Agildo Ribeiro. As entrevistas eram entremeadas com números musicais e piadas. O show já estava em cartaz há 28 meses tendo percorrido com sucesso diversas capitais. O Diario de Pernambuco deu ampla divulgação com várias matérias publicadas e notas na coluna social de João Alberto.
Além disso, o jornal fez matéria de capa no caderno Viver, na verdade, um perfil de Rogéria com texto do jornalista Carlos Cavalcante. O título era duplo, com a frase “Astolfo Barbosa: aliás Rogéria” no alto da página, uma foto e, abaixo dela, entre aspas, uma frase dita por Rogéria: “A sociedade já me aceita”. A descrição de Rogéria feita pelo jornalista no decorrer da reportagem, registrando sua aparência e comportamento, entremeada com o relato da atriz sobre sua carreira, não deixa de ser surpreendente para um veículo que tratara homossexuais e travestis como marginais e doentes até há bem pouco tempo: “A beleza delicadíssima do seu perfil, a voluptuosidade de seu olhar, sua meiguice um tanto sensual e sua voz exuberante e firme fazem com que se tenha impressão de que Rogéria é, na verdade uma atraente mulher e não o mais famoso travesti brasileiro”.
Rogéria foi mais uma travesti brasileira a se apresentar no famoso Carroussel de Paris e integrou ainda o elenco do espetáculo de Carlos Machado que se apresentou em diversas cidades ao redor do mundo por cinco anos, de Nova York a cidade do Cairo. Nos parágrafos finais da reportagem, ela declara que sempre teve muito cuidado de se vestir de maneira sóbria e elegante e andar dentro da moda, desde que ela lhe deixasse cada vez mais feminina.
O texto se encerrava com as impressões de Rogéria sobre como a sociedade tratava as travestis: “Hoje em dia a nossa sociedade passou a aceitar melhor o homossexualismo, o travesti. A sociedade sabe muito bem que o que interessa é a inteligência da pessoa. Muito dos nossos mestres – Oscar Wilde por exemplo, eram homossexuais, e apesar disso tiveram importância extraordinária na cultura e na arte”. Garantindo que nunca teve problemas de discriminação, Rogéria afirmava que “as pessoas sempre souberam lhe respeitar, sempre procuraram me analisar apenas pelo lado profissional, isso porque minha vida particular sempre foi reservada e nunca admiti que ninguém se intrometesse nela”.
Consuelo
Viver na França e ser estrela do Carroussel de Paris passou a ser um passaporte para uma travesti ser aceita pela sociedade pernambucana e virar notícia de jornal sem ser nas páginas policiais. E foi assim que a travesti Consuelo, ao vir passar férias no Recife, depois de anos de ausência, chamou atenção dos colunistas sociais no final do ano de 1979. Consuelo nasceu no interior do estado e ainda jovem veio para o Recife onde aprendeu a arte da maquiagem com Múcio Catão, seu padrinho e protetor, depois foi morar no Rio de Janeiro e trabalhou como maquiadora na televisão e no teatro. De lá, seguindo os mesmos passos de Rogéria, Jane Di Castro, Roberta Vermont, entre outras, foi para a França onde fez sua transição e se tornou vedete dos famosos cabarés parisienses Carroussel de Paris e Chez Madame Arthur.
Os textos das notas sobre Consuelo caracterizam bem como a imprensa pernambucana reagia e lidava com a homossexualidade e o travestismo, perpassando suas impressões a partir de elementos que buscavam colocar a personagem noticiada no mesmo patamar social ou cultural das elites locais, forma de legitimar sua aceitação. No caso de Consuela destacavam nela o fato de ser loira, morar em Paris e ter uma boa vida financeira. O primeiro a registrar no Diario de Pernambuco a presença de Consuelo no Recife foi Valdi Coutinho na sua coluna de teatro em 16 de dezembro de 1979: “O travesti pernambucano Consuelo, no Recife. Após longos anos de sucesso na Europa, onde faz sucesso em várias ribaltas. Consuelo está passando suas férias no Recife, linda, loira e maravilhosa”.
Consuelo foi ao baile carnavalesco Carnaval em Preto & Branco, que tradicionalmente acontecia ainda no mês de dezembro no Cabanga Iate Clube, e sua presença chamou a atenção. Na coluna social de João Alberto de 17 de dezembro, na página especial com a cobertura completa do baile, o jornalista assinalou que “a sensação da noite acabou ficando por conta de Consuelo. Durante muitos anos morou aqui no Recife, atuando como travesti. Foi para a Europa, onde fez shows e acabou se submetendo a operação que o transformou em mulher. Com um corpo escultural (os seios amplos e firmes), usando roupa rendada, mostrando toda a plástica, fez sensação no camarote principal e circulando, como convidada, por muitos outros. Alta, tipo escandinavo, chamava a atenção de todos”.
A colunista Nelbe Chateaubriand também comentou em sua coluna Nelbe Informa, no dia 23 de dezembro, o sucesso de Consuelo. A nota, porém, tem um tom que vai do espanto a um quê de desconsideração, como se Consuelo fosse uma intrusa e fora bem recebida por causa do dinheiro que tinha: “O Baile Preto e Branco do Cabanga Iate Club aconteceu no Recife com o maior sucesso. O destaque foi o travesti Consuelo, que oriçou o sexo forte presente. Consuelo vive hoje em Paris e desembarcou em Recife cheia de dólares via árabe. Vendeu vison a industrial pernambucano ‘novo rico’ e comprou casa para uma tia velhinha que mora na Veneza brasileira. Money, money, money…”.
A passagem de Consuelo foi ainda registrada por Paulo Azevedo Chaves na sua coluna Poliedro, de 30 de dezembro de 1979, com o título Antonio Leal: de gay Recife para gay Paris. Vale observar que em todas as notícias sobre a travesti, as informações são bastante desencontradas, evidenciando que ninguém a entrevistou e, na verdade, escreveu e publicou o que ouviu se dizer sobre ela. Na versão de Chaves “Antonio Leal, de 33 anos, pernambucano, deixou esse estado ainda adolescente para se radicar em São Paulo. De lá ele foi para a Europa, onde se apresentou em boates da França, Alemanha, Suécia e Itália. Atualmente casada com um comerciante alemão, bela, rica e louríssima, Consuelo (ex-Antonio) mora na França, numa mansão, e também possui um apartamento no Recife, onde esteve recentemente para visitar parentes e amigos. Depois de uma temporada numa boate em São Paulo, Consuelo seguirá para Paris, onde já tem contrato para apresentações a partir de janeiro”.
A despeito dessas imprecisões e o olhar distorcido dos jornalistas, Consuelo tinha amigos nos jornais, a exemplo do colunista José de Souza Alencar (Alex), no Jornal do Commercio, e Orismar Rodrigues, no Diario de Pernambuco. Ao noticiarem as suas vindas para os carnavais no início dos anos 1980, quando ela quebrou muitos tabus vigentes, eles contribuíram para que a questão da homossexualidade fosse retratada com abordagens menos preconceituosas e as travestis ganhassem o mínimo de respeito.
Antes do orgulho: a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife
Reportagem: Alexandre Figueirôa
Edição e revisão: Paulo Floro
Artes: Felipe Dário