Transvia: Ninfomania para principiantes – o delírio vicioso de Trier

ninfomaniaca
Mulheres de Von Trier entendem que a perfeita vida burguesa é uma prisão. (Divulgação/California).
Charlotte Gainsbourg em Ninfomaníaca - Vol. 2: O desconforto foi real (Divulgação/California).
Charlotte Gainsbourg em Ninfomaníaca – Vol. 2: O desconforto foi real (Divulgação/California).

Ninfomania para principiantes – o delírio vicioso de Trier
A coluna Transvia, com crônicas sobre cinema e TV, está de volta!

Por Luiza Lusvarghi

Quando o lançamento de Ninfomaníaca, de Lars Von Trier, foi anunciado, como todos, fiquei curiosa. Não porque o autor anunciou o seu primeiro filme erótico, o que já seria razoável, mas pelo título. Alguém sabe dizer qual é o feminino de poeta? É poetisa, mas ninguém gosta, parece uma espécie de prêmio consolação. E o masculino de ninfomaníaca? Pode procurar, não existe. Segundo o Houaiss, ninfomania caracteriza “o desejo sexual anormalmente forte nas mulheres; furor uterino”. Homens que praticam sexo compulsivamente são pegadores, galinhas. E têm jeito.

Como se pode ver claramente em O Lobo de Wall Street, praticar sexo indiscriminadamente com mulheres só é problema se o camarada for um estelionatário, e não pagar suas contas em dia. Mas mulheres que fazem a mesma coisa, não roubam ninguém, nem tiram proveito financeiro disso, são certamente doentes, e praticamente incuráveis.

Ao ser encontrada, desfalecida, machucada, na rua, por Seligman (Stellan Skarsgård), que a socorre, Joe (Charlotte Gainsbourg) pede a ele que não chame ninguém, que está bem, e se levanta. Ela está pronta a encarar o seu destino, ela é culpada por tudo de mal que lhe acontece. Como a Geni de Chico Buarque, ela é feita pra cuspir e nada que faça de bom irá redimi-la. Só uma mulher em um milhão consegue escapar de sua sina sexual, avisa a terapeuta. O encontro é o ponto de partida para que Joe comece a contar sua historia a Seligman, em falso tom confessional, que lembra as fábulas, convertendo o diálogo numa autêntica sessão de psicanálise, o que não é de se estranhar num autor assumidamente depressivo como Trier.

Mulheres de Von Trier entendem que a perfeita vida burguesa é uma prisão. (Divulgação/California).
Mulheres de Von Trier entendem que a perfeita vida burguesa é uma prisão. (Divulgação/California).

O fato de Lars Von Trier tratar da compulsão sexual feminina de forma absolutamente prosaica, desglamurizada, numa narrativa que mais parece uma comédia da vida privada feita para a televisão, só acentua o caráter de anátema social dessa condição. Os dois volumes de Ninfomaníaca, do dinamarquês que brindou as telas com filmes polêmicos como O Anticristo e Melancolia, mostram uma faceta sua menos explorada – ele praticamente adota a linguagem dos cartoons para narrar a historia de Joe, sua anti-heroína, interpretada por Stacy Martin, na juventude, e por Charlotte Gainsbourg, na maturidade – e leva o espectador a rir em algumas passagens.

Nada menos erótico do que Ninfomaníaca, de Trier, o que só se acentua na cena em que a fantástica Uma Thurman interpreta um esposa traída e manipuladora, que segue o amante para flagrá-lo acompanhada dos filhos. A personagem de Uma Thurman, a Senhora H, é exceção na galeria do autor. As mulheres de Von Trier, da emblemática She (Charlotte Gainsbourg), de Anticristo (2009), passando pela noiva entediada de Melancolia, a Justine (Kirsten Dunst), e agora Joe, não querem nada com o papel tradicional da mulher, uma armadilha para quem ama a liberdade. Não é a toa que o Clube da Vulva, organizado por Joe e suas amigas, tem o slogan “mea vulva, mea máxima vulva”, e pratica atos terroristas estilhaçando vitrines com acessórios para jovens enamorados. Os conceitos de amor e casamento burgueses são prisões.

Sim, ela é má. Ninguém irá redimi-la. O roteiro explora a trajetória de Joe com todos os componentes da iniciação de um menino à sexualidade adulta – masturbação coletiva, quem transa mais em menos tempo, seduzir os mais velhos e experientes, tudo isso vale pontos. Só que, ao contrário do que seria esperado, essas cenas não passam uma conotação erótica, ao menos não aquela que estamos acostumados a ver projetadas em situações similares. O perfil andrógino de Charlote e de Stacy, magras e sem nenhuma curva, acentua o caráter asséptico com que o filme explora a sexualidade. Mas é a forma de narrar que dá o tom – didática, explicativa, porém sem o tom arrastado e esquemático de Dogville, com muitas externas, mas um ritmo ágil que não deixa margem a envolvimentos.

https://www.youtube.com/watch?v=zIdah5Sved0

O encontro entre Joe e Jerôme, seu grande amor (Shia LaBoeuf na juventude, e Michael Pass na maturidade) dá inicio a uma relação extremamente neurótica, em que ela tenta se adaptar, sem êxito, à vida de uma dona de casa de classe média, Uma frustração para quem foi em busca de um rendez vous, certamente, mas um colírio para quem conhece a obra do provocativo Lars Von Trier.

No segundo filme, Joe vai encarar novos desafios após sua primeira grande frustração amorosa. Jerôme, o homem a quem ela confiou a sua virgindade, da qual pretendia se livrar o mais rapidamente possível, e que reencontra anos depois, e por quem se apaixona, um clichê feminino em meio a tantas transgressões, não atende a seus anseios de uma parceria amorosa. Ela então vai se entregar aos prazeres mais perigosos, em busca de uma redenção, e de um gozo inatingível. Para quem não consegue assumir uma relação sexualmente responsável, o caminho é a perversão, e inclui a relação com vários parceiros e até práticas de bondage, o que, segundo Charlote, foram as mais difíceis de fazer. As atrizes, como se sabe, tiveram dublês, e usaram próteses, o tempo todo, mas as cordas e as posições, humilhantes, eram verdadeiras.

Joe não tem o menor interesse específico em nenhuma dessas variações, ela é movida pela sua dependência sexual e instintivamente se dirige a qualquer espaço que lhe ofereça essa possibilidade de satisfação, sem se importar com riscos. E a essa altura, somos levados a uma convenção dos filmes de Lars – na verdade, todas as suas protagonistas são compulsivas. Em Ninfomaníaca ele apenas elegeu uma variação sobre o mesmo tema. Elas mergulham em suas fantasias sem se importar com mais nada. Os homens, mesmo que a princípio aparentem algum interesse por elas e suas pulsões, são os primeiros a pular fora do barco.

NINFOMANÍACA – VOLUME 1
Lars Von Trier
[Nymphomaniac Vol. 1, DIN/BEL/FRA/ALE/ING, 2014 / California Filmes]
Com Stacy Martin, Charlotte Gainsbourg, Willam Dafoe, Stellan Skarsgård
Versão em DVD sairá no dia 29 de abril. O Blu-ray ainda não tem previsão de lançamento.

NINFOMANÍACA – VOLUME 2
Lars Von Trier
[Nymphomaniac Vol. 2, DIN/BEL/FRA/ALE/ING, 2014 / California Filmes]
Com Stacy Martin, Charlotte Gainsbourg, Willam Dafoe, Stellan Skarsgård
Em cartaz nos cinemas.

* Luisa Lusvarghi é escritora, jornalista e doutora em Comunicação pela ECA-USP. Escreve artigos e desenvolve pesquisas sobre TV e cinema. Veja outros posts dela aqui na revista.

Uma Thurman, uma exceção no rol de personagens de Trier (Divulgação)
Uma Thurman, uma exceção no rol de personagens de Trier (Divulgação)