ESTONTEANTES VULTOS DE BARULHO
Josh Homme, Dave Grohl e John Paul Jones unem suas forças num coletivo matador que já nasce clássico
Por Eduardo Carli de Moraes, crítico da Revista O Grito!, de São Paulo
THEM CROOKED VULTURES
Them Crooked Vultures
[Sony-BMG/Interscope, 2009]
A tentação de chamá-los de “supergrupo” é quase irresistível – por mais que o rótulo soe um tanto idiótico. O Them Crooked Vultures possui um line-up tão espetacular e apetitoso que não há como evitar que nossas expectativas atravessem o teto e adjetivos hiperbólicos se amontoem na descrição. Afinal de contas, o “dream team” formado pelo batera do Nirvana, o baixista do Led Zeppelin e o guitarrista do Queens Of The Stone Age e do Kyuss é de deixar qualquer roqueiro salivando e exigindo um resultado à altura da reputação destes mitos vivos que são Grohl, Jones e Homme.
Os céticos têm sua parcela de razão se preveem que este álbum é um embuste ou uma decepção: estivemos testemunhando, nestes últimos anos, uma carrada de “superbandas” atingindo resultados duvidosos. Muitas vezes nos fazendo suspeitar que ganaciosas intrigas corporativas, muito mais do que projetos artísticos consistentes, eram os verdadeiros móveis por trás dessas uniões. Chris Cornell, por exemplo, juntou-se a Tom Morello e sua cozinha, mas o Audioslave não se tornou exatamente um monstro mítico que juntasse o poder de fogo do Soundgarden e do Rage Against the Machine – o grupo se desfez depois de 3 bons álbuns (num caso em que ser “bom” é quase uma vergonha: esperava-se deles nada menos que “de-excelente-pra-cima”!), e a “ressaca” pós fim-de-banda pareceu deixar o pobre Cornell desnorteado, sem-noção e na pior fase de sua carreira (a julgar por seu medonho álbum solo mais recente – que saudades de Euphoria Morning e de Superunkown!).
Já Scott Weiland uniu esforços ao Slash, mas o Velvet Revolver ficou longe de ser tão explosivo quanto o Guns N Roses ou o Stone Temple Pilots na história do rock moderno. Jack White, por sua vez, também meteu-se em “projetos” grandiosos – o Racounteurs e o Dead Weather – sem conseguir algo que se assemelhasse ao que conquistou com o White Stripes. O que impediria, pois, o Them Crooked Vultures de se tornar mais um tiro no escuro, e um tanto fora do alvo, destinado a se tornar um “item menor” na discografia de seus membros? O que tornaria este coletivo algo maior que a soma de suas partes?
Há casos de “superbandas” que são montadas pelas grandes gravadoras e produtores, interessados num grande estouro comercial que lhes encha o rabo de verdinhas – e nada parece mais promissor que juntar no mesmo time músicos de bandas famosas, “raptando” para a nova banda os fãs somados das bandas-de-origem dos membros… Mas há “superbandas” que se juntam pois os artistas se admiram, apreciam os trabalhos uns dos outros e sentem um baita tesão com a idéia de criarem algo juntos.
Este segundo caso é claramente o que se aplica aos Crooked Vultures. O importante a frisar é aqui não estão caras jovens, deslumbrados com a fama, querendo fazer sucesso a qualquer preço. Todos os três já possuem pançudas contas bancárias, milhares de fãs devotos e reconhecimento artístico de sobra, o que possibilita que a banda tenha uma característica importantíssima: eles já estão muito além das mesquinharias do pop.
Os que são céticos em relação a supergrupos provavelmente terão suas dúvidas quanto ao Crooked Vultures destroçadas não por argumentos, mas pela sonzeira matadora que este debut carrega em seus dez mil decibéis de potência. Este álbum não precisa de um advogado que o defenda; um “play” faz o serviço muito bem, nos provando logo de cara que química, entusiasmo, criatividade e pegada não faltam a estes três músicos no topo de seu jogo.
Desmorona logo às primeiras músicas qualquer suspeita de que isto pudesse se tratar de um “projeto paralelo” (“cada uma que inventam!”, ralhou Josh numa entrevista quando deparou-se com este rótulo indigesto!). Nenhuma banda com 3 músicos deste naipe, pode ser rotulada como “projeto paralelo” por qualquer ser humano que se pretenda inteligente. E certamente não está sendo vista assim por nenhum de seus integrantes.
Dave Grohl e Josh Homme são amigos de longa data – tanto que já tocaram juntos em Songs For The Dead, álbum de 2002 do QOTSA. Os dois já tinham combinado faz tempo que trampariam juntos “assim que os calendários batessem”. Talvez seja preciso ser músico para entender o tesão quase sexual que Josh e Dave devem sentir ao pensar: “bloody hell, ‘tamos tocando com o cara do Led Zeppelin!” Mas o imenso prazer de estarem juntos, que transparece claramente no álbum, certamente não apaga a “responsa” que uma união destas carrega. E eles não fugiram dela, nem deixaram de honrá-la: este é certamente um dos discos de estreia mais responsa da década. E já nos faz começar a torcer para que não seja o único.
A receita
Que Josh Homme é um mago-das-guitarras dum punch fenomenal já sabemos faz tempo. Desde sua puberdade, quando mal tinha pêlos no saco mas já era dono do ampli mais diabólico do deserto, Homme vêm reinventando o instrumento como poucos músicos vivos. Mas neste álbum ele se supera: passeia por riffs, licks, hooks e solos com tamanha verve e feeling que mereceria o apelido de Capitão Gancho – como bem sabe quem foi “enganchado” por “New Fang”, o excelente primeiro single.
“Elephant” é mais mastodôntica que qualquer coisa que Jack White já tenha feito – e pesa, sozinha, toneladas mais do que o clássico álbum dos White Stripes. Quem curte o tal do “heavy metal inteligente” (andam dizendo que isso existe…), certamente irá se esbaldar com esta sonzeira que remete ao stoner-rock das antigas ao mesmo tempo que pisca os olhos para o Mastodon ou para o Converge, celebradas bandas do novo metal. Já “Scumbag Blues” nos leva para um chapado rolê pelo lado mais noisy dos anos 60, evocando o Cream e o Blue Cheer, com a tecladeira de Jones e a cantoria à la Jack Bruce de Homme tornando-a uma pepita digna de figurar no Disraeli Gears.
Inúmeras provas se encontram neste álbum matador de que Josh Homme não está interessado em desfilar seu virtuosismo à maneira de Steve Vai e Malmsteen. Homme é um músico econômico, conciso e preciso. O que não impede seu som de ser luxurioso e sofisticado, ao mesmo tempo robótico e dançante, pesado mas cheio de groove, e que vai transando com perfeita química com as linhas de Jones e a batera de Grohl. Por todo canto do álbum estão “ganchos” irresistíveis que certamente seriam aprovados por Jimmy Page, Angus Young ou Keith Richards – e que nós, reles mortais, também ouvimos com a plena empolgação de nossos pescoços head-bangantes e nossas air-guitars esporradas.
Ouçam o solo matador de “Warsaw”, que mais se assemelha a uma gaita harmônica que atravessa um pedal wah-wah, e tentem não pirar com a molecagem esperta de Homme. Eis um guitarrista que brilha pois aposta na simplicidade memorável muito mais do que na complexidade dispersiva. Centra foco em sequências breves de notas, que entram num loop na consciência do ouvinte, e que voltarão para assombrar suas insônias ou serem “assoviadas” no ponto de ônibus. O efeito é chapante, sublime, mortífero.
Até suspeito que, daqui a algumas décadas, quando os historiadores da guitarra olharem para trás tentando encontrar nesta década que se acaba os grandes inovadores e subversores das 6 cordas, talvez encontrem os melhores exemplos em Homme e Frusciante.
Como vocalista, Josh também mostra-se cada dia melhor e mais confiante: sua voz soa expressiva, agradável e cool. Quando o esporro se acalma, pode-se ouvir mais claramente toda a beleza do seu canto – como acontece em vários momentos da power-balada “Bandoliers”, onde ouvem-se claramente as lições que aprendeu com seu camarada Mark Lanegan. Decerto que falta a Josh o vozeirão rouco e sujo-de-uísque que o vocalista do Screaming Trees emprestou a algumas sublimes músicas do Queens, mas a imitação/homenagem que ele faz a Lanegan é digníssima. Até seu “ataque” vocal mostra-se capaz de ferocidades quase juvenis: como quando canta “Reptiles” ou, no maior gás, declama o refrão in-bloomesco de “Mind Eraser, No Chaser”.
As letras, também, estão excelentes – ainda que grande parte dos ouvintes “passe batido” por elas, sem entendê-las. Elas são um testemunho de que há pouquíssimos artistas modernos que levam o rock tão a sério. A “luxúria”, que o mundo careta sempre insistiu em considerar pecaminosa, que o cristianismo transformou em crime e os padres nos proibiram, é celebrada e transformada em musa. Este estilo-de-vida que entrega-se às “misérias da carne” e aos sujíssimos “prazeres dos sentidos”, como dizem os chatos-de-galocha de todos-os-tempos, é retirada do opróbrio e alçada a um trono. Para o Crooked Vultures, viver de verdade é abrir as portas da percepção, vastamente, ao tumultuoso e luxuriante universo das sensações. Não para se perder futilmente nelas – já que por trás de tudo há um profundo “sentimento de missão” que Josh canta faz tempo – como naquele seu verso clássico do Queens: “I want something good to die for to make it beautiful to live”.
Se há uma certa influência da lírica sombria característica do grunge, tanto no Queens quanto no Crooked Vultures, isto é sempre transcendido e superado: eles jamais estacionam nas sombras. Vejam, por exemplo, que há escondida nos meios de “Elephant” um momento de trevas quase soundgardenianas, que remetem a “Black Hole Sun” (ou mesmo a “Crown of Love”, do Arcade Fire). Mas é só para que no momento seguinte uma imensa onda afogue o desânimo com carradas de entusiasmo. Josh canta: “No, I can never stay melancholy for long / I’ve got the memory of your face” [ Não posso permanecer melancólico por muito tempo / Possuo a memória do teu rosto]. Mas que não fiquem imaginando que este disco é cheio de lirismo romântico – pelo contrário: é repleto de poesia críptica, contra-cultural, instigante e original. Ao fim desta música, Homme celebra sua própria mutabilidade eterna e conclui com o genial verso/corruptela: “I can never stay anything for long”.
Nem tudo é perfeito neste álbum genial, porém. Muitos ouvintes acharão “Interlude With Ludes” de um experimentalismo meio mala e torcerão para que o esporro rocker retorne logo. Já “Caligulove”, com seu jeito canhastrão, é uma das poucas músicas onde a lírica joshiana, sempre tão criativa e afiada, soa um pouco afeita à clichês: “I don’t need a reason, baby / Put your arms around me”, canta Josh, parecendo um Al Green sedento por um let’s-stay-together (ao menos por esta noite!).
É uma safadeza que remete a uma das músicas recentes mais charmosas do Queens: “I Wanna Make It Witchu” – na qual o “it” do “make it” não refere-se, certamente, a jogar xadrez ou dominó. Talvez sejam estas as piores música do disco, mas isto não as desqualifica – do mesmo modo que ser a pior música de Nevermind ou Back In Black é coisa digníssima, ser a pior música do Crooked Vultures é ainda ser uma bela coisa. Sem falar que músicas que se chamam “Interlude With Ludes” e “Caligulove” não tem a mínima necessidade de serem boas. Um título tão sensacional dispensa a música de quaisquer outros deveres!
“Can’t afford to lose my cool”, canta Josh em “Warsaw”. Mas o Crooked Vultures não conseguiria perder o cool nem se tentasse. Como ensinavam os Sonics, banda garageira dos anos 60, que Homme certamente deve ter curtido muito, estes caras consegue numa boa conquistar a virtude do roqueiro veterano: ir maintaining his cool. O que ouve-se em todos estes 66 minutos do debut dos Crooked Vultures é uma banda que não têm ansiedades neuróticas nem exibicionismos narcísicos – e que por isso soa desencanada e poderosa, original e aventureira, cheia de entusiasmo e frescor, na curtição suprema de um rock and roll fodástico. O resultado é um discaço estupendo, que emerge dos lodaçais do pop como um monstro do pântano, contendo uma intensidade rocker perfeita para encerrar a década com um esporro impecável.
NOTA: 9.0
Eduardo Carli de Moraes é jornalista