Foto: Guilherme Samora.
Outra Autobiografia
Rita Lee
Editora Globo, 192 páginas, R$ 54,42
Rita Lee sempre foi surpreendente. E, possivelmente, foi uma das raras pessoas a escrever seu próprio réquiem. Um réquiem irreverente, profundamente sincero, à sua semelhança e imagem. No livro Outra Autobiografia, lançado no dia 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia, e duas semanas após a sua morte, no dia 8, ela nos narra, em primeira pessoa, como se estivesse ali, sapeca e vivinha da silva, seus últimos dois anos de vida. Com uma quantidade de detalhes que só ela poderia nos dar. E com uma narrativa que só ela poderia tecer.
Apesar de ser uma leitura dura, pois Rita Lee não nos poupa dos dissabores que viveu desde o momento em que descobriu um câncer de 20cm no pulmão esquerdo, em 9 de abril de 2021, é também uma leitura que nos dá alento: a pessoa que vivenciou um tratamento massacrante, com idas e vindas constantes ao hospital, principalmente à quimioterapia, tinha no momento em que viu a morte, cara a cara, um nível de maturidade existencial e espiritual que a permitiu enfrentar com serenidade e coragem, a longínqua possibilidade de cura.
Ela também encarava, com realismo, o tamanho do desafio que iria viver. Principalmente porque o seu maior tormento foi ver se repetir, em si própria, a doença que levara a mãe, anos antes, em meio a imenso sofrimento e dor. O que aparentemente não aconteceu com a própria Rita, que enfrentou apenas a perda de cabelo durante a quimioterapia, mas que garantia não ter passado pelos enjoos nem dores típicas do câncer.
“Ontem, 23 de setembro de 2022, caiu a ficha de que vou passar os próximos anos por conta desse tratamento, e que ele volta e meia vai me obrigar a ir ao hospital para fazer exames de acompanhamento de três em três meses. Minha Pollyana se antena e joga o jogo do Contente, pois sempre existe um lado bom: vou me curar sim. Mas isso não significa que nunca mais algo vá reaparecer em outro PET Scan.”
Jair
No meio desse drama, que para alguns seria motivo de consternação, a artista mostra seu lado espirituoso, citando filmes, livros, desenhos animados e episódios de televisão. Lembra, ainda, o início da carreira, quando executivos de um selo musical queriam lhe convencer a transformar-se em uma cantora sexy, com roupinhas curtinhas, com as pernas à mostra. E, no final da reunião, foram confrontados com uma dedada e um palavrão por uma furiosa Rita, que manteria seu estilo e estouraria, sem apoio deles, um ano depois, com a banda Tutti Frutti.
Ela confessa, ainda, de forma irreverente, que batizou o tumor principal, de 20 cm, como Jair, o primeiro nome de Bolsonaro, presidente da República à época do seu tratamento. Para ele, aliás, a cantora destila críticas pesadas pela condução da pandemia da Covid durante todo o livro. Outro apelido revelado é da máscara que usava para fazer a quimio: Leonor, uma forma lúdica de lidar com a pesada terapia.
Mística, ligada a grupos como a Grande Fraternidade Branca e acreditando em seres intergaláticos, Rita Lee entregou a Deus, como se costuma dizer, a sua cura, e acreditava que aconteceria o melhor para sua existência física e espiritual. Duas vezes, durante a narrativa, relatou episódios que atribuiu a milagres: a saída de objetos estranhos pela boca e pelo ânus, que seriam, na sua visão, a expulsão do câncer do seu corpo por seres da Luz, termo que usa recorrentemente no livro.
“Na verdade, não posso nem me queixar do câncer. No fundo do meu ser agradeço as lições das dimensões de Luz e tento entender os porquês que estão ao meu redor”, revela Rita na página 118 do livro. Apesar disso, em momento nenhum, externa um discurso religioso ou de autoajuda. Apenas relata seus sentimentos, com a naturalidade que lhe era peculiar.
Apesar da fé, mesmo ao saber que havia conseguido eliminar as várias metástases que se espalharam pelo seu corpo, confessou que no fundo, no fundo, acreditava que a doença sempre voltaria. O que aconteceu rapidamente, antes mesmo que sua nova biografia se concretizasse.
Na verdade, após sua morte, em entrevista ao programa Fantástico, da TV Globo, o marido Roberto Carvalho revelou que, desde o começo, os prognósticos apontavam que não haveria volta para Rita. A doença era grave, irreversível e poderia lhe levar a qualquer momento.
Rita Lee e Covid
O mais impressionante desse lançamento, é que ela abre as portas da sua vida e da sua casa, nos últimos anos em um sítio próximo a São Paulo, sem nenhum pudor. Narra as crises de pânico, a extrema fragilidade física, o uso de fraldas geriátricas e de cadeiras de rodas, a amizade que vai criando com a enfermeira A – depois revelada como Anailde, a Ana – e a constatação que a velhice havia chegado sem avisar. “Quando me olho no espelho, estou mais morta que viva”.
O câncer foi descoberto após Rita Lee tomar a segunda dose da vacina contra a Covid, o que lhe causou uma reação fora do natural, com falta de ar e dores no lado esquerdo do corpo, como conta, que lhe parecia estar sendo esmagado por um caminhão. Foi durante uma dessas reações que ela descobriu, na remoção para um hospital paulista, que tinha 20 cm de massa cancerígena no pulmão.
A experiência das primeiras semanas no hospital, ainda atordoada pela descoberta, também é narrada com o estilo peculiar da artista. A tietagem das enfermeiras e outros pacientes, o tédio de passar os dias afastada da família e as crises de pânico constantes, que assustavam os que tinham de lidar com ela cotidianamente.
As crises, por sinal, permeiam todo o livro, mostrando que a síndrome de pânico era uma doença com a qual Rita lidava há décadas, o que já havia, anteriormente, sido especulado quando ela, repentinamente, mudou-se para o sítio e deixou de fazer shows, em 2012. A debilidade física – ela tinha apenas 37 quilos quando foi internada – e a total ausência de fome, o que demonstrava que o câncer vinha agindo silenciosamente há muito tempo, também são narrados com detalhes.
A saudade de grandes amigas que perdera recentemente, também é alvo de vários trechos: neles, Rita relembra bons momentos vividos com Gal Costa e Elza Soares – mortas no ano passado –, e até divulga a letra de uma música inédita que fez para Elza, “Rainha Africana”, que deverá ser lançada postumamente no próximo dia 23.
Gratidão
Apesar da tormenta pesada que permeava seus dias, Rita Lee também aproveita o livro para fazer uma prece de gratidão a todos os “presentes” que a vida lhe dera. Fica mais do que clara a união sólida e cheia de amor com o marido Roberto Carvalho, o Rob, e com os filhos Beto Lee, Antônio Lee e João Lee. “Meus homens”, como ela se gabava. Ela também transborda todo carinho pelos seus gatos e cachorro, e pelos demais animais da Terra; pelas suas plantas e pelos bons momentos que a vida lhe proporcionou.
O lançamento, portanto, traz uma narrativa calma, bem diferente da primeira Autobiografia, quando Rita trouxe à tona seus anos felizes e cheios de vida da infância e adolescência; a formação da carreira musical, com os Mutantes, e a separação da banda; o encontro e a paixão fulminante com Roberto Carvalho, seu amor por toda vida; mas onde também mostra certo amargor, ao confessar as idas e vindas no vício das drogas e do alcoolismo, dependências que ela só deixou com o nascimento da sua primeira neta.
Outra autobiografia, na verdade, parece mais um relato consciente de Rita Lee sobre sua morte próxima. Um presente otimista para os que sofreram com sua debilidade dos últimos anos, especialmente para a família. Afinal, ela mostra que mesmo diante do fim, da perenidade, era capaz de ver a vida com beleza e gratidão. Algo que só personalidades solares como ela poderiam nos deixar: um legado de pura fé, vida e amor. Que ela verbaliza:
“Dia seguinte da quimio, o corpo todo fica dolorido, tipo se eu tivesse lutado com Mike Tyson. A dor em si não é lá essas coisas, mas parece que meus músculos puxaram ferro. De repente, então, bate um segundo de felicidade de estar viva e esqueço que estou doente; é um jorro de luz que me envolve por segundo. Sinto não estar só, e com o rabo do olho dá para perceber a presença, mesmo invisível, da turma da Luz. Quando isso acontece, me sinto a pessoa mais feliz do mundo.”
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