“Galanga Livre” relaciona as agruras do trabalhador subjugado de hoje às lutas dos escravos por liberdade. A potência da rima é altíssima
Em seu primeiro disco de estúdio, o rapper paulista Rincon Sapiência fez um épico sobre o cotidiano do trabalhador e, em uma camada mais profunda, das agruras das pessoas negras em uma sociedade ainda segregada como o Brasil. E fez isso com um disco em que destaca elementos bem tradicionais do rap, com a figura do MC em primeiro plano.
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O nome “Galanga Livre” faz referência à lenda do escravo Galanga, que lutou por liberdade, peitou o sistema escravocrata e chegou a assassinar um senhor de engenho. É interessante ver esse percurso histórico traçado nas faixas do disco, o que relaciona a luta de Galanga e os milhões de escravos com as atuais condições de quem é pobre, preto e morador da periferia. “Quem vive na extrema pobreza têm em comum escuro na cor”, diz Rincon em “Ostentação à Pobreza”.
A figura de Galanga, o “nego fujão”, aparece em diversos momentos do disco, que é todo pontuado por interlúdios que conduzem a narrativa. O disco é ancorado no conto fictício “Ambrósio”, que conta a saga do escravo guerreiro e sua luta por liberdade. O rapper usa a história como uma matéria-prima para falar de questões como racismo, solidão e exploração com propriedade.
Nessa narrativa, além dos corre de trabalho, luta contra o preconceito, debates sobre temas urgentes, Rincon também encontra tempo para falar de amor, como nas ótimas “Moça Namoradeira”, que tem participação de Lia de Itamaracá, “A Noite é Nossa” e “Amor às Escuras”, que traz uma percussão que vem direto dos batuques do candomblé. Mas até quando trata de relacionamentos, o rapper relaciona a história de Galanga para falar do lugar do homem negro dentro de elementos oriundos da cultura afrodescendente (“O casal de pele escura pela Gamboa/curtindo amores às escuras/O tempo voa”).
A estética de Galanga Livre é muito baseada no rap dos anos 1970-início dos 80, o que inclui batidas mais secas, pouco samplers e uma rima, direta, de aliteração simples, econômica. É um MC em estado bruto, mas ainda assim bastante contemporâneo, com elementos que incluem guitarras oriundas do rock’n’roll, blues e percussão meio afrobeat. Com direção de William Magalhães, da Banda Black Rio, o álbum é rico em referências, mas bastante focado para destacar o valor da afrodescedência no hip hop feito no Brasil hoje.