O Grito Materia Carnaval 2023 Olinda 14.2.23 por Hannah Carvalho @hnnhcrvlhfotografia 20 ed

No carnaval deste ano, a volta dos que não foram

Durante o período pandêmico, sem Carnaval, as agremiações e os artistas que levam a festa para a rua passaram maus momentos. A expectativa com a volta da folia é grande

Fotos de Hannah Carvalho.

Nunca na nossa história os brasileiros ficaram dois anos seguidos sem Carnaval. Não há registros, qualquer que seja a época, de um período tão grande privados da felicidade inerente à folia de Momo. Nem mesmo durante outras pandemias, como a da gripe espanhola no início dos anos 1920, ou em período de guerras ficamos tanto tempo sem desfilar nas ruas.

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Os efeitos da Covid-19 foram devastadores na expressão mais legítima da nossa cultura popular. Com o Carnaval da retomada prestes a acontecer, os trabalhadores da cultura e as agremiações carnavalescas podem, enfim, voltar a exercer o seu ofício, pois, sem sombra de dúvida, a cadeia produtiva da cultura foi uma das mais diretamente atingidas pelas medidas de proteção contra a pandemia da Covid-19. Foram os primeiros a pararem e os últimos a voltarem. Isso tudo já é de conhecimento público. Mas já parou para pensar como será que essa classe passou esse período sem festa? Como foi se manter firme em um momento em que não havia qualquer perspectiva concreta de volta às ruas?

Músicos

Músico da prestigiada Orquestra do Maestro Óseas desde 2017, o trombonista Everton Júnior, 28 anos, foi um dos inúmeros profissionais arrastados pelos efeitos negativos da pandemia no setor cultural, sentindo na pele a ausência dos shows. “Foi um período trágico, a pior fase para um artista. Seja lá quem for da cadeia produtiva da música, todos sofreram. Do roadie ao primeiro trompetista de orquestra”, disse. 

“É uma profissão que já não é tão valorizada quanto deveria, né? Imagine nesse período. O que salvou um pouco foi a Lei Aldir Blanc, ainda que tenha demorado bastante”, afirmou Everton. Segundo o músico, o seu desespero só não foi maior porque mantém uma outra profissão em paralelo. “Eu mantenho uma carta na manga, porque eu tenho um filho de seis anos então não posso ficar à mercê. Sou pintor também. Pinto casas e apartamentos, foi isso que me ajudou na pandemia”.

Os músicos de orquestra são convidados pelo maestro para tocar e são pagos por cada evento. O Carnaval, portanto, é uma época de muitos shows e é fundamental para a saúde financeira do profissional durante o ano todo. E muitas vezes, por exemplo, quando a festa é patrocinada por algum edital público, o dinheiro só chega alguns meses depois.

“Estamos vivendo agora um recomeço. Porque muita gente pensou logo em vender seu instrumento para pagar as dívidas. Quantas vezes não pensei nisso nesses dois anos? Só que eu me lembrava que eu tenho um propósito de vida, que é com a música”

Everton Júnior, TROMPETISTA.

Durante os dias de quarentena, Everton viu muitos de seus amigos desistirem da carreira e venderem seus instrumentos diante das incertezas. “Estamos vivendo agora um recomeço. Porque muita gente pensou logo em vender seu instrumento para pagar as dívidas. Eu mesmo, quantas vezes não pensei nisso nesses dois anos? Só que eu me lembrava que eu tenho um propósito de vida, que é com a música”, refletiu o trombonista, que também toca na banda de reggae Capim Santo. 

Autodidata no instrumento, Everton, porém, usou o período inativo da pandemia para se capacitar nos estudos musicais. Entrou para o Conservatório Pernambucano de Música e no momento estuda para realizar o sonho de cursar Licenciatura em Música na Universidade Federal de Pernambuco. 

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O trombonista Everton Júnior lembra da pandemia: “Foi um período trágico, a pior fase para um artista”. (Foto: Hannah Carvalho/O Grito!)

Aderecistas

Quem já acompanhou qualquer bloco, clube ou troça nas ladeiras de Olinda ou nas ruas do Recife Antigo sabe que à frente da orquestra, meio que guiando a multidão está o passista com o estandarte. Considerado o coração da agremiação, o estandarte merece respeito e saudações. Existem artistas especializados na confecção desse símbolo carnavalesco e para eles os últimos dois anos também não foram nada fáceis. 

O artista plástico Fernando Oliveira, 63 anos, é um desses trabalhadores da cultura que de repente se viu sem poder exercer o seu ofício. “Para mim foram os piores anos que eu já tive na minha vida. Porque eu sou beneficiário do INSS, pago 900 reais de aluguel fora água, energia, alimentação e eu vivo das artes que faço”, disse Fernando. “Não passei fome, mas foi dureza. Até cesta básica recebi aqui das agremiações de Carnaval e da igreja. Estou me levantando, embora esse ano não tenha conseguido pegar nenhum estandarte para fazer”.

Fernando explicou que o desenvolvimento de um estandarte é um trabalho meticuloso e detalhista, envolve tempo, sensibilidade e inspiração para que fique bem-feito. “Um estandarte do jeito que eu faço, para ficar bom mesmo, leva um ano para ser feito. Geralmente, eu faço um por ano. Agora um simples eu faço em até dois meses e faço arte de todo o preço de acordo com o bolso do cliente”, detalhou. Segundo o artista plástico existem estandartes de preços desde R$ 2.500,00 até R$ 20.000,00 

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O artista olindense Claudionor Filgueiras: sem auxílio após muitas tentativas. (Hannah Carvalho/O Grito!)

Com a ausência da folia, o artista acabou fazendo o que pode para se manter. “Me virei fazendo costura, ajustando roupa. Fiz o que deu, porque nem artesanato conseguia fazer”, relembrou. Fernando começou cedo no ofício, desde seus 14 anos ele já ajudava na confecção de fantasias da Pitombeira dos Quatro Cantos ainda na década de 70. Como a maioria dos trabalhadores envolvidos no Carnaval, aprendeu a fazer estandarte observando os mais antigos na produção. Ao longo desses anos, já fez estandartes para blocos tradicionais como a própria Pitombeira, o Cariri, as Virgens do Bairro Novo, A Porca e muitos outros.

Para os passistas que carregam o estandarte durante todo o percurso a situação foi semelhante. Maviael Gomes é porta-estandarte de grupos tradicionais como Pitombeira, Ceroula e Cariri e durante o período pandêmico se viu em uma situação delicada. “Foi muito difícil porque não tivemos ajuda. A Prefeitura disse que nós não tínhamos direito a auxílio. O que recebemos mesmo foi ajuda das agremiações”, recordou. 

“Nós ficamos a ver navios. Porque, é até engraçado, se a gente não sair, não vai ter carnaval. Nós que colocamos o bloco na rua, seguramos a bandeira com o nome da agremiação e mesmo assim não tivemos suporte, nenhum direito. Mas somos nós que fazemos o carnaval, né?”, desabafou sobre a falta de atenção das autoridades públicas com os profissionais do carnaval durante a pandemia. 

O artista olindense Claudionor Filgueiras confecciona estandartes há mais de 25 anos e corroborou a visão de Maviael. “Eu não entendo como funciona essa política de distribuição de auxílio e verbas tanto do governo quanto da prefeitura, porque quem mais precisa não recebeu de jeito nenhum. Eu tentei muito, vários programas e em nenhum tive sucesso. Vários colegas meus passaram por isso também”, garantiu Claudionor que já fez estandartes para o Elefante, Pitombeira, Ceroula e vários outros.

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O cortejo do Cariri foi o primeiro evento de rua a ocorrer pós-pandemia, em Olinda. (Hannah Carvalho).

Agremiações

Em meio ao susto inicial, naquele que seria o seu carnaval comemorativo aos 100 anos de história, a Troça Carnavalesca Cariri Olindense teve que se desdobrar para lidar com a ausência do período carnavalesco em data tão marcante. “Nós nos adaptamos a nova realidade do confinamento, então procuramos realizar atividades no plano virtual, ativando nossas redes sociais”, explicou Hilton Santana, um dos sobrinhos do fundador e diretor do bloco. Segundo Hilton foram feitas lives para gerar recursos aos trabalhadores da agremiação e também cestas básicas foram doadas durante o período de quarentena.

Com o passar do tempo e com as liberações de alguns eventos ainda com restrições que foram acontecendo ao longo de 2021, o Cariri se manteve aquecido. Mas o retorno das atividades do clube olindense só aconteceu para valer a partir do dia 07 de maio de 2022. “Era um evento que estava programado para ser em um ambiente fechado, restrito, na sede. Seria uma ação para arrecadar recursos para os trabalhadores e, por coincidência, naquela mesma semana o Governo do Estado promulgou o decreto da liberação de eventos abertos”, relembrou.

O cortejo do Cariri foi o primeiro evento de rua realizado por uma agremiação desde o começo da pandemia. E quem foi garante que se tratou de uma catarse com o povo chegando a chorar de emoção. “Foi um deslumbre! Contratamos 25 músicos no dia e de repente tinham 35 tocando porque a galera queria participar. Foi lindo”, disse Santana emocionado.

Se a gente não sair, não vai ter carnaval. Nós que colocamos o bloco na rua, seguramos a bandeira com o nome da agremiação e mesmo assim não tivemos suporte, nenhum direito.

Maviael Gomes, porta-estandarte.

Alegria da volta 

Quem vivenciou esses dois últimos anos dentro das agremiações sabe bem quão difícil foi. Cláudia Maria é diretora de figurino da Cariri e relembra sem saudades do período pandêmico. “Foi horrível. Pra quem é carnavalesco e gosta da agitação, da casa cheia, foi um momento terrível. Pra quem é acostumado a estar no agito, na festa, com blocos, com maracatu, escola de samba foi muito complicado mesmo”, disse.

 Cláudia desfilou com a Cariri pela primeira vez em 1971.  O interesse por fantasias surgiu desde esse começo quando se encantou com as passistas desfilando. Ela não vê a hora de voltar a brincar o Carnaval. “Esse ano eu estou muito eufórica porque nunca fiquei tanto tempo sem brincar, e naquela agonia de não pode fazer isso ou aquilo da pandemia. Então agora, com 62 anos, é como se fosse o meu primeiro carnaval de novo”, comparou.  

Um misto de sensações boas e ruins foi o que viveu os integrantes do Clube Carnavalesco Misto Elefante de Olinda nesse período pandêmico. Em meio a tristeza da ausência da folia, algumas alegrias fizeram parte da trajetória do clube de 2020 para cá. “A começar pelo título de patrimônio vivo de Pernambuco que ganhamos em 2020 mesmo”, disse o diretor do Elefante Natan Nigro. 

Apesar disso, Natan reconheceu que para uma determinada classe de profissionais os últimos dois anos foram de dificuldades. “O clube passou por momentos bem delicados porque não teve carnaval e porque tem uma rede de pessoas que produzem o carnaval e algumas delas dependem da atividade na festa, então nós tivemos a consciência de que para essas pessoas a situação era muito mais difícil”, resumiu.

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Alguns estandartes levam até um ano pra ficarem prontos. (Hannah Carvalho)

“Pra gente o mais importante foi ter em mente o que podíamos fazer como agremiação. Somos um grupo que está nesse processo de construção do carnaval, então tínhamos que apoiar as pessoas que fazem o carnaval de Olinda e necessitavam de ajuda. A costureira que faz as fantasias do Elefante, o porta-estandarte, os músicos; tivemos campanha de doação de alimentos para esses trabalhadores”, relembrou. 

“Até para a comunidade no entorno do sítio histórico da cidade também fizemos campanha porque muita gente aproveita a época do carnaval pra vender comida, cerveja, fazer uma grana extra”. Em 2021, o bloco fez uma série de lives com objetivo de manter contato com o público.

Já na Pitombeira dos Quatro Cantos, uma das maiores preocupações dos últimos dois anos foi com o patrimônio da agremiação. “Foi um período de muita preocupação com a sede, pois ela ficou parada por dois anos sem qualquer manutenção. Nesses casarões antigos de Olinda sempre acontece alguma coisa e não tínhamos receita para alguma eventualidade”, disse o presidente da troça Hermes Neto. Segundo ele, a maior dificuldade dessa retomada foi ter um ponto de partida depois de tanto tempo parado e sem receita.

O Clube Carnavalesco Homem da Meia-Noite manteve durante esses dois anos todos os ritos do período festivo, mas sem desfilar. De acordo com o presidente da agremiação Luiz Adolpho, o equilíbrio foi a grande marca do bloco na pandemia. “Essa palavra foi chave naquele momento. Equilíbrio para tentar manter viva a imagem do grupo que é tão forte, então para isso nós lançamos as camisas nos dois anos, tivemos homenageado, roupa nova do calunga, fizemos lives, tivemos um documentário dos 90 anos do bloco e nossas lojas funcionaram quando possível”, afirmou. 

A diretora do Bloco da Saudade, Maria Cláudia Cabral, resume bem o que significa a festa de 2023 para os blocos. “É saber que vamos poder estar de volta fazendo o que nós sempre fizemos, mantendo a tradição, e poder estar junto com os nossos reverenciando a festa na rua”, resumiu. “Você sabe que para as agremiações tudo é feito para colocar o povo na rua. As pessoas ficam ansiosas e imagine você esse tempo todo sem saber o que fazer, se ia fazer, como ia retornar e agora, enfim conseguimos. O sentimento é coletivo e geral de todos os blocos, que são formados por pessoas, famílias, amigos que dão a vida por essa festa”, concluiu. 

Para quem pensa que o Carnaval é apenas uma brincadeira de quatro dias. Deve ter ciência agora que a folia é coisa séria.

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