A 10ª edição do Recifest – o Festival de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero – teve seu segundo dia de atividades na última terça-feira (17), promovendo um encontro transpofágico com a atriz, diretora e dramaturga Renata Carvalho – que estrelou filmes exibidos no primeiro dia do evento – durante o dia, no auditório do Sindicato dos Bancários; e estreando mais duas mostras competitivas de curtas-metragens à noite, no Teatro do Parque.
A cobertura do Recifest
_ Primeiro dia traz retrospectiva de Meujaela Gonzaga
Como de praxe, as apresentadoras Sophia Williams e Ruby Nox antecederam as exibições com muito humor, carisma e interatividade, que seriam até mais bem recebidas pelo público se as sessões não estivessem iniciando com tanto atraso – que pesa mais na hora da saída do que na chegada. A ausência de celeridade do evento pareceu até sutilmente comunicada na fala do vereador Ivan Moraes (PSOL), ao dizer que falaria rápido “pois queremos ver os filmes”.
Mas esse detalhe passou longe de ser o ponto principal de sua participação no palco do Teatro do Parque. Moraes comentou brevemente sobre a recém aprovada Lei Roberta Nascimento, de autoria da vereadora Liana Cirne (PT), que institui 24 de Junho como o Dia Municipal de Enfrentamento ao Transfeminicídio, além de outras políticas públicas necessárias ainda em desenvolvimento voltadas para a população LGBQIA+.
É válido ressaltar que o Recifest é mais do que apenas uma mostra de cinema, mas um evento de conscientização e ação efetiva em prol da comunidade, especialmente àqueles em situação de risco e marginalização, em parceria com organizações como a Gestos – ONG em defesa dos direitos dos soropositivos e proteção de vulneráveis às ISTs – e colaborando com a Ocupação Tâmara Ferreira.
Apagadas as luzes do Teatro, inicia-se a exibição da primeira mostra da noite, batizada “A Mão de Deus”. Aos que não tiveram tempo ou curiosidade de folhear o livreto entregue ao público em frente a sala, pode ter passado batido a inspiração para os nomes das sessões, retiradas de texto assinado pela curadoria do evento -composta pelo realizador e psicanalista Ander Beça, o artista Chico Ludermir, e a curadora Mariana Souza – e que adiantam as temáticas prestes a serem abordadas na telona.
“A mão de deus escolhe a forma de cada corpo e o modela pacientemente até que se torna sua e imagem e semelhança. Ao ganhar forma, o senhor da matéria, como um oleiro, decide se o trabalho acabou ou não. Quem é o senhor da minha matéria?”, elaboram os curadores, em passagem extraída do texto introdutório da competição. Não por acaso, a mostra é focada na vivência de pessoas trans, na relação entre seu corpo e identidade.
E nenhum outro exemplo encaixa tão bem na metáfora proposta quanto o documentário em 16mm Transviar (2021), dirigido por Maíra Tristão, que nos transporta à cidade de Vitória do Espírito Santo, onde conhecemos a cultura das paneleiras de barro aos olhos de Carla da Victoria, mulher trans filha, neta e bisneta de paneleiras, que não apenas modela suas panelas através do barro dos manguezais, mas o próprio corpo, rompendo noções tradicionalistas para poder integrá-las.
A mutabilidade das noções de corpo e identidade também são retratadas no documentário A Vida Secreta de Delly (2022), de Marlom Meirelles. A obra acompanha as várias personas de Dell – ou Delly – Batista que enfrentou uma vida de tragédia, abuso, opressão, preconceito e abandono antes de se tornar protagonista entre os catadores de Nova Vila Claudete, no Cabo de Santo Agostinho. O filme é inteiramente focado na figura do protagonista enquanto conta toda sua história, desde o abandono de sua mãe, passando pelo atentado contra a sua vida, até o momento em que se reergue – mas sempre sentindo a necessidade de se transformar para pertencer e conquistar afeto ou respeito.
Outras duas produções que dialogam dentro da mostra são os L’Esquisse (2023), de Tomas Cali, e Travessias (2023), de Ana Graziela Aguiar – ambos documentários em duas línguas, em dois países. O primeiro conta uma história de amor e adaptação entre o diretor e Linda Demorrir, depois de se conhecerem numa aula de desenho na França, ele com lápis e papel em mãos, ela como modelo-vivo, os dois trans e imigrantes. Já no segundo, a documentarista brasileira relata suas reflexões poéticas e repensa preconceitos ao acompanhar a transição do cubano Justin, em processo de mudança corporal e luta contra a disforia de gênero.
A mostra contou ainda com o psicodélico e experimental autorretrato Tese de Mestrado em História (2023), realizado por Emi, brincando com efeitos visuais e equipamentos datados – ou vintage – aliados a fotografias antigas e caos. A realização relata uma infância de alguém que já não existe, lembranças não bem-vindas a serem corrompidas, queimadas.
Fogo, Desejo, Risco
As horas mais tardes da noite foram dedicadas à terceira mostra competitiva do festival, “Manter a Chama, Enfrentar o Risco”. A relação entre nomes e temáticas não é exatamente sutil, mas vale o retorno à poética introdução da curadoria:
“Fogo e desejo figuram sempre num mesmo imaginário. Aquilo que, por não poder ser contido, assusta. O caráter inflamável do desejo se manifesta quando as coisas fazem sentido no corpo. Dominar o medo exige queimar”.
Os três últimos filmes apresentados são todos sobre a escancarada dualidade da paixão queer, preta, imigrante: a entrega pelo desejo em troca da abdicação da preservação. Aceso (2023), de Elissa de Brito, desenvolve o relacionamento entre a brasileira Luisa e a húngara Zsófia, cuja conexão precisa resistir a preconceitos e diferenças. No pernambucano De Noite, Na Cama (2023), comandado por Malu Rizzo, o público conhece o íntimo de um casal através das conversas antes de adormecerem, dos chamegos às brigas, ciúmes e incertezas.
Já o documentário baiano Procura-se Bixas Pretas (2022), de Vinícius Eliziário, traz testes de elenco para dois personagens: Tigrezza e Danrley. Cada um dos atores realiza o mesmo monólogo, cada um de seu jeito, e incorporam suas próprias vivências, relações de afeto e noções de identidade ao método.
As demais obras da mostra, por sua vez, são menos sobre o desejo carnal, mas sobre o tal ‘domínio do medo’ citado pela passagem introdutória, sobre a manifestação incontrolável do corpo e do ser.
No sergipano Anarriê (2023), de Neto Astério, Renan e Alana ensaiam para o grande dia da grande e tradicional quadrilha junina da cidade. Já em Quinze Primaveras (2022), dirigido por Leão Neto, Ravena coleciona registros de aniversários de 15 anos, ainda sonhando pelo holofote de debutante que nunca teve. Em Um Transe de Dez Milésimos de Segundo (2021), Jamile Cazumba encanta com um ritual-recital-performático sobre memória, corpo e existência.
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