As mostras competitivas do Recifest – Festival de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero – estão quase chegando ao fim. Após as exibições da última quarta-feira (18), no Teatro do Parque, apenas um bloco dos curtas selecionados ainda não chegou à telona, sendo a atração principal do penúltimo dia do evento.
A cobertura do Recifest
_ Primeiro dia traz retrospectiva de Meujaela Gonzaga
_ Segunda noite foca nas relações entre corpo e identidade
Seguindo o conceito estabelecido para a edição, a noite de filmes trouxe dois temas distintos ligados pela vivência queer, o primeiro sendo as dores, abdicações e decisões comuns à comunidade LGBQIA+, retratados pela mostra “Escolha três coisas para perder. Pense bem”; e o segundo, sobre a conexão de gênero e sexualidade com a natureza, o ecossistema, o estado de transformação, e em prol da defesa de direitos ambientais.
Comparado ao primeiro dia de evento, a sensação ao apagar as luzes da sala passou longe de “aconchego”, afinal nem todas as experiências da existência queer conseguem encontrar uma faísca de otimismo – a maioria delas, na verdade.
A exibição abre com o pesado O Fim da Imagem (2022), de Gil Baroni, que acompanha as horas seguintes de duas crianças que cometeram um atentado na escola – uma escolha ousada, visto a rara associação entre jovens LGBTQIA+ ou parte de qualquer outra minoria social e política com este tipo de crime, mesmo estas sendo alguns dos alvos mais frequentes de bullying e outros tipos de agressões. Na obra, as crianças publicam as imagens de seu feito na internet, apenas para decidir apagá-las alguns minutos depois, intoxicados com a repercussão digital. Mas já era tarde demais – pelo menos, para voltar à vida que conheciam. Apesar de angustiante, Baroni passa bem sua mensagem sobre os extremismos provocados pelas redes sociais, o arrependimento ao furar a bolha e voltar ao mundo real, e o poder das escolhas nas mãos de quem não sabe o peso das consequências.
Decisões tomadas desconsiderando seus efeitos também é tema do pernambucano Milkshake (2023), de Rosa Fernanda. Conhecemos Luna, uma mulher trans lutando com transtornos de imagem e disforia de gênero, que toma seu milkshake diet rosa religiosamente todos os dias em busca do corpo que deseja. Ansiosa por efeitos mais céleres, Rosa muda os hormônios que toma frequentemente, na esperança de algum que traga resultados imediatos. Ao decidir misturá-los, é jogada em um surto da subcultura travesti, repleta de memes psicodélicos.
Tanto em Rosa Neon (2022), de Tiago Tereza, quanto em Arapuca (2023), de Joel Caetano, atravessamos as mágoas, insatisfações e ausência de resoluções – mesmo carregadas de amor – entre pessoas queer e seus afetos hetero-cisnormativos. No primeiro, que conta com uma inusitada participação da cantora Marina Sena, vemos um relacionamento entre uma mulher trans e um homem cis se desmantelar aos poucos, separados por uma barreira invisível porém turva de incompreensão e toxicidade.
O segundo utiliza-se do horror para retratar a vida de Marcos ao voltar à casa da família para cuidar de seu pai, em estágios avançados de uma doença degenerativa que o impede de enxergar a realidade com clareza, tornando-o hostil e incomunicável. Marcos queria usar a oportunidade para desvendar a conturbada relação entre eles, mas vai sendo consumido pela convivência e retorno de memórias antigas.
O único documentário desta mostra ficou para o final – Deus Não Deixa (2022), de Marçal Viana, registra a crise identitária e a jornada de autoconhecimento de Miguel, que durante os primeiros anos da juventude se apresentava como Mika Sapequinha, e hoje se entende como um homem evangélico em rejeição de seus desejos, sentimentos e relações, seja por medo da falta de aceitação dentro da própria comunidade, ou pelas noções de moralidade da sua fé.
Ecossistema queer
O clima pesado abriu espaço para a penúltima mostra competitiva do Recifest: “Os Quatro Elementos e a Quinta-Essência”, encabeçada pelo experimental As Inesquecíveis (2023), dirigido por Rafaelly “La Conga Rosa”. Com apenas sete minutos de duração, uma das obras mais curtas do festival, a vídeo-performance associa pessoas trans à onça pintada, numa celebração de vida, força e esplendor.
O caráter experimental, inclusive, dominou a mostra, como no distópico Lalabis (2023), de Noá Bonoba, que utiliza de metáforas e alegorias para esboçar uma narrativa fantástica e mitológica pouco palpável, carregando uma crítica à opressão de corpos e ideias, aliado a um discurso poético recitado para além da quarta-parede; e em Ar Quente (2023), realizado pelo coletivo “Unides contra a colonização: muitos olhos, um só coração”, com performances anticapitalistas em prol de justiça ambiental.
A única produção que seguiu uma linha narrativa tradicional foi Nem o Mar tem Tanta Água (2022), de Mayara Valentim, acompanhando o cotidiano da jovem Babi, militante que divide uma cama com dois amigos numa horta e vive intensamente, sem tempo para dar passos para trás. Meio às ações de protesto, se reconecta com um antigo caso que traz um pouco mais de tranquilidade.
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