De meninas e bonecas
Acredito que todos devem ter lembrança de algum presente de infância: pode ter sido aquele pião, o jogo de bolas de gude, uma boneca de trapo, um carrinho de madeira, uma bola de pelotão, não importa muito o quê. Fato nisso é que não fui muito dada a infâncias convencionais, daquelas em que as meninas brincam de casinha e os meninos de corre-corre. Gostava mais é dos jogos de esconde-esconde, de cemitério (ou queimada, tal como se prefira dizer), barra-bandeira, bete (ou taco), patins, bicicleta ou qualquer coisa que me vencesse uma energia irrecuperável que eu me dispunha a desprender em meio a todo aquele fuzuê de menina irrequieta e – também e contraditoriamente – contemplativa.
Primeiras decepções de infância : o mundo tal qual é
Aos seis anos de idade, tive duas decepções. Vamos começar pela primeira delas: descobrir que Papai Noel não existia. Foi assim; de forma seca e direta. Na noite de Natal recebemos os presentes diretamente das mãos de nossos responsáveis. Éramos quatro crianças frustradas entre cinco e sete anos (eu, meu irmão e um casal de primos) em meio a uma sala que ostentava uma tímida árvore de Natal e uma ceia conforme requer a ocasião.
Tal qual não foi nossa decepção ao ver, descendo as escadas de nossa residência à beira da Praça da República, em Belém, nossas mães carregando pacotes. O que deveria ser aquilo? Presentes? Que bom! Adoramos presentes, mas onde está Papai Noel? Puxa, da primeira vez em que tivemos permissão para ficarmos acordados até tarde (e criança adora insistir em ficar acordada até mais tarde para receber em mãos o tão sonhado presente de Papai Noel!) e descobrir, assim, que Papai Noel não existia!
Não que não esperássemos um presente, mas a minha imagem de Papai Noel estava necessariamente mais ligada a um conceito etéreo de alguém que avaliaria o meu desempenho disciplinar ao longo do ano e, após tal julgamento, definiria se eu havia sido uma menina boa o suficiente que merecesse uma recompensa. Era mais um conceito idílico e pueril em torno de uma figura mística, quase como um Deus onipresente que seria abalizado a me julgar (e não é essa a imagem de Divindade que trazemos dentro de nós? Algo superior e intocável capaz de nos compreender e julgar nossas falhas e desenganos?).
Pois foi assim. Papai Noel (e minha primeira imagem de Divindade, ou ao menos, seu primeiro Porta-estandarte), não existia. Deixaria de existir para todo o sempre dentro de mim, que mais tarde descobriria que se tratava nada mais do que uma estratégia de marketing bem sucedida. Tristes esses dias de globalização e supremacia americana em benefício do consumismo; esse mal que aflige a população mundial desde a instalação definitiva do capitalismo tardio…
Minha segunda decepção foi quase tão grave quanto a primeira: como estávamos em duas meninas (eu e minha prima), ganhamos o mesmo presente: cada uma recebeu uma Barbie em Roupa de Gala. O ano era 1982 e a boneca, sucesso absoluto há pelo menos 20 anos no exterior, era artigo recém-lançado no Brasil, coisa fina, desse tipo de presente que a gente leva à escola e as amiguinhas dizem “Noooooooossa, mas você ganhou uma Barbie?!?!?!?!”
Eu odeio a Barbie (nada contra a empresa que a produz, entendam-me, por favor!) Mas esse conceito estúpido e slogan machista imputado à eterna diva das bonecas “Tudo o que você quer ser”, não me convencia nem quando eu media 1m de altura! Eu não gostava de bonecas! Eu queria jogos interativos, um estojo de pintar, um livro do Sítio do Pica-pau Amarelo, qualquer coisa…mas uma boneca? Em roupa de gala?
Crescidinha que já estou, explico: Eu nunca quis ser a Barbie. A Barbie, nada mais seria do que a representante das loiras altas, de longas pernas, esguias e com seios que apontam para o firmamento, ricas, peruas e que tem dois namorados (Bob e Ken). Não que eu seja feminista, mas, sinceramente, alguém conhece alguma mulher que gostaria de ter sido a Barbie um dia? Acredito que hajam algumas por aí (por que não? Viva a democracia!) Mas não é o meu caso. Eu odeio a Barbie. Ponto final.
Homens e mulheres definitivamente não se entenderão jamais
A cada dez amigos que conto nos dedos, nove são homens. Não que eu tenha algo contra mulheres, mas confesso que invejo aquele corporativismo masculino inerente à classe. Mulheres se vestem para mulheres e se despem para homens. Homens não discutem a relação, não tem Tensão Pré Menstrual (TPM), enfim, os homens estão dominando essa barbárie chamada mundo há um bom decênio de milênio de anos e as mulheres – que botam eles no mundo – não fizeram muita coisa para mudar a situação. Por que será?
Em se tratando de relações masculinas/ femininas ao longo da infância, sofri duplamente: se de um lado era excluída das brincadeiras de casinha por não ser muito afeita àquela coisa monótona e previsível de “vamos dar comida ao filhinho, banho no filhinho, surra no filhinho”; tornava-me duplamente excluída porque os meninos – estes mesmos que se tornaram meus amigos depois de adultos – excluíam-me também devido àquele corporativismo essencial à relação entre eles.
Eu não pertencia a clube qualquer: as portas do clube de meninos e meninas estavam fechadas para mim que, coitada, apeguei-me ao que me restava – a literatura infantil e todo aquele universo que lhe é próprio e peculiar que me transportava para outras dimensões e me afastava da convivência salutar com crianças cruéis, sinceras e voluntariosas como todas elas podem ter sido um dia. Fazer o quê? A paixão pela literatura acompanhou-me pelo resto do tempo e passou de hobby a emprego (jornalismo) e depois paixão de novo (literatura).
Hoje agradeço aos meninos e meninas que me excluíram das brincadeiras de casinha e jogos de barra-bandeira ou vídeo game. Viva a literatura!
Barbie e seus dois namorados
Da socialização na infância
Mas eu me tornei um “ser social” necessário. A minha socialização deu-se no momento em que descobriram ambos os clubes mirins (feminino e masculino) que eu era ótima “trepadeira”. Subia em árvores tão bem quanto o melhor menino qualificado para a função, que era dois anos mais velho do que eu. E para quem conhece Belém e seus pés de suculentos jambos grandiosamente roxos, saberia da importância de tal qualificação.
Assim sendo, saía das aulas eternamente acompanhada. “Você vai pegar jambos hoje?” Vou sim, porque não? E subia nos jambeiros que mediam algo equivalente a um prédio de três andares enquanto juntava, aos pés da árvore, um apunhado de meninos e meninas que pediam, com seus olhinhos obedientes e servis, que eu lhes jogasse os maiores, os mais bonitos, os mais gostosos.
E eu? Lógico que sentava-me confortavelmente nos galhos mais altos e saboreava os melhores! Castigo bem empregado para os anos de exclusão social aos quais haviam me condenado todas aquelas crianças sadicamente cruéis e interesseiras. Hahahaha! Ri melhor quem ri por último…
Da redenção da Barbie
Cinco anos após a minha primeira Barbie, consegui obter um 10 em uma prova de matemática. Tal feito não seria mais do que obrigação de qualquer aluno ou filho. O problema é que o dez era em uma prova de matemática aplicada no colégio militar (essa tortura deliciosamente saudosa à qual fui obrigada durante a minha infância) e meu pai resolveu me presentear como recompensa ao meu esforço sobre-humano (naquele ano apenas dois alunos haviam obtido tal nota no temido exame).
Adivinhem o que meu querido pai me deu?
Uma Barbie!
Em nova versão de roupa de gala, rubro carmim, com saias rodadas e sapatos dourados! (Claro que nem poderia ser diferente! A Barbie sempre foi metida a perua fashion).
Confesso que o presente me comoveu. Não por ser uma boneca (eu não gostava de bonecas). Muito menos porque era uma Barbie (eu odeio a Barbie!). Mas porque era a primeira vez em que meu pai saía às rua para me comprar um presente. Era um presente sincero, de pai para filha e não de “mãe-que-compra-boneca-para-o-pai-presentear-a-filha”, sabe?
E, nesse dia, a boneca serviu de elo de ligação entre mim e meu pai, num gesto honesto e sincero de amizade e devoção. Foi a redenção da Barbie.
A Barbie Pós-Moderna
No Natal de 2002, meu amigo Superpowerpuff Bicha (Lógico, porque uma mulher de verdade tem – pelo menos – um grande amigo gay de estimação) me deu uma terceira Barbie. Uma dessas Barbie Malibu vai à praia. Minha primeira iniciativa – ainda durante o jantar – foi tosar sua peruca loira, pintar olheiras sob seus olhos irresistivelmente azuis e desenhar váaarias tatuagens em seu corpo delineado. De castigo, coloquei a moça pra morar de ponta-cabeça num dos galhos de um pé de filus que eu mantive na minha sala por longos anos e que foi motel de passarinhos mais afoitos. Foi batizada com o nome de Thabhitha Jullianna (assim mesmo, com todos estes ‘h’, ‘l’, ‘n’ e por aí vai)
Com pena da coitada, meu amigo Camarada Púshkin resolveu me presentear com Max Steel para faxer companhia a ela. Pára tudo! O Max Steel tinha uma tatuagem prateada no braço. Lowgico que tinha que ser gay. Foi batizado com o nome de “Jhorge Mauritzio” e passou a habitar galhos da mesma árvore da Barbie. Meu irmão – designer e fotógrafo – passou a fotografar os dois – o que ele considerava uma “obra pós-moderna”.
A Fuga de Thabhitha e Jhorge
Assim que eu me mudei para a Vieira Souto de Santo Amaro (leia-se ‘Rua da Aurora’), coloquei o pé de ficus – com Thabhitha e Jhorge – no hall de entrada do meu apartamento.
Adivinha? Dois dias depois os galhos do pé de ficus estavam desabitados.
Não sem quem foi o mentor da fuga ou os comparsas que levaram os bonecos.
Eu fiz minha catarse em relação à Barbie.
E ela fugiu com o Max Steel gay.
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