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A história com H maiúsculo também pode ser escrita em quadrinhos. Num momento da política brasileira em que são questionados ou relativizados referenciais históricos mal resolvidos, em especial a ditadura civil-militar iniciada em 1964, é ainda mais fundamental perceber que os autores de HQs estão atentos à importância do passado para refletir o presente – não apenas como forma de detectar um ciclo de equívocos, mas também para reconfigurar as formas de olhar sob novos pontos de vista.
É difícil detectar onde o quadrinho brasileiro começou a refletir a história do país, mas é bastante comum que autores apontem a própria origem da linguagem como base de tudo. A primeira HQ brasileira, As Aventuras de Nhô Quim ou Impressões de uma Viagem à Côrte, de Angelo Agostini e publicada na revista Vida Fluminense em janeiro de 1869, seria, para pesquisadores e quadrinhistas ouvidos pela Plaf, já uma primeira abordagem histórica brasileira, por ser uma espécie de instantâneo de determinado presente ali retratado pelo autor. “Me parece que o quadrinho brasileiro tem tendência maior a registrar o presente histórico do que o passado, provavelmente devido a nossa tradição de cartuns e charges na imprensa”, diz o pesquisador e tradutor Érico Assis. “Desde Agostini temos, no formato, o registro histórico das opiniões que circulam em cada época na política e nos costumes”.
Para Marcelo D’Salete, autor de obras importantes na proposição de novas formas de pensar o passado brasileiro, o ítalo-brasileiro Angelo Agostini foi pioneiro também na representação do negro, inclusive por sua posição abolicionista – o que não o isentou de contradições e estereótipos impregnados na sociedade da época. “Ele tinha charges com algumas visões sobre a população negra que seriam hoje classificadas, no mínimo, como discriminatórias e racistas”, comenta D’Salete, que percebe no trabalho de Agostini o princípio de uma preocupação histórica dos artistas de HQs – em sua maioria, ao menos até a metade do século 20, preponderantemente formada por criadores que continuamente davam seu ponto de vista sobre estratos sociais e raciais que não os deles mesmos, ampliando certa homogeneidade de olhar.
Por décadas, para além da crônica do presente, o quadrinho brasileiro pouco se preocupou em retratar a história do país. Se aconteceu, como na série Grandes Figuras em Quadrinhos, da Ebal, eram narrativas de exaltação, nacionalismo e hagiografia (a começar pelo próprio título da coleção). Entre 1957 e 1961, foram 20 edições trazendo biografias de nomes como Marechal Rondon, Oswaldo Cruz, Castro Alves, D. Pedro II, Tiradentes e Getúlio Vargas, entre vários outros. Chamava atenção a arte, muitas vezes a cargo de Nico Rosso, um dos mais expressivos desenhistas do quadrinho brasileiro e parceiro de Rubens Francisco Luchetti numa sequência de gibis de horror da editora Taika em 1970.
Para José Aguiar, desenhista de Ato 5 (lançada em 2009 com roteiro de André Diniz e que retrata a ditadura pós-1968), foi somente a partir de alguns trabalhos de Luís Gê, Laerte e André Toral que se começou um olhar mais crítico sobre episódios reais da historiografia brasileira, fosse no formato de crônica, de narrativas mais longas ou do humor. “Passamos a primeira década deste século nos acostumando a nos redescobrir, a nos detestar, amar e a nos expor. Nos últimos anos, parecemos ter perdido a vergonha de repensar quem somos”, acredita Aguiar.
Em seu premiado A Infância do Brasil (2017), ganhador do HQ Mix e finalista no Jabuti, José Aguiar faz justamente o movimento de tentar compreender determinados aspectos da narrativa histórica brasileira nunca antes olhados com atenção. “Metaforicamente, acho que estamos vivendo o fim da infância do nosso país. Não por ele ter mais de 500 anos, mas por estarmos tropeçando em nossas próprias pernas para tentar andar sozinhos. Sempre estivemos sob a tutela de Portugal e seus credores, ou sob a tutela dos militares, e agora que podemos escolher nós mesmos para onde ir, estamos errando muito para tentar seguir andando”, descreve o autor.
Em A Infância do Brasil, Aguiar, com consultoria da historiadora Cláudia Regina Moreira, ficcionaliza personagens infantis que atravessam a história brasileira desde a colonização no século XVI. Em tramas separadas, ele aborda sexismo, abusos, excesso de trabalho, racismo, discriminação social e consumismo, temas variados que ele aponta como exemplares para se chegar ao atual estado das coisas – e ainda distantes de acabar.
A imaginação tem sido fundamental para o resgate de parte da história brasileira secularmente invisibilizada. Por sua liberdade estética, as HQs não precisam ser necessariamente “documentais” na apresentação de um recorte histórico. Como negar o impacto sem precedentes de Angola Janga (2017), uma das representações mais marcantes já feitas do Quilombo de Palmares? Seu autor, Marcelo D’Salete, se baseou em profundas pesquisas, mas criou essencialmente uma grande narrativa ficcional. “O autor trabalha com registros mínimos dos quilombos e quilombolas e convence o leitor quanto a uma história possível do que se passou nos séculos 17 e 18”, destaca Érico Assis. “Me parece que os trabalhos dele respondem a uma nova configuração dos estudos históricos no Brasil – e até colaboram com eles”.
Desde 2004, D’Salete pesquisa o Brasil Colonial, com ênfase na escravidão e nas populações periféricas deixadas à margem pelo poder público ao longo dos séculos. “Temos um público leitor interessado em desconstruir as formas de ver a nossa história e a nossa sociedade pelo olhar dominante, o que é muito diferente do Brasil de 50 anos atrás”, compara o autor de Angola Janga. Com seu trabalho anterior, Cumbe (2014), também ambientado no período escravocrata no Brasil, Marcelo D’Salete venceu o Prêmio Eisner de melhor publicação estrangeira nos EUA em 2018.
O pendor à ficção do real nos quadrinhos se estende a outros aspectos da historiografia brasileira, mesmo que de forma tangencial. Caso de obras como Bando de Dois (Danilo Beyruth, 2010), que retrata o período do cangaço no nordeste, ou La Dansarina (Lilo Parra e Jefferson Costa, 2015), que aborda o surto de gripe espanhola na São Paulo de 1918. O quadrinho brasileiro, portanto, fala muito melhor da história do país quando se deixa levar pelo misto de conhecimento oficial, reconfiguração de ponto de vista e imaginação.
Nas obras de Marcello Quintanilha (Sábado dos Meus Amores, 2009; Almas Públicas, 2011; Tungstênio, 2014; entre outros), o formato de crônica ou narrativas frenéticas serve também como atualização daquele instantâneo social criado por Angelo Agostini, agora com a sensibilidade dos tempos atuais. “Todas as HQs do Quintanilha, mesmo as que se passam no presente, têm um forte elemento histórico e de representação fidedigna. Seja falando do Rio e Niterói (Luzes de Niterói, Talco de Vidro, Fealdade de Fabiano Gorila), seja falando de Salvador (Tungstênio), ele transmite uma ideia forte de narrativa e ambientação pesquisadas e pensadas. A verossimilhança é muito importante na sua estética”, analisa Érico Assis.
Alguns quadrinhos do país são mais específicos a tratar determinados momentos ou personagens históricos, como D. João Carioca – A corte portuguesa chega ao Brasil (1808-1821), de Lilia Moritz Schwarcz e Spacca, que narra com irreverência, o recorte adiantado no título, ou Os Sertões – A luta (2011), em que Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa retratam a Guerra de Canudos sob inspiração do livro de Euclides da Cunha, ou ainda Adeus, Chamigo Brasileiro – Uma história da guerra do Paraguai (1999), de André Toral, sobre o sangrento conflito ocorrido entre 1864 e 1870. Nenhum destes – e de vários tantos, como Beco do Rosário (2015), no qual Ana Luisa Koehler reconstitui a Porto Alegre dos anos de 1920 sob a perspectiva de uma jovem aspirante a jornalista – trata da história brasileira com algum tipo de condescendência.
O que importa é a subjetividade dos autores e dos personagens, o cuidado na pesquisa e reconstrução do passado e a necessidade de revisar aspectos até então apagados, propiciando ao leitor embarcar em viagens de imaginação e revelação.
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