Causou espanto quando, ao lançar a sua candidatura para a Academia Brasileira de Letras (ABL) em entrevista à Revista Veja, o jornalista James Akel vociferou contra a indicação do quadrinista Maurício de Sousa para a vaga. “Gibi não é literatura”, disse Akel entre outras acusações contra o pai da Turma da Mônica na disputa pela cadeira 8 da ABL.
Ainda em entrevista à revista, Akel confessou que decidiu tentar a vaga ao saber que Maurício de Sousa escreveu em sua carta de candidatura que “quadrinhos são literatura pura”. “Isso me deixou zangado e decidi me inscrever imediatamente”, disse o jornalista.
Pois bem, as falas geraram um burburinho quanto ao valor das histórias em quadrinhos como expressão artística e demonstraram o pensamento de uma parcela considerável da população e dos próprios literários quanto o espaço ocupado pela nona arte.
Gibi não é literatura, porque é uma forma de expressão artística gráfica autônoma, mas a disputa era por uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, e representaria uma continuidade na maior abertura popular na casa de Machado de Assis. Recentemente, os acadêmicos elegeram a atriz Fernanda Montenegro e o cantor e compositor Gilberto Gil para seu quadro.
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O argumento central do Jornalista reflete a histórica dificuldade das histórias em quadrinho de se afirmarem como arte, mesmo com todos os avanços e a popularidade do cenário atual. Nos últimos anos, a produção brasileira tem recebido destaque e quebrado barreiras até então tidas como intransponíveis. O quadrinista Marcelo D’Salete venceu o Eisner Awards em 2018, o maior prêmio da indústria dos comics norte-americanos. Já Marcello Quintanilha levou o prêmio máximo no Festival de Angoulême, na França, um dos mais importantes do mundo, em 2022.
De acordo com Bruno Alves, quadrinista, produtor e professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, toda essa ideia está relacionada com as origens dos gibis. “O quadrinho surge como uma linguagem mais popular, ali no século 19 nos Estados Unidos, o que ficou muito marcado era um produto feito para crianças, infantil com pegada mais de humor”, disse.
“Só a partir dos anos 20 é que surgem os quadrinhos de aventura, mesmo assim essa linguagem ficou muito restrita como cultura popular. O quadrinho ficou relegado a uma baixa cultura, era entendido como um produto que não tinha relevância intelectual”, explicou Alves. Para o pesquisador, o que pesa muito no imaginário coletivo sobre os quadrinhos é o estigma de estar ligado a ser consumido por crianças e pré-adolescentes. “Mesmo quando o quadrinho demonstra uma linguagem que pode alçar voos diferentes, com temas relevantes, ele não consegue ser reconhecido como um objeto de arte muito por essa ideia já introjetada na sociedade”, resumiu.
É justamente por estar ligado ao letramento infantil com A Turma da Mônica que a candidatura de Maurício de Sousa incomodou, é o que explica Dani Marino, pesquisadora de HQ e questões de gênero no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de São Paulo. “A obra do Maurício é muito associada a algo infantil, porque muita gente no Brasil foi alfabetizada com A Turma da Mônica. Os brasileiros, de uma maneira geral, têm essa ideia de que quadrinhos se limitam a isso. E se criou toda uma cultura de que por ser algo infantil seria, supostamente, de menor valor e isso é triste”, afirmou a colunista do site Mina de HQ.
O debate cansado de “alta cultura x baixa cultura” ainda em voga
O quadrinista, ilustrador e professor Marcelo D’Salete atesta os argumentos de Bruno Alves e Dani Marino ao trazer para o debate uma interessante reflexão quanto a essa ideia que paira no ar sobre o valor do quadrinho e as diferentes percepções dessa linguagem ao redor do mundo. “Se formos pensar nos quadrinhos em um contexto maior, mundialmente, você vai ver que cada país, cada região tem uma experiência diferente em relação às histórias em quadrinhos”, disse. “O Japão tem uma experiência que é diferente da Europa, Estados Unidos e América. Agora, talvez, o fato de o quadrinho ser algo muito popular historicamente, e utilizado por diferentes grupos políticos ele também foi alvo de muita censura e cerceamento, principalmente em meados do século 20 pra cá”, completou.
Para D’Salete esse controle sobre os quadrinhos e sobre o que ele deve produzir, bem como o cerceamento do conteúdo para as faixas mais novas de idade foi o responsável por restringir, de certo modo, o público dos quadrinhos.
D’Salete acredita que essa característica criou força pelos olhos do público e acabou eclipsando alguns temas e a complexidade que as histórias em quadrinhos também têm. “Isso não foi sempre assim, eu diria que é algo que os procedimentos de cerceamento dessa linguagem que acontece nos Estados Unidos e em outros países a partir da década de 1950 e foi muito forte”, explicou.
Ainda nesse sentido, Dani Marino é assertiva ao aprofundar sobre essa dificuldade de entendimento das histórias em quadrinho como parte do processo histórico do seu surgimento. “Um dos fatores é que o surgimento dos quadrinhos está muito atrelado ao desenvolvimento daquilo que alguns teóricos chamam de cultura de massa. Então, quando se estabeleceu que existia uma alta cultura e uma cultura que seria mais popular, ou de menor valor. Os quadrinhos por serem veiculados principalmente nos jornais, que são uma mídia de massa, automaticamente eles foram vinculados a essa categoria”, detalhou.
“Outro fator é que, por exemplo, aqui no Brasil eles tiveram um boom em um momento que eles estavam muito associados à educação, a alfabetização, e isso também colocou os gibis numa categoria de algo útil, como uma produção que tem uma função utilitária. E como as pessoas enxergam arte como algo maior essa relação ficou atravessada”, continuou.
Para se ter uma ideia da profundidade do problema, levaram décadas para que o prêmio Jabuti, tradicional premiação literária do Brasil, criasse uma categoria que contemplasse as histórias em quadrinhos. Foi somente em 2017 após a criação de um abaixo-assinado capitaneado pelo quadrinista Wagner Willian e pelos jornalistas Ramon Vitral e Érico Assis, que contou com mais de 2 mil adesões e o apoio de artistas conhecidos que as HQs foram reconhecidas na festa.
Mesmo na grande imprensa, o quadrinho volta e meia é tratado com condescendência ou não entendem como funciona a narrativa, o meio.
Quadrinhos são literatura? Para o Funcultura, sim!
No plano local, um reflexo dessa falta de entendimento: no Funcultura, o maior edital de cultura de Pernambuco e um dos maiores do país, o quadrinho é ainda é entendido como Literatura. Não há uma categoria específica para quadrinhos no edital. Tem área para linguagens artísticas como Circo e Ópera, mas não tem para quadrinhos. (Nada contra essas expressões, mas não faz sentido o edital ser tão abrangente para alguns aspectos e excludente para outros).
Clarice Hoffmann, jornalista, produtora cultural e roteirista da HQ O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, revela ainda que o valor liberado pelo Funcultura para projetos em quadrinhos é muito limitado para uma publicação em quadrinhos que se proponha fazer algo com qualidade. “Uma primeira questão que eu faço é: Porque um livro da área de artes visuais no Funcultura pode chegar a um valor X e o quadrinho só tem acesso a menos da metade desse orçamento? Nós estamos trabalhando com imagem também”, refletiu. “Eu acho que uma boa luta para empreender é fazê-los compreender que o valor destinado aos quadrinhos não pode ser esse porque se trata de um livro com muita imagem e também existem outras linhas em outras áreas, como as artes visuais, que dispõem de um valor para livro que são razoáveis para os quadrinhos”.
O desenhista e ilustrador Greg Vieira que, ao lado de Clarice Hoffmann, acabou de lançar a HQ Pedra D’água vai além e conta que para algumas editoras o trabalho gráfico de quem ilustra é entendido como algo menor, no que é mais um sintoma do lugar que os quadrinhos ocupam em determinados espaços. “Com certeza as editoras que são especializadas em quadrinhos tem outra relação com o quadrinista, mas a maioria considera o meu trabalho algo menor mesmo. E eu vejo isso pela quantidade de livros que são destinados no final do projeto para quem escreve e para quem desenha”, relata.
“Eu não estou falando de um livro ilustrado, mas sim de quadrinhos mesmo. Parece que que elas não entendem. É errada a forma como as próprias editoras entendem o serviço. Muitas vezes eu fico com a impressão de que elas acham que eu sou um serviço prestado e não um autor, apesar de ter assinado o contrato como tal”, desabafou. Greg lembra que existem quadrinhos sem texto, mas nenhum sem desenho para destacar a importância do desenhista para as histórias.
Políticas públicas para os quadrinhos
É justamente em busca de melhorias para o setor que o professor Bruno Alves tem se engajado ao criar um grupo de trabalho para discutir políticas públicas para o quadrinho pernambucano a fim de fomentar e estabilizar a cena no Estado. “O quadrinho está junto com outras mídias dentro da economia criativa, essa discussão já é antiga. Mas a cultura tem um forte impacto econômico, ela gera emprego e renda. A partir do momento que se reconhece isso, os editais de cultura tem que fortalecer as cenas”, explicou.
“Pernambuco tem toda uma cena e uma tradição na linguagem, temos vários autores como Samuca, Luciano Félix, Roberta Cirne, enfim todo um grupo de produtores de arte independente e falta o poder público enxergar as potencialidades do quadrinho. Então essa briga por espaço é pra isso, para incentivar esses artistas a produzirem melhor e com mais recursos, além de divulgar o que é feito aqui no resto do Brasil, quiçá no mundo”, continuou. Com o apoio de recursos públicos os quadrinhos poderão ser publicados por grandes editoras, chegarão às escolas e depois ao exterior, participarão de premiações, etc. E isso é uma divulgação da arte brasileira, segundo Alves. Mas nada acontece sem investimento.
O grupo já conseguiu implementar uma gibiteca na biblioteca do Sesc de Santo Amaro, localizado na região central do Recife, e a ideia é ter vários eventos e ações de quadrinhos, além de, no futuro, criar uma escola de quadrinhos para formar novos profissionais para o setor.
Quadrinho brasileiro = cultura brasileira
Do ponto de vista dos leitores, os quadrinhos são porta de entrada para novos mundos e expressão artística de grande valor, além de serem um verdadeiro prazer para os olhos e para a inteligência. Na casa de Gilberto Freyre Neto, os quadrinhos sempre foram uma ferramenta de aprendizado. Para ele, o amor pelas HQs veio como herança de família. “Meu avô adorava quadrinhos e desde sempre apoiou essa arte, inclusive Casa Grande e Senzala teve sua versão em quadrinhos ainda lá 1980”, recordou o antigo Secretário de Cultura do Recife. Desde pequeno Neto teve contato com as mais diferentes histórias em quadrinhos e até hoje costuma comprar novos gibis para ler e aumentar sua enorme coleção.
“Quadrinhos são uma ferramenta importante de educação, de letramento e conhecimento das ações da vida de forma lúdica, porque nos gibis você tem contato com uma quantidade enorme de sentimentos e emoções de forma mais leve com as imagens”, resumiu. Freyre Neto lembra também que seu avô foi um grande defensor da quadrinização de obras literárias como forma de ampliar o acesso da população aos clássicos e que era um caso de intelectual que já nos anos 1970 e 80 compreendeu o valor dos gibis e suas particularidades.
Para Freyre Neto, políticas públicas voltadas para os quadrinhos são fundamentais para a mudança de patamar do meio, para a expansão do seu alcance e para a formação de novos profissionais. “Políticas públicas são cruciais para dar oportunidade das linguagens culturais aparecerem dentro de um universo que é a riqueza da cultura brasileira. E em meio às complexidades inerentes do país, é preciso dar atenção às mais variadas expressões culturais do país”, disse. “Acima de tudo temos que respeitar as menores representações culturais brasileiras porque elas sempre serão um retrato do Brasil, então a descentralização das políticas públicas é algo necessário para você preservar, proteger e acima de tudo induzir que comportamentos diferentes da arte, da cultura tenham seu espaço”, concluiu.
Presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil, José Alberto Lovetro (Jal) garante que essa é uma luta antiga. “Estamos na discussão de políticas públicas para estímulos ao autor de quadrinhos e editoras que publicam quadrinhos brasileiro há tempos. É difícil porque a cada novo governo precisamos começar tudo de novo. Há um projeto de lei (6060/2009) no Congresso Nacional que começou a ser montada desde 1982, mas que foi baseada em outra lei que existiu, mas que não foi regulamentada em 1963, batalhada pela primeira Associação de Desenhistas, presidida na época pelo próprio Mauricio de Sousa e vários artistas. Parou na comissão de Cultura e Educação do Congresso e estamos querendo fazê-la aprovada”, explicou.
Segundo Jal, a ideia é de que as políticas funcionem como estímulo à publicação de quadrinhos brasileiros. A editora que publicar a HQ nacional poderá descontar uma parte no imposto de renda. Fora isso, ele acredita que as escolas deveriam contratar desenhistas para darem aulas de desenho e quadrinhos no ensino médio.
Ciente do seu trabalho e impressionado com a repercussão de sua candidatura, em nota após a derrota, Maurício de Sousa parabenizou o filólogo Ricardo Cavaleiri que venceu a disputa e disse que “nesse processo, todos que amam quadrinhos, eu incluído, ganhamos quando tanto se discutiu sobre a importância dos quadrinhos, seu papel fundamental na formação de leitores e como eles podem contribuir, de diversas formas, com a literatura. (…) Um grande abraço a todos que lutam pela valorização dos autores e, principalmente, pela formação de leitores neste nosso Brasil”.
Consuella, o filme que lançamos em 2023
2023 foi bem especial pra gente! Lançamos o curta Consuella, dirigido por Alexandre Figueirôa, editor-executivo da Revista O Grito!. O filme resgata a história de uma importante personalidade artística do Recife, que viveu seu auge nos anos 1970-80 e que abriu portas para diferentes artistas LGBTQIA+. O curta percorreu o circuito de festivais e teve uma première concorrida no Teatro do Parque, com a presença de pessoas que conviveram com Consuella, além da equipe que produziu a obra. Trata-se de uma importante memória da excelência trans, de alguém que ousou peitar as convenções tradicionais e conservadoras de sua época.
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