O CULTO AO AMADOR
Andrew Keen
CAPÍTULO 1: A grande sedução
Primeiro uma confissão. Nos idos dos anos 1990, fui um dos pioneiros na primeira corrida do ouro na internet. Com o sonho de tornar o mundo um lugar mais musical, fundei o Audiocafe.com, um dos primeiros sites de música digital. Certa vez, quando um repórter de jornal da área da baía de São Francisco me perguntou que mudança eu gostaria de fazer no mundo, respondi, meio a sério, que minha fantasia era ter música jorrando de “todos os orifícios”, ouvir a obra inteira de Bob Dylan no meu laptop, ser capaz de baixar os Concertos de Brandenburgo de Johann Sebastian Bach no meu telefone celular.
Portanto, sim, eu propaguei o sonho original da internet. Seduzi investidores e quase fiquei rico. Esta, portanto, não é uma crítica usual do Vale do Silício. É a obra de um apóstata, de um insider, agora do lado de fora, que despejou sua taça de Kool-Aid¹ e renunciou à condição de membro do culto.
Minha metamorfose de crente em cético carece de dramaticidade. Não entreguei os pontos ao ler um verbete incorreto da Wikipédia sobre T.H. Huxley nem fui fulminado por um raio ao fazer uma busca sobre mim mesmo no Google. Como não envolveu um coiote dançante, provavelmente minha epifania não faria sucesso no YouTube.Ela ocorreu durante 48 horas, em setembro de 2004, numa viagem para acampar com umas duas centenas de utópicos do Vale do Silício. Saco de dormir debaixo do braço, mochila nas costas, marchei para o acampamento como membro do culto; dois dias depois, nauseado, deixei-o na condição de incrédulo.
O acampamento teve lugar em Sebastopol, uma cidadezinha agrícola no Vale do Sonoma, no norte da Califórnia, cerca de 80 quilômetros ao norte do famigerado Vale do Silício – a estreita península entre São Francisco e San Jose. Sebastopol é a sede da O’Reilly Media, um dos maiores negociantes do mundo de livros, revistas e exposições sobre tecnologia da informação, um evangelizador da inovação junto a uma congregação mundial de tecnófilos. É ao mesmo tempo o pregador mais fervoroso e o coro mais barulhento do Vale do Silício.
Todo outono, a O’Reilly Media promove um evento exclusivo, apenas para convidados, chamado FOO Camp (FOO de Friends of O’Reilly). Esses amigos do fundador multimilionário Tim O’Reilly não são apenas inusitadamente ricos e ricamente inusitados, eles também alimentam uma fé messiânica nos benefícios econômicos e culturais da tecnologia. O’Reilly e seus acólitos do Vale do Silício são uma mistura de hippies grisalhos, empresários da nova mídia e especialistas em tecnologia. O que os une é uma hostilidade partilhada em relação à mídia e aos entretenimentos tradicionais. Mistura de Woodstock com Burning Man (o festival contemporâneo de auto-expressão realizado num deserto em Nevada) e com um pouco de retiro da Stanford Business School, o FOO Camp é onde os partidários da contracultura dos anos 1960 se encontram com os entusiastas do livre-mercado dos anos 1980 e com os tecnófilos dos anos 1990.
Conferências no Vale do Silício não eram novidade para mim. Eu mesmo tinha até organizado uma quando o boom da internet dava seus últimos suspiros. Mas o FOO Camp era radicalmente diferente. Sua única regra era: “não há espectadores, apenas participantes.” O acampamento era organizado segundo princípios participativos, de fonte aberta, ao estilo da Wikipédia – o que significava que todo mundo falava muito e não havia ninguém no comando.
Assim, lá estávamos nós, 200 pessoas, o establishment antiestablishment do Vale do Silício, valendo coletivamente centenas de milhões de dólares, contemplando as estrelas do gramado da sede corporativa da O’Reilly Media. Durante dois dias inteiros, acampamos juntos, assamos marshmallows na brasa e celebramos o revival de nosso culto.
A internet estava de volta! E, ao contrário do que acontecera na corrida do ouro dos anos 1990, desta vez nossa exuberância não era irracional. Essa nova e reluzente versão da internet, que Tim O’Reilly chamava de Web 2.0, iria realmente mudar tudo. Agora que a maioria dos americanos tinha acesso de banda larga à internet, o sonho de uma sociedade inteiramente conectada, e sempre conectada, seria finalmente realizado. Uma palavra estava em todos os lábios no FOO Camp em setembro de 2004. Era “democratização”.
Eu nunca me dera conta de que a democracia tinha tantas possibilidades, tanto potencial revolucionário. Mídia, informação, conhecimento, conteúdo, público, autor – tudo iria ser democratizado pela Web 2.0. A internet ia democratizar a grande mídia, as grandes empresas, o grande governo. Iria até democratizar os grandes especialistas, transformando-os no que um amigo de O’Reilly chamou, num tom contido, reverente, de “nobres amadores”.
Embora Sebastopol ficasse a quilômetros do oceano, na segunda manhã de acampamento eu começara a me sentir nauseado. De início pensei que era a comida gordurosa do acampamento ou talvez o clima quente do norte da Califórnia. Mas logo percebi que até minhas tripas estavam reagindo ao vazio que estava no âmago de nossas conversas.
Eu viera ao FOO Camp para imaginar o futuro da mídia. Queria saber como a internet poderia me ajudar “a levar mais música para mais orifícios”. Mas meu sonho de tornar o mundo um lugar mais musical caíra em ouvidos moucos; a promessa de usar tecnologia para levar mais cultura às massas fora abafada pelo grito coletivo dos membros do FOO Camp por uma mídia democratizada.
A nova internet tinha a ver com música feita pelo próprio usuário, não com Bob Dylan ou os Concertos de Brandenburgo. Público e autor haviam se tornado uma coisa só, e estávamos transformando cultura em cacofonia.
O FOO Camp, compreendi, era uma pré-estréia. Não estávamos ali simplesmente para falar sobre a nova mídia; nós éramos a nova mídia. O evento era uma versão beta da revolução da Web 2.0, em que a Wikipédia se misturava com MySpace e com YouTube. Todos estavam transmitindo a si mesmos simultaneamente, mas ninguém estava ouvindo. A partir dessa anarquia, ficou claro, de repente, que o que estava governando os macacos infinitos que agora introduziam informação na internet era a lei do darwinismo digital, ou seja, a sobrevivência dos mais ruidosos e mais dogmáticos. Sob essas regras, a única maneira de prevalecer intelectualmente é mediante infinito obstrucionismo.
Quanto mais se falava naquele fim de semana, menos eu queria me expressar. À medida que o alarido do narcisismo crescia, eu me tornava mais e mais silencioso. E assim começou minha rebelião contra o Vale do Silício. Em vez de contribuir para o barulho, violei uma lei do FOO Camp de 2004. Parei de participar, relaxei e observei.
Desde então não parei mais de observar. Passei os dois últimos anos observando a revolução da Web 2.0 e estou consternado pelo que vi.
Vi os infinitos macacos, é claro, digitando à larga. E vi também muitos outros espetáculos estranhos, inclusive um vídeo de pingüins andarilhos que vendiam uma mentira, uma “cauda longa”² supostamente infinita, e cães conversando um com o outro online. Mas o que estive observando se parece mais com Os pássaros de Hitchcock do que com Dr. Doolittle: um filme de horror sobre as conseqüências da revolução digital.
Porque a democratização, apesar de sua elevada idealização, está solapando a verdade, azedando o discurso cívico e depreciando a expertise, a experiência e o talento. Como observei antes, está ameaçando o próprio futuro de nossas instituições culturais.
Eu chamo isso de a grande sedução. A revolução da Web 2.0 disseminou a promessa de levar mais verdade a mais pessoas – mais profundidade de informação, perspectiva global, opinião imparcial fornecida por observadores desapaixonados. Porém, tudo isso é uma cortina de fumaça. O que a revolução da Web 2.0 está realmente proporcionando são observações superficiais do mundo à nossa volta, em vez de análise profunda, opinião estridente, em vez de julgamento ponderado. O negócio da informação está sendo transformado pela internet no puro barulho de 100 milhões de blogueiros, todos falando simultaneamente sobre si mesmos.
Além disso, o conteúdo gratuito e produzido pelo usuário gerado e exaltado pela revolução da Web 2.0 está dizimando as i leiras de nossos guardiões da cultura, à medida que críticos, jornalistas, editores, músicos e cineastas profissionais e outros fornecedores de informação especializada estão sendo substituídos (“desintermediados”, para usar um termo do FOO Camp) por blogueiros amadores, críticos banais, cineastas caseiros e músicos que gravam no sótão. Enquanto isso, os modelos de negócios radicalmente novos, baseados em material gerado pelo usuário, sugam o valor econômico da mídia e do conteúdo cultural tradicionais.
Nós – aqueles que querem saber mais sobre o mundo, os que são os consumidores da cultura convencional – estamos sendo seduzidos pela promessa vazia da mídia “democratizada”. Pois a conseqüência real da revolução da Web 2.0 é menos cultura, menos notícias confiáveis e um caos de informação inútil. Uma realidade arrepiante nessa admirável nova época digital é o obscurecimento, a ofuscação e até o desaparecimento da verdade.
A verdade, parafraseando Tom Friedman, está sendo “achatada” à medida que criamos uma versão sob solicitação, personalizada, que reflete nossa própria miopia individual. A verdade de uma pessoa torna-se tão “verdadeira” quanto a de qualquer outra. Hoje a mídia está estilhaçando o mundo em um bilhão de verdades personalizadas, todas parecendo igualmente válidas e igualmente valiosas. Para citar Richard Edelman, o fundador, presidente e CEO da Edelman PR, a maior empresa de relações públicas privada do mundo: “Nesta era de tecnologias de mídia em explosão não existe nenhuma verdade exceto aquela que você cria para você mesmo.”
¹: Refresco em pó com sabor artii cial fabricado nos Estados Unidos. (N.T.)
²: Cauda longa (Long Tail) é um termo usado para descrever a estratégia de negócios voltada para nichos de mercado em vez de privilegiar somente grandes hits ou best-sellers. Tal estratégia só é possível com o advento da internet, pela inexistência da limitação do espaço físico para exibição de produtos em lojas virtuais. (N.T.)