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Foto: Pathé Films/Divulgação.

Por que “Emilia Pérez” é repudiado pela comunidade trans?

Filme de Jacques Audiard é acusado de reforçar estereótipos sobre a transição de gênero

O filme Emília Pérez, dirigido por Jacques Audiard e estrelado por Karla Sofía Gascón, gerou ampla repercussão após ser indicado a 13 categorias no Oscar 2025. A produção, que retrata a transição de gênero de um narcotraficante mexicano, tem sido alvo de intensas críticas por sua abordagem das questões de identidade trans e pela representação da cultura mexicana. Especialistas apontam que a narrativa do filme faz uso de estereótipos problemáticos, o que gerou um debate sobre sua representação da transição de gênero e das dinâmicas culturais que tenta explorar.

Críticas à representação trans

A jornalista Carol Fitzpatrick, em suas redes sociais, se manifestou sobre o filme, criticando de forma contundente sua abordagem. “Eu assisti Emília Pérez para que você não precise assistir também. Sim, eu estou falando da bomba que ganhou de Ainda Estou Aqui no Globo de Ouro. E eu vou dizer que, se fosse um filme de comédia, ele seria o mais engraçado do ano de tão absurdo que é, mas como não é comédia, eles levam tudo muito a sério, acaba sendo só um filme ruim mesmo. E quando eu digo ruim, eu quero dizer muito ruim mesmo.”

Fitzpatrick questiona a qualidade do filme e a forma como ele aborda a transição de gênero, destacando o que considera uma falha em sua execução. Sua crítica sugere que o filme falha em tratar a questão com a profundidade e sensibilidade necessárias, tornando a temática, em sua visão, caricata e simplista.

A transpóloga Renata Carvalho também fez críticas sobre a representação de transições de gênero em Emília Pérez. Em uma análise em suas redes sociais, Carvalho aponta a falta de autenticidade e respeito nas escolhas narrativas do filme:

“Eu assisti o longa francês indicado ao Oscar, Emília Pérez. E como transpóloga, vim aqui dividir com vocês uma análise responsável sobre esse drama criminal musical. O filme conta a história de Emília Pérez/Manitas del Monte, líder e narcotraficante na cidade do México, que contrata a advogada Rita para auxiliar na sua transição, criando uma nova identidade de vida, assim desaparecendo com o seu passado de crimes.”

Renata destaca o fato de o filme ser ambientado no México, mas filmado majoritariamente na França, com um elenco composto por atores não-mexicanos, como um dos principais pontos críticos. Para ela, a escolha de não utilizar atores mexicanos para interpretar personagens chave, como a protagonista, enfraquece a representação da cultura local e questiona a autenticidade da narrativa.

“Um filme que fala sobre o México, mas sem mexicanos em papéis de destaque”, diz Carvalho, referindo-se ao que vê como uma falha no tratamento cultural do filme.

Além disso, Renata enfatiza como a narrativa do filme simplifica a transição de gênero de maneira maniqueísta, retratando-a como uma transformação do “super homem masculino e perigoso” para uma “mulher doce e sensível”. Ela descreve essa abordagem como redutora, pois utiliza a transição para caracterizar uma “redenção moral”, algo que, na visão da especialista, minimiza a complexidade das experiências trans.

“A maior problemática do filme é como ele retrata a transição de gênero de uma forma maniqueísta, ou seja, de uma coisa para o seu oposto, da água para o vinho”, afirma Carvalho. “Do cruel Manitas, responsável pelo desaparecimento de milhares de mexicanos, para a bondosa Emília, que cria uma ONG para encontrar desaparecidos, que muitos foi ela mesma que mandou matar ou matou.”

Em sua análise, Renata também faz referência à utilização recorrente de estereótipos de corpos trans travestis em narrativas criminosas, como a associação de personagens trans com práticas ilícitas. Para Carvalho, Emília Pérez reforça esses estereótipos, criando uma ligação entre corpos trans e o crime, o que contribui para a perpetuação de uma visão distorcida da comunidade trans.

Agnes Gonçalves e a crítica à política da representação

A apresentadora do podcast Bolchecine, Agnes Gonçalves, falou com a Revista O Grito! sobre o filme e a questão da representatividade trans no cinema. Para ela, é fundamental questionar não apenas a presença de personagens trans nas telas, mas quem está no controle dessas narrativas.

“É óbvio que visibilidade para as nossas pautas é sempre importante, mas é mais importante pensarmos em como essa ‘representatividade’ está acontecendo, com quem está o poder de fala. Pegando o próprio Emília Pérez como exemplo, o que tem a dizer sobre gênero ou vivências trans? Muito pouco, e o pouco que fala ainda acaba caindo em certos essencialismos já batidos.”

Agnes argumenta que a política da representação, por si só, não avança as pautas trans e que é preciso que pessoas trans ocupem espaços criativos e decisórios na indústria cinematográfica.

“Precisamos produzir nossas próprias histórias, nossas ficções e nossos mitos. A narrativa cisheteronormativa não nos serve (seja ela no cinema ou fora dele); é preciso que tomemos conta das nossas narrativas”, afirma. “Isso já está acontecendo, pelo menos no cinema. Filmes como Eu Vi o Brilho da TV de Jane Schoenbrun, Orlando, Minha Biografia Política de Paul B. Preciado ou Língua Franca de Isabel Sandoval estão ativamente questionando o que significa um ‘cinema trans’. O problema é que essas e outras produções não chegam no público, nem mesmo em festivais, como Emilia Pérez fez.”

“Infelizmente, não sei como solucionar isso, gostaria muito de saber. Simplesmente fazer bons filmes não tem sido o bastante; precisamos pensar em formas de tomar esses espaços, nem que seja (e provavelmente esse seja o melhor plano de ação) à força”, acrescenta.

Agnes também critica a forma como o filme reforça estereótipos de gênero e a resposta desproporcional ao comportamento de Karla Sofía Gascón.

“Modificação corporal faz parte da cultura trans; obviamente, não querer ou não fazer cirurgias não faz alguém menos trans, mas é algo discutido dentro de diversos círculos. Ao meu ver, o que acontece é uma oportunidade perdida de discutir esses procedimentos de maneira mais aprofundada do que através de músicas ruins que, no seu melhor momento, beiram o ridiculamente cômico. O meu grande problema é essa necessidade de reiteração do masculino como violento, forte e ‘mau’ e do feminino como inocente, fraco e sensível. 2024, não precisamos mais desses discursos.”

Sobre as polêmicas em torno da atriz principal, ela observa: “Com certeza, o fato de Karla Sofía Gascón ser uma mulher trans faz com que a repulsa a ela seja mais forte e contundente. Esse caso me parece, no final, mais um exemplo do tratamento público que pessoas trans sofrem na grande mídia. Somos objetos de interesse (até mesmo de fetiche, eu diria), mas, no momento em que cometemos erros, independente da gravidade, somos deixadas de lado e jogadas aos lobos.”

Posição da GLAAD

A GLAAD, organização que atua na promoção da representatividade LGBTQIA+ na mídia, também se manifestou sobre Emília Pérez, criticando a forma como o filme aborda a identidade trans. Em nota oficial, a organização destacou que, apesar da presença de uma atriz trans no papel principal, a produção falha em apresentar uma narrativa autêntica e respeitosa sobre a experiência trans, além de negligenciar a representatividade adequada tanto em termos de elenco quanto de contexto cultural.

Paródia Johanne Sacrebleu e reações ao filme

A polêmica gerada por Emília Pérez também inspirou uma resposta criativa no curta-metragem Johanne Sacrebleu, que parodia o filme de Audiard. Dirigido por Camila Aurora González, o curta faz uma sátira dos estereótipos presentes no filme, abordando, com um tom de humor, as questões culturais e as críticas à produção.

A trama, que segue a história de um romance fictício entre herdeiros de produtores franceses de baguetes e croissants, usa elementos caricaturais para criticar a representação de estereótipos culturais, como o uso de camisas listradas, bigodes finos e a adoção de uma estética exagerada da cultura francesa.

Apesar de seu tom humorístico e satírico, Johanne Sacrebleu compartilha com Emília Pérez a mesma crítica à utilização de estereótipos culturais, mas com uma abordagem oposta, destacando o problema da exotificação e da falha na representação autêntica de culturas e identidades.

Críticas de Paul B. Preciado

Em artigo publicado no El País, o filósofo espanhol Paul B. Preciado também criticou duramente Emília Pérez, classificando-o como uma “coleção de ruínas semióticas coloniais e binárias”. Para ele, a produção reforça uma visão psicopatológica da transição de gênero baseada em quatro premissas recorrentes no cinema: criminalização, exotização etnográfica, representação médica-cirúrgica da transição e assassinato da protagonista.

“Embora seja apresentada como o resumo do cinema moderno repleto de números musicais e invenções visuais e narrativas, Emilia Pérez é, quando se conhece a história das representações de pessoas trans, um pergaminho de ruínas semióticas coloniais e binárias tão previsíveis quanto anacrônicas”, afirma. “Carregado de racismo e transfobia, de exotismo antilatino e de binarismo melodramático, Emilia Pérez reforça assim a narrativa colonial e patologizante não só da transição de género, mas também da cultura mexicana.”