Este texto foi publicado originalmente na edição impressa da revista Plaf. Acesse a página especial da revista e compre as edições anteriores.
Fuçando em uma banca com meu guri de 10 anos, parceiro de emoções por gibis e livros, me surpreendi com uma capa impensável nos anos 1980 de minha infância. Naquela época eu juntava a merreca ganha vendendo banana na feira ou recolhida em troca de serviços pela quebrada. Toda minha fortuna era pra gibi de herói e o do Capitão América era um dos cinco mensais da Marvel. Sempre achei este glorioso paladino o mais chato da trupe e ele ainda aparecia na Heróis da TV, comandando os Vingadores.
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Mas em seu gibi apareciam vilões malucos, dramáticos ou sedutores e heróis secundários que mapeavam minha imaginação. Alguns ressuscitaram, outros nasceram. Ainda inventaram mais heróis ou novas origens para bambambãs antigos, bebendo como sempre em mitologias de muitos povos ou mesclando tendências contemporâneas com o fascínio das tecnologias bélicas e de informação.
Bem, tivemos um Capitão América negro. Sam Wilson, o antigo Falcão, aquele que era braço direito e subalterno, assumiu o posto. Não está mais ali para sugerir a fraternidade e a união entre as raças. Sam chacoalha os pilares do nacionalismo que sustentou a ideologia do Capitão América desde a guerra contra Hitler, destrona a propaganda que regeu globo afora a ideia do espírito de justiça dos EUA como terra da liberdade e oportunidade, como movimentos pretos já demonstram há séculos.
O loiro Steve Rogers, antigo dono do escudo que manteve a juventude por anos na câmara criogênica, tornou-se um velhinho satirizado por seus inimigos, atuante como agente especial da SHIELD, a força de pensamento militar subordinada aos barões engravatados do burô do país. E Sam Wilson manda em rede nacional um discurso ácido: “a verdade é que sempre estivemos divididos” é o que diz enquanto imagens de conflitos raciais pipocam nas telas. A série veio em plena época de campanhas de Trump e de Hillary para a presidência do país e a história gira no deserto do Arizona, onde migrantes mexicanos são sequestrados por supremacistas brancos que lhes metralham ou lhes usam em experimentos genéticos. Dos sobreviventes virá Joaquin Torres, o novo Falcão, que já nas capitais do Norte vai fortalecer a luta com a Soluções Serpente, vilões ofídicos que pregam o neoliberalismo mesclado ao racismo assumido, entre uma postura bufona e a sofisticação de um discurso contemporâneo que toma conta das indústrias farmacêuticas oferecendo consultoria, às vezes à força. Sam Wilson, com sua rala popularidade após mexer nas furadas verdades nacionais, tem que lidar com as ferrugens da burocracia e as traições de antigas parcerias, além do dilemas morais com seu antigo parceiro Steve Rogers.
Com meu moleque Daruê, em três edições li uma surpreendente mudança, um roteiro bem construído e um bom panorama da atual política, economia e das ideologias coloniais que mordem o globo em tempos de Dorias, Trumps e Macris. Com o corpo negro protagonista num lugar antes encastelado a um herói branco, salvador das pátrias e chato pra dedéu.
HISTÓRICO
Por aqui, o Capitão América Sam Wilson ganhou título próprio mensal pela Panini, em 2017. Nos EUA sua primeira aparição foi Captain America #117 (Setembro de 1969), como Falcão. É tido como um dos primeiros super-heróis negros dos quadrinhos mainstream americanos, ao lado de Pantera Negra (criado em 1966), o Lanterna Verde John Stewart (1971) e Luke Cage (1972).