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Batwoman e sua namorada por J.H. Williams III. (Divulgação)

A HQ é queer

Representação importa. Como autoras e autores de quadrinhos estão abordando a diversidade em um ambiente historicamente pautado pelas fantasias de homens brancos heterossexuais e cisgêneros

Este texto foi publicado originalmente na edição impressa da revista Plaf. Acesse a página especial da revista e compre as edições anteriores.

Por Carol Almeida, Dandara Palankof e Paulo Floro

Mary trabalha numa loja de quadrinhos na pequena cidade de Fort Wayne, Indiana, Estados Unidos. Sua rotina consiste fundamentalmente em lidar com os clientes de sempre: meninos e homens que aparecem por lá buscando história de meninos e homens em missões heroicas, hercúleas e, claro, heteronormativas. Mas naquele 3 de dezembro de 2016, Mary percebeu que havia entrado na loja uma adolescente, aparentemente confusa, buscando quadrinhos que possivelmente ela não conhecia. A menina procura por alguma história com a Supergirl. Mary logo descobre que o interesse na heroína da DC Comics não surgia à toa. A série de TV da personagem havia acabado de mostrar, em sua segunda temporada, uma personagem central (Alex Danvers, irmã da protagonista) saindo do armário e se identificando como uma mulher lésbica. 

Ao perceber que a atendente da loja é também lésbica, a jovem adolescente começa a ter uma crise de choro e revela que já havia pensado várias vezes em suicídio, mas que a personagem de Alex a fez rever sua condição. Mary tira dinheiro de seu próprio bolso e dá de presente à menina quadrinhos da DC Comics com personagens queers que poderiam ajudar aquela jovem leitora a não se sentir tão só no mundo: a super-heroína lésbica Batwoman, o vigilante gay Meia-Noite e a detetive, também lésbica, Renée Montoya. Mary se despede da menina, entra no banheiro da loja e começa ela mesma a chorar. Pela sua cabeça repassa toda sua própria infância e adolescência sem referências substanciais – fosse nos quadrinhos ou na TV – de personagens queers.

O relato acima foi narrado no Twitter pela própria atendente da loja e ganhou grande repercussão depois que Chyler Leigh, a atriz que interpreta a personagem de Alex Danvers na série Supergirl, republicou a história em sua conta no Twitter e mandou uma mensagem privada – que logo se tornou pública – para Mary, agradecendo a ela por ter contado o que se passou. 

O encontro entre essa atendente e a jovem desconhecida é um recorte bastante emblemático e ilustrativo de como o slogan “representação importa” ainda tem um peso que não pode ser negado por quem produz e cria entretenimento e cultura pop no mundo. Porque se a situação lá fora está cada vez mais tensa para quem levanta a bandeira de (qualquer) diversidade, séries de TV, filmes, livros, música e, claro, histórias em quadrinhos, precisam agora assumir a responsabilidade de encarar a onda de ódio e intolerância que vem por aí. E no que diz respeito às HQs, tanto quando se fala em quem lê e quem faz, a luta parece ter alguns obstáculos extras, afinal de contas, estamos lidando com um ambiente historicamente pautado pelas fantasias de homens brancos heterossexuais e cisgêneros.

LGBTs de colante

A simples existência de uma personagem como a Batwoman, identificada como lésbica desde a criação de sua versão contemporânea é um testemunho irônico do quanto o universo das HQs, por tanto tempo, não apenas obedeceu como legitimou o código de conduta moralista dos chamados comics norte-americanos: a Batwoman original foi criada na década de 1950 – junto com a primeira Batgirl – justamente para abafar as famosas acusações do psiquiatra Frederick Wertham de que as histórias de Batman e Robin ajudariam “a fixar tendências homoeróticas”. Contando assim, parece piada, mas não é. 

Pois a versão contemporânea da Batwoman, cujas histórias foram publicadas no Brasil na revista A Sombra do Batman, da editora Panini, e mais tarde em um encadernado de luxo, consolidou a heroína como um dos maiores símbolos da nova representação feminina e LGBTI+ nos quadrinhos de super-heróis: uma mulher forte, independente, cuja origem (desenvolvida pelo roteirista Greg Rucka) mostrava a vivência de sua homossexualidade e o desejo de nunca precisar se esconder como componentes essenciais na construção da personagem e de sua história. Kate Kane (esse é seu nome “civil”) foi expulsa do exército, sua maior vocação, por não se submeter à política do exército norte-americano de manter seus oficiais compulsoriamente no armário.

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Antes um personagem de segundo escalão, Estrela Polar ganhou capa de gibi e jornais pelo mundo com o seu casamento. (Marvel)

Seu título solo estreou na fase seguinte da DC Comics, conhecida como Novos 52, com roteiros e desenhos a cargo de J.H. Williams III – e as críticas não paravam de incensá-lo como um dos melhores gibis da casa, naquele momento. Até Williams e o restante da equipe resolverem abandoná-lo, diante da negativa da editora em permitir que ele casasse a personagem com sua namorada, a policial Maggie Sawyer. Apesar das acusações de ter dado um passo pra trás no caminho rumo à diversidade que os quadrinhos de super-heróis vêm tomando nos últimos anos, a editora se defendeu, afirmando que não queria ver nenhum de seus heróis casados naquele momento. Com a qualidade das histórias e as vendas em queda, o título foi cancelado. 

A história nos diz que, entre essa produção mainstream, ou seja, das HQs comerciais das grandes editoras, personagens queers sempre estiveram, e ainda se encontram, à margem das narrativas centrais. Não poderia exemplificar isso de forma melhor senão pedindo que você consiga visualizar alguma superprodução hollywoodiana com um/a super-herói(na) gay, lésbica ou transgênero no papel protagonista. Nesse mundo de poderes, colants e heteronormatividade, os personagens LGBT já transitaram pelo ofensivo (o Estraño, da própria DC, que merecidamente foi para um limbo do qual nunca retornou), pela fetichização (Granizo, dos Gen13, grupo publicado pelo selo Wildstorm, da Image, posteriormente comprado também pela DC) e pela irrelevância – Estrela Polar, primeiro super-herói assumidamente gay, sempre foi um personagem de segundo escalão.

Mas o Estrela Polar entrou nos X-Men. Seu casamento estampou não só a capa do gibi como também jornais no mundo inteiro. Os Jovens Vingadores, da Marvel, tinham como principal casal da equipe o mago Wicanno e o metamorfo Hulkling. O gibi deles foi alvo de uma censura por parte do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, durante a Bienal do Livro do Rio de 2019. O Homem de Gelo, um dos primeiros X-Men, depois de anos de especulações – às vezes de incentivo, às vezes maledicentes – foi tirado do armário pelo roteirista Brian Michael Bendis. E a Batwoman mostrou o quão marcante foi o impacto que causou nos leitores: com a nova fase da DC, o chamado Renascimento, ela primeiro passou a estrelar o clássico título Detective Comics ao lado do Batman. E agora, mais uma vez, retorna em seu título solo. Quase como se cumprisse o ciclo iniciado na criação de sua primeira versão, naqueles tempos de caça às bruxas. 

A história nos diz que, entre essa produção mainstream, ou seja, das HQs comerciais das grandes editoras, personagens queers sempre estiveram, e ainda se encontram, à margem das narrativas centrais.

Lembrando que os mesmos ataques a Batman e Robin que levaram à criação da primeira Batwoman também foram dirigidos à Mulher-Maravilha – vista por Wertham como “a contraparte lésbica do Batman”. E hoje temos o mesmo Greg Rucka, atualmente roteirista do gibi da Amazona, afirmando a quem quiser ouvir que, numa ilha aonde reinam a felicidade e a harmonia, habitada exclusivamente por mulheres, é simplesmente inconcebível que elas não se envolvam amorosa e sexualmente umas com as outras – inclusive a própria Diana, o que pode ser percebido claramente logo na primeira edição de sua fase no título.

Há ainda um longo caminho a percorrer e sabemos que a cultura de massa ainda é essencialmente conservadora. Mas esse é o atual estado das coisas: cavamos um grande espaço. Que é cada vez maior (sem ignorar, é claro, o quanto pesa nisso tudo a tal lógica de mercado). Mas seguimos adiante – e o que defendemos aqui é que nenhum passo seja dado para trás.

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Hugo, de Laerte: assim como a autora, o personagem também fez a transição de gênero. (Divulgação).

A era de ouro dos quadrinhos LGBT

Mas é preciso aprofundar o debate para muito além da questão da representatividade queer nos meios de massa. Porque mais importantes que a criação desses personagens por artistas e roteiristas que continuam a ser os mesmos homens heterossexuais de sempre, estão as autoras e autores queers de quadrinhos que sempre correram em paralelo, com distribuição independente, pequenas tiragens e zero censura de mercado. E com as infinitas possibilidades de distribuição e circulação que a internet, pode-se afirmar: estamos vivendo a Era de Ouro dos quadrinhos LGBTI+ no mundo inteiro.

Para usar o exemplo dos Estados Unidos, antes de falar dos comics (os quadrinhos das grandes editoras), é preciso falar dos comix (os quadrinhos independentes) verdadeiramente queers e de como eles sedimentaram espaço para a produção contemporânea. E essa história começa, ironicamente, a partir de uma cena underground bastante machista e misógina, em uma das cidades mais queers de todo o mundo. No final dos anos 1960, São Francisco, costa oeste dos Estados Unidos, assistiu ao surgimento de uma produção de quadrinhos que se tornou referência para vários artistas do mundo. Nomes como Robert Crumb, Rick Griffin e Victor Moscoso se firmaram como grandes artistas dessa geração. Mas se os quadrinhos que eles faziam eram, com frequência, reproduções extremamente machistas, que objetificavam a mulher página sim, página sim, eles abriram várias novas possibilidades para quem queria produzir algo fora do mainstream.

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Alison Bechdel, mais famosa autora LGBT no mundo hoje, surgiu da cena alternativa dos EUA. (Foto: Elena Seibert)

E foi aquecida por essa cena de São Francisco que surgiu uma outra cena, a dos quadrinhos queers: primeiro com as revistas feministas It Ain’t Me, Babe e Wimmen’s Comix e pouco depois com a primeira edição da Come Out Comix, organizada pela artista Mary Wings. O sucesso dessas edições fez com que aparecesse, em 1980, uma famosa antologia de quadrinhos queers chamada de Gay Comix, que viria a se tornar uma série referencial para os quadrinhos LGBTI+ até 1998, assim como a revista erótica/pornô Meatmen, que praticamente publicou todos os quadrinistas gays que produziam na época, nos EUA. Havia, nesse momento, um ethos punk do faça-você-mesmo que rendeu um sem número de zines com personagens queers, escritos e desenhados por artistas queers. 

Foi nesse período que surgiu, por exemplo, uma das quadrinistas mais premiadas dos Estados Unidos, Alison Bechdel, autora das premiadas HQs Fun Home e Você é Minha Mãe? e das famosas tiras Dykes to Watch Out For (de quem Laerte, aqui no Brasil, se diz fã devota). Foi a partir de uma dessas tiras que surgiu aquilo que passou a ser conhecido como “teste de Bechdel” – um conjunto de perguntas usado primeiramente no cinema, e hoje em quase toda mídia de massa, para identificar histórias que subrrepresentam mulheres em cena.

HQs de temática queer afrouxam a mentalidade conservadora da sociedade.

Muitos quadrinistas queers que produzem hoje foram formados por essa geração de artistas dos anos 1980, 90 e 00. E graças à facilidade de distribuição que a internet os proporciona conseguem atingir mais rapidamente seu público alvo. Pessoas que leram Bechdel, Estranhos no Paraíso, de Terry Moore (sim, um homem hétero e cristão, mas que terminou fazendo uma das histórias queers mais amadas de todos os tempos), a cartunista Jennifer Camper e Jerry Mills, autor de Poppers, uma das primeiras tiras a trazer personagens gays longe dos estereótipos, estão agora produzindo tiras e séries em quadrinhos com os mais diversos estilos e com as ainda mais diversas histórias. 

É preciso reforçar que uma quadrinista trans como Julia Kaye tem uma tira divertida e super bem-humorada sobre o cotidiano de uma garota trans, ou que uma artista como Sarah Graley fez uma HQ chamada Kim Reaper sobre uma adolescente ceifadora de espíritos malignos que se apaixona por uma menina de sua escola, para que jovens meninas como aquela que entrou na loja de quadrinhos querendo amenizar sua depressão possam ter outras ‘supergirls’ a quem recorrer.

A experiência brasileira

Assim como nos EUA, foi no quadrinho underground que os queers brasileiros encontraram expressão. Com um número de publicações ainda insignificante, o meio independente tem se notabilizado por lançar autores dedicados a essa temática. Em plena ditadura militar, Henfil abordou o tema na edição 7 da revista Fradim, quando transformou o personagem-título em homossexual; uma forma de provocar o machismo do ativismo político da época, então marcado por muita virilidade. 

A partir dos anos 1980, com a explosão da popularidade do quadrinho alternativo brasileiro, autores como Angeli, Glauco e Laerte passaram a abordar diferentes facetas da homossexualidade, quase sempre como uma forma provocativa de criticar a repressão sexual e menos como uma legítima expressão identitária. Angeli criou Nanico, um ativista revolucionário que decide se assumir gay após anos no armário. Adão Iturrusgarai, em 1985, fez piada com os clichês de masculinidade com Rocky & Hudson. Nos anos 1990, Marcatti, conhecido por sua assinatura escatológica, também abordou a homossexualidade. Ele lançou ao lado do poeta marginal Glauco Mattoso o álbum As Aventuras de Glaucomix, o Pedólatra, onde relata um passeio semi-autobiográfico pelo universo fetichista homossexual. 

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Anita Costa Prado e as tiras lésbicas de Katita. (Divulgação).

No início dos anos 2000, Anita Costa Prado lançou a personagem Katita, tratando do preconceito contra lésbicas e desmontando o imaginário cheio de estereótipos das mulheres homossexuais na sociedade. Entre 2006 e 2007, a pequena SM Editora, de Jaú, São Paulo, publicou Jack The Fag, de José Salles e Manu Tom, onde a homossexualidade é abordada do ponto de vista da marginalidade. Na mesma época, a paraibana Marca de Fantasia lançou o álbum Vidas Solitárias, com roteiros de Marcelo Marat e desenhos de Emanuel Thomaz. Salles mira seu texto contra o recalque social, a hipocrisia e aborda com transparência e sensibilidade a violência e marginalidade que permeiam o universo LGBT. Vale destacar o trabalho de resistência que faz o paulista Mário César, autor independente que dedica sua carreira a explorar o lado mais íntimo dos relacionamentos gays. 

Ciranda da Solidão, de sua série EntreQuadros, traz uma perspectiva da solidão das pessoas LGBT. São cinco histórias com drama, comédia e romance que se destacam por trazer os quadrinhos gays para um espectro particular, um cotidiano muito próximo do leitor comum. Essa representação do seu, do nosso mundo, com seus problemas, choros e risos exemplificam a importância da representatividade. Os gibis de César dizem “queremos nos ler mais” e chamam atenção do silenciamento que existe nas HQs brasileiras para quadrinhos como esses. Sua produção mais recente aborda a violenta pseudo-terapia de “cura” da homossexualidade, Bendita Cura, que já teve três volumes lançados.

Séries de TV, filmes, livros, e histórias em quadrinhos precisam assumir a responsabilidade de encarar a onda de ódio e intolerância.

Laerte Coutinho tem sido outra voz importante, fazendo de suas tiras atuais um ensaio aberto das diversas questões que permeiam o cotidiano do Brasil atual – onde o preconceito e a violência contra pessoas trans e gays/lésbicas é uma triste realidade. Ao fazer de seus quadrinhos e de sua persona pública um canal para discutir o estado atual da luta por direitos LGBTI+ no Brasil, Laerte tornou-se uma trincheira de resistência. Em um amálgama entre criadora e personagem, ela decidiu fazer a transição de gênero de Hugo, espécie de alter-ego que assumiu desejos e inquietações da autora. Desde que assumiu sua transexualidade, seus quadrinhos passaram por uma fase mais onírica e experimental, inovando na linguagem, mas sobretudo no tema. Ainda inédito em livro, essas histórias trouxeram temas cruciais para a discussão da representação, como a saída do armário, visibilidade trans, desejos reprimidos, relacionamentos gays/lésbicos e aceitação do corpo.

Outra gama de trabalhos interessantes colocou a bissexualidade em destaque. Entre eles, Garota Siririca, divertido gibi de LoveLove6; e Deus, personagem de Rafael Campos Rocha, que faz uma provocação metafísica ao imaginar a divindade como uma mulher negra voluptuosa. Ainda no terreno da produção independente, temos Lizzie Bordello e as Piratas do Espaço, de Germana Vieira, HQ de space opera que traz aventura, ação e romance, com uma diferença essencial: a diversidade de personagens bem representados e complexos. Deus (de novo!) é uma mulher negra cheia de sex appeal e fã de filmes pornôs. 

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Apolo e Meia-Noite: beijaço e relação gay estável em um campo bem hétero, os gibis de super-heróis. (Divulgação).

Ao contrário do que pregam algumas parcelas de leitores – e também de profissionais -, a exigência de maior representatividade LGBTI+, com representações que espelham as lutas e as diversas identidades presentes nessa minoria,  cumpre um papel importantíssimo: afrouxar a mentalidade conservadora e violenta da nossa sociedade. É oportuno jogar aqui o dado de que o Brasil é o país que mais mata homossexuais e travestis no mundo inteiro, segundo a Anistia Internacional (no levantamento de 2013). Em um artigo publicado no livro Questões de Sexualidade nas Histórias em Quadrinhos, o pesquisador e quadrinista Henrique Magalhães deixou bem claro o valor desse papel social. “(…) os quadrinhos de temática homossexual podem florescer em resposta à mudança de costumes, ao relaxamento dos preconceitos e da mentalidade conservadora da sociedade. A conquista dos direitos à cidadania pelos homossexuais tirou-os da marginalidade em que viviam desde tempos remotos e criou a possibilidade de afirmação a que muitos almejam.” Da menina que entra numa comic shop em busca de personagens lésbicas à atual geração de artistas queers buscando espaço no mercado editorial, o sentimento atual é o mesmo: queremos nos ler.

Dandara Palankof, Carol Almeida e Paulo Floro são editores da Plaf.

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