A diretora durante bastidores do filme Quebra-cabeças / Divulgação
AS REGRAS DO JOGO
Cineasta argentina que já trabalhou com Lucrecia Martel, estreia na direção com Quebra-Cabeças, longa sobre o poder que as pequenas coisas têm na vida
Por Natalia Barrenha
Colaboração para a Revista O Grito!
Natalia Smirnoff queria narrar um momento de reviravolta na vida de alguém. Entretanto, para a cineasta argentina são as pequenas coisas que nos movem – algo fundamental para ela é que a maioria das modificações não são as transformações grandiosas, e sim as pequenas mudanças. E são principalmente essas coisas miúdas que cercam as pessoas e suas transições que habitam o universo de Quebra-cabeças (Rompecabezas), debut de Natalia que teve estreia mundial no Festival de Cinema de Berlim em fevereiro deste ano.
Quebra-cabeças é comédia sutil e de uma simplicidade deliciosa: o filme inicia-se com a festinha de aniversário de 50 anos de Maria del Carmen, a qual preparou com extremo rigor e atenção casa, comida e roupa lavada para a família e os convidados. A rispidez que parte do marido e o alheamento das pessoas com a aniversariante, que parece perdida no meio de uma comemoração meio indesejada, pode dar a impressão de que o filme vai repisar caminhos fáceis (e ingênuos) da dona-de-casa infeliz no casamento e escrava de seus deveres domésticos. Porém, Natalia abre mão de intrincadas buscas existenciais e dramáticas para dedicar-se a modestas (e nem por isso menos profundas) descobertas e a uma solta descontração.
Depois de ajeitar toda a bagunça da festa enquanto a casa descansava em sono profundo, María del Carmen (que não é neurótica e nem precisa de terapia) encontra entre seus presentes insossos um inusitado quebra-cabeça. Parecia aquele presente que um dia gente ganhou, não gostou, e guardou embaladinho para passar pra frente. E a mulher que até então parecia um fantasma ilumina-se discretamente frente àquela Nefertiti (era mesmo ela?), e sem querer acaba trombando com um pequeno descobrimento que irá revolver sua vida, que andava meio desorientada.
Para Smirnoff, a vida só vale a pena ser vivida com as paixões que se têm. María del Carmen encontra nos quebra-cabeças uma paixão que reorganiza seu universo – após descobrir-se uma boa montadora, um cartaz mambembe que ela vê em uma loja de xerox anuncia um homem (Roberto) à procura de parceiros para um campeonato do distinto passatempo. Com seu ar constantemente incerto (e que, na verdade, esconde alguém muito mais determinada do que insegura), ela torna-se a dupla de Roberto e começa a treinar para a competição nacional, enquanto seus familiares pensam que ela vai cuidar de uma tia adoentada. Natalia explica que o filme trata principalmente da descoberta de uma paixão e o que acontece quando se anima a viver com isso, como tal gera uma transformação. “Ela descobre algo novo de si mesma. Ela descobre uma paixão que a leva a descobrir algo desconhecido que até então ela não sabia. E pra mim também é fundamental ter segredos das paixões. Elas são muito frágeis e às vezes têm que ser ocultadas para que possam ser vividas. Por exemplo, se em algum momento criticassem à María del Carmen por montar quebra-cabeças, ela não ia mais poder fazer isso – a única maneira de fazer era ocultando, e por isso toda a mentira. E além disso, não há nada mais divertido do que as mentiras, não?”, confessa a diretora.
O envolvimento de María del Carmen com os quebra-cabeças e com Roberto, entretanto, não a afasta de sua vida. Smirnoff conta que isso foi algo que foi amadurecendo com os anos, já que no início ela acreditava estar contando a história de alguém que já não se animava a viver algo entre os seus. “A oscilante relação entre María del Carmen e seu marido não é nada mais que uma relação de amor. O amor ideal não existe, os casais ideais não existem. Mas sim existem casais que estão vivos e que estão mortos. Enquanto eu escrevia, descobri que na verdade eles se amavam profundamente. E que María del Carmen teve uma história de paixão com Roberto, não de amor. Para mim uma das graças fundamentais de Quebra-cabeças é que há uma família que se ama e anda bem”, conclui.
Natalia também me conta um pouco sobre suas próprias descobertas: ela estudou engenharia de sistemas, mas acabou virando jornalista, profissão que a consagrou – ganhava bem, viajava, mas, não estava desfrutando da vida do jeito que desejava. Até que uma moto cruzou o caminho do seu carro e esse pequeno acidente – “nada importante” – a confrontou com a ideia de que se pode morrer a qualquer momento. E, assim, ela decidiu que sua vida ia deixar de ser tímida e que uma mudança profunda ia entrar em curso: encontrar a ela mesma para viver mais plenamente. Foi quando Smirnoff entrou na faculdade de cinema, largou o emprego de jornalista ao fim do curso e foi trabalhar nos sets como assistente de direção e direção de casting. Neste processo, onde foi percorrido um longo caminho, ela descobriu que tampouco queria ser assistente de direção ou casting, e começou a escrever seu próprio filme.
Natalia trabalhou com grandes diretores da nova geração do cinema argentino, fazendo parte da equipe de filmes de Lucrecia Martel (O pântano, A menina santa e A mulher sem cabeça), Alejandro Agresti (Valentín e Um mundo menos pior), Pablo Trapero (Nascido e criado), Marco Becchis (Garage Olimpo) e Marcelo Piñeyro (As viúvas das quintas-feiras). Ela começou efetivamente a pensar em Quebra-cabeças após participar de quatro grandes produções e um ano e oito meses depois de se tornar mãe pela primeira vez. “Eu estava descobrindo o que era ser mãe, o que se revelou contatar algo profundo com a nossa própria mãe e fazer uma revisão de diversas coisas… e, principalmente, o fato de começar a brincar com seu filho e de repente começar a brincar com todos; se comunicar de outra maneira – em linguagem normal não há relacionamento, sobretudo quando temos um neném.
E isso despertou tudo que era a brincadeira, o jogo, e do que significa brincar, porque para mim ser adulto e ser responsável está muito embebido de coisas alheias que nos faz perder a capacidade de jogar e de nos desordenarmos.Ao jogar, estamos um pouco mais livres. Tiramos as angústias das crises. E eu gosto de explorar essa ideia”, conta a cineasta, que explica ter escolhido os quebra-cabeças porque queria que o filme tivesse algo de ridículo, de insignificante: “Por um lado, com certeza eu não pensava em alguém que jogasse xadrez, que fosse a ‘inteligente do xadrez’. Me entediava muito o status social que um jogo como esse dá de alguma maneira. O quebra-cabeça qualquer um pode jogar; é uma perda de tempo, uma distração, de certa forma uma tolice. Por outro lado, eu montei quebra-cabeças por muito tempo, e isso sempre tinha a ver com épocas de crise. Me trancava e me metia a montar e montar e montar até tarde, como a ordenar um caos. Há uma filósofa argentina chamada Graciela Scheines, a qual eu pesquisei enquanto escrevia o filme, que sustentava que os jogos eram a possibilidade de acalmar as angústias existenciais mais profundas. E eu experimentava isso na minha própria vida. Por algum motivo eu não podia parar de jogar, e busco um pouco disso no roteiro. Outra coisa da Scheines que me influenciou muito foi essa coisa que ela fala de que, quando somos pequenos, por exemplo, vemos uma cadeira como uma porção de coisas: ela pode ser um avião, uma casa, um monstro… E, depois, perdemos a capacidade de ver várias coisas em um objeto – a cadeira é um lugar para sentar-se e nada mais. E o filme conta como isso, digamos: sair do óbvio para entrar em outros lugares”.
A música que acompanha Quebra-cabeças é muito importante nessa viagem a outros lugares. No filme, a trilha sonora aparece como em duas correntes que se unem pelo lúdico: uma delas está mais ligada às coisas do cotidiano, como a cumbia que se escuta no rádio; a outra tem mais a ver com o mundo dos quebra-cabeças e com tudo que ela está descobrindo – a música étnica que faz referência à Nefertiti e aos egípcios que a fascinam. Além disso, a cineasta destaca que nos ruídos das peças, nos quais as pessoas se detêm para escutar, há algo muito sensual e particular – assim, ela necessitava uma música que pudesse estar à altura disso e que ao mesmo tempo acrescentasse essa sensação de alguém que se lançou ao desconhecido. Natalia conta que Alejandro Franov, quem fez a trilha, é hoje seu marido – o que permitia uma assessoria plena.
A atriz Maria Onetto durante as gravações do filme / Divulgação
A diretora explica que escolheu retratar uma mulher de 50 anos devido a uma sensação que a assolou a partir dos 30 – hoje, ela conta 38 primaveras. “Meus 20 anos não foram muito felizes; eu sofri muito. Não por alguma coisa em especial, ou porque não me divertia, mas porque tudo funcionava como numa espécie de ímpeto, o que fazia com que meu ânimo oscilasse muito e por vezes se concentrasse em um estado deprimido. Aos 30 eu passei a desfrutar da totalidade das coisas, com calma. E observando a mim mesma fico imaginando as mulheres de 50 e essa mudança. Ainda me preocupa ou me sobrevoa a ideia de ser linda, não ser linda, ou de ser gorda ou não ser gorda, enquanto as mulheres de 50 começam a pensar em outros assuntos, pois já viveram certas coisas, já se foi a ansiedade, já se passou pela decadência. Me parece que é outra sabedoria. Mas, uma dona-de-casa nesta idade me parece que está submetida a algo que podemos chamar de trágico, não? Pois está condenada que, faça o que faça, as coisas vão se modificar: os filhos vão embora. Ela não pode mudar o rumo das coisas, é uma predestinação infalível. E eu acho muito interessante as personagens frente a isso: o que fazem com o que não podem evitar. Uma das opções é entrar em crise profunda. Me lembro que Lucrecia Martel me contou que grande parte das mulheres de 50 anos em Salta [cidade natal de Lucrecia, no norte da Argentina] ficavam loucas, porque suas vidas se desarmavam. Eu acho que frente a essa mudança elas devem ver uma oportunidade de eleger algo novo, e assim transformar algo profundo de si mesma”. É essa a reviravolta que Natalia buscava: a chance que María del Carmen dá essa possibilidade e que muda sua vida. Para isso, contudo, ela não precisa ir até a Alemanha, oportunidade que surge no meio do caminho. Ela consegue mudar algo profundo mais próximo – mudar sua atitude com relação a si mesma e a seus amigos, o que é muito mais intenso do que andar de avião.
Essa atenção com as pequenas coisas e com os detalhes é demonstrada a cada plano do filme. María del Carmen é sumamente minuciosa, como grande parte das pessoas que montam quebra-cabeças: unir as peças ou tentar descobrir suas ligações é um ato muito profundo de observação, é apreender os detalhes das coisas. Segundo Natalia, esses pormenores deveriam refletir o ponto de vista da protagonista, aparecendo em função das coisas que para ela fossem especiais – María del Carmen detém-se, por exemplo, nos produtos de limpeza que carregava a empregada de Roberto ao invés de contemplar a grande escadaria da mansão.
A cineasta acredita que geralmente as mulheres possuem uma tendência maior à observação e ao detalhismo, e ainda cita outras particularidades do universo feminino que fazem parte da estrutura do filme: “A coisa fragmentada dos quebra-cabeças é muito parecida ao pensamento de grande parte das mulheres e, principalmente, das mães, que não tem uma linearidade, não se centram em apenas uma coisa. Elas sempre estão observando ao redor, matutando se o marido foi pegar as crianças na escola, se têm que passar no supermercado, o que vai ter pro almoço, olha que bonita a sua bolsa… todas essas coisas estão convivendo. É como um sobrevoar. E é isso que faz com que uma mulher faça as tarefas de casa e que seus filhos permaneçam vivos! Ela está obrigada a prestar atenção em diversas coisas ao mesmo tempo”.
Entre as referências de Natalia, pode-se perceber a grande presença das mulheres. Mesmo que ela se confesse encantada por John Cassavetes, sua maior influência é Virginia Woolf. Ela conta que se ligou a Cassavetes antes do filme, e destaca que o que a encanta no cineasta norte-americano é sua maneira muito particular de trabalhar com o mistério humano. Já a escritora inglesa acompanhou-a durante todo o processo de criação de Quebra-cabeças. Em sua opinião, enquanto Cassavetes dedicava-se à descoberta da coisa apaixonante que é o ser humano, Virginia movimenta-se sobre algo mais cotidiano, sobre os pequenos momentos, sobre os resquícios das coisas. Smirnoff destaca que hoje há muitas mulheres narrando, e o que a espanta particularmente em Woolf é que ela escreveu há muito, muito tempo.
Enquanto tomávamos um café durante o 12º BAFICI (Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente), em uma tarde de abril cheia de chuva e vento em Buenos Aires (onde vive Natalia), ela – que estava preocupada se alguém tinha ido buscar o filho mais velho, como estava a nova babá, se o bebê melhorou do resfriado – me perguntou se eu havia sentido com o filme dela a coisa do feminino que ela considera tão manifesta em Virginia Woolf ou na escritora argentina Silvina Ocampo. Emendando minha resposta positiva, escrevi no caderninho de Natalia os nomes de Clarice Lispector e da cineasta japonesa Naomi Kawase para que ela as procurasse. Depois, a diretora confessou-me que está como louca com seu próximo projeto, onde o personagem principal é um homem.
O protagonista do seu novo filme é um chaveiro de 30 e poucos anos, casado, e a história se passa em uma época em que Buenos Aires ficou coberta de fumaça por cerca de um mês, em 2008, devido à queima de pastos. Ela anda observando e pesquisando um chaveiro perto de sua casa em San Telmo para compor o personagem. No roteiro, a cada vez que o chaveiro abre a porta de alguém, ele tem visões de algo crucial dessa pessoa, e neste instante ele começa a falar com a voz de alguém íntimo daquele que está sendo visto. Natalia cita, por exemplo, o chaveiro questionando a um cliente se ele não iria largar da mulher – com a voz da amante. Como se não fosse pouco, um dia ele se vê com uma mulher após abrir a porta da dita cuja. A diretora explica que quer explorar o que se passa com alguém comum que é confrontado com algo que possa ser inexplicável e irracional, e o que fazer com tudo isso.
Assim como em Quebra-cabeças, Smirnoff procura os grandes acontecimentos que podem proporcionar as histórias simples. Mais uma vez, ela diz que quer primar pelas coisas descomplicadas, fáceis na trama, cheias de pequenos detalhes. Sua ideia é buscar a forma mínima de contar algo que tenha uma ressonância importante para ela – essa é a principal regra de seu jogo no cinema.